Prédica: Romanos 8.26-30
Autor: Werno Stiegemeier
Data Litúrgica: Domingo Exaudi
Data da Pregação: 03/06/1984
Proclamar Libertação – Volume: IX
I — Contexto e estrutura
Na perícope prevista para este domingo, Paulo dá continuidade a um pensamento já iniciado nos versículos anteriores, especialmente nos vv. 18-25. A vida do cristão se desenrola numa constante tensão entre o já agora e o ainda não, entre os sofrimentos do presente e a glória do porvir, o velho e o novo mundo (éon). Apesar de ter tomado posse da nova vida em Cristo, o cristão ainda vive num mundo onde o sofrimento e a dor continuam sendo uma realidade.
Toda a criação sofre as consequências da queda, pois, por causa da injustiça do ser humano, o velho mundo foi amaldiçoado por Deus. Desta forma, a redenção da Humanidade será também a redenção da citação toda (vv.19-22). Sendo assim, toda a criação e o próprio Espírito de Deus gemem, ao lado do cristão, aguardando a manifestação plena do novo mundo de Deus (vv.18-27).
A estrutura dos vv.19-27 se apresenta, então, da seguinte forma:
Na tensão entre os sofrimentos do presente e a glória do porvir, geme:
1. toda a criação (vv. 19-22);
2. o seguidor de Cristo (vv.23-25);
3. o próprio Espírito (vv.26-27).
Nos vv.28-30 o apóstolo menciona os diferentes estágios que Deus seguiu no caminho que conduziu à concretização de seu plano salvífico. No final do cap. 8, ou seja, nos vv.31-39, temos a conclusão do tema abordado anteriormente: os sofrimentos, ao lado de outros poderes contrários à vida, não serão capazes de separar os eleitos de Deus do seu amor revelado em Jesus Cristo.
II — Considerações exegéticas
Vv.26 e 27: Os sofrimentos deste mundo não atingem apenas o exterior, o corpo da pessoa, mas abalam também o interior, o espírito, a vida de fé. Paulo, portanto, não pode ser considerado defensor de uma Teologia da Glória, na qual se procura colocar a vida espiritual acima de qualquer fraqueza, como se nada pudesse atingir os que estão em Cristo. O apóstolo sabe que o seguidor de Cristo não é nenhum super-herói, cujas forças não pudessem ser enfraquecidas pelas adversidades da vida. Ele tem conhecimento dos momentos de fraqueza, aos quais todos estão expostos.
A fraqueza pode ser tão grande que a pessoa nem consegue reunir ânimo e palavras para se dirigir, em oração, a Deus, a fonte capaz de reabastecer suas forças. É justamente aqui, na fraqueza extrema, que o próprio Espírito de Deus entra em ação, intercedendo, com gemidos inexprimíveis, por aqueles que foram surpreendidos pela fraqueza resultante dos constantes sofrimentos. E mesmo nesta intercessão do Espírito transparece a imperfeição, sob a qual a vida do cristão se desenrola no tempo presente. O próprio Espírito geme sob a carga dos sofrimentos do presente, na expectativa pela realização plena do plano salvífico de Deus.
V.28: Apesar de já derrotados, os poderes do mal se manifestam com tal intensidade que, às vezes, se poderia pensar que eles, de qualquer forma, acabarão falando a palavra final. Desta dúvida apenas se consegue sair, quando se compreende que nenhum acontecimento foge do alcance de Deus. Ele está presente também na hora do sofrimento. É por isto que todas as cousas cooperam para o bem, até mesmo aquelas que aparentemente dificultam a realização dos planos de Deus.
TOIS AGAPÕSIN TON THEON, daqueles que amam a Deus. Normalmente Paulo evita falar do amor do homem a Deus. Nunca usa o substantivo ÁGAPE, neste sentido. Para ele, ÁGAPE, é, em primeiro lugar, aquilo que Deus demonstrou ao dar seu Filho por nós. A forma verbal — no sentido de amor do homem a Deus — aparece, em suas cartas, apenas três vezes: 1 Co 2.9; 8.3; Rm 8.28. Será que, em nosso texto, o apóstolo quer dizer que a certeza de que todas as cousas cooperam para o bem está baseada no amor do homem a Deus, portanto, em si mesmo? Poderíamos entendê-lo desta forma, se não seguisse logo a expressão daqueles que são chamados segundo o seu propósito. O ponto de partida para a compreensão de que tudo serve para o bem não está no amor do homem a Deus, mas, sim, no eterno propósito de Deus, segundo o qual fomos chamados para sermos seus filhos. O amor a Deus, portanto, já é uma consequência, é uma resposta à ação divina, que sempre antecede a ação humana.
Vv.29-30: Nestes dois últimos versículos temos diversas frases interligadas entre si, como elos de uma corrente. Através delas, o apóstolo mostra quais são os passos do plano salvifico de Deus. Tudo teve seu início no passado, na eternidade. Aqueles que agora, no presente, são chamados e justificados, já foram conhecidos e predestinados anteriormente para serem conformes à imagem de seu Filho. O último estágio é a glorificação, a qual acontece tanto no presente quanto no futuro. O plano salvífico de Deus, portanto, possui um passado, um presente e um futuro.
Aos que predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, (v.29) Em sua jornada terrestre, Jesus esteve sujeito aos pode¬res destruidores deste mundo. Desde a sua ressurreição, porém, foi glorificado. O cristão foi escolhido por Deus para ser semelhante a Jesus, e isto tanto nos sofrimentos quanto na glorificação, tanto na morte quanto na ressurreição (Rm 6.5). Em outras palavras: Deus predestinou os que estão em Cristo para a glorificação juntamente com seu Filho. O caminho para a glorificação, no entanto, passa pelo sofrimento.
Deus conheceu, predestinou, chamou e justificou. Todos estes estágios pertencem ao passado e ao presente. O último estágio, porém, a glorificação, é futuro. Assim sendo, tem-se a impressão de que Paulo deveria usar o futuro, dizendo: aos que justificou, a esses também glorificará na eternidade. Em vez disto, porém, ele continua usando o aoristo, que serve para expressar uma ação ou um acontecimento que já passou. Por isto alguns exegetas são da opinião de que Paulo não estaria falando daquela glorificação que é o alvo da vida cristã, a qual se manifestará plenamente apenas na eternidade. Ele estaria se referindo à transformação que aconteceu no momento em que o Espírito de Deus tomou morada na pessoa. Anders Nygren (p.249s), no entanto, afirma que não pode haver dúvida de que Paulo realmente se refere à glorificação futura. A explicação papa o fato de ter empregado o aoristo está no modo como se relacionam os dois éons, o velho e o novo, o mundo do sofrimento e o mundo da glória. A salvação está presente já agora como uma realidade inegável. Já fomos salvos agora, mas isto, somente na esperança (v.24); isto é, esperamos que no futuro a salvação que agora sentimos apenas em parte, se concretize plenamente. Com a vinda de Cristo, o novo éon já se tornou uma realidade presente, mas a sua realização plena ainda é esperada. A afirmação de que o cristão vive em dois éons não significa que ele vive, no presente, apenas no velho éon e que o novo é somente futuro. Os dois se interligam. Mesmo no velho éon, o novo já está presente como uma realidade bem concreta. O cristão não vive no presente como se nada tivesse acontecido. Pelo contrário, através da aceitação de Cristo aconteceu algo que transforma completamente a velha existência. Portanto, a glorificação iniciou já agora. É por isto que Paulo pode dizer: aos que justificou, a esses também glorificou. Mas o que já teve o seu início, se realizará plenamente apenas na eternidade. Somente lá os seguidores de Cristo passarão a viver plenamente na glória de Deus.
III — Meditação
1. Não é possível denunciar injustiças e falar de oprimidos e opressores , de explorados e exploradores durante o ano todo. Muitos ouvintes vêm ao culto para ouvir uma palavra de consolo, de fé e de esperança. Não porque queiram passar um bálsamo por cima das feridas da vida, mas porque realmente necessitam de conforto. Por isso, deveríamos aproveitar a oportunidade que o texto de hoje oferece para transmitir uma mensagem de confiança, conforto e esperança.
Evidentemente, existe muito sofrimento que pode ser evitado, afastado ou, pelo menos, amenizado pela ação de pessoas responsáveis e engajadas na luta por um mundo melhor. Sendo assim, o texto não nos quer levar, de forma alguma, a um comodismo barato. Devemos distinguir, no entanto, entre sofrimento causado pela ação humana e sofrimento para o qual não conseguimos diagnosticar uma causa evidente e imediata. Há muitos casos de aflição e dor para os quais não existe nenhuma explicação racional, no sentido de causa e efeito. O sofrimento simplesmente está presente. Não se consegue explicá-lo nem fazer algo para eliminá-lo. Quantas vezes nós, pastores, não nos encontramos ao lado de pessoas desesperadas e aflitas sem termos palavras e ações para ajudar?! Não sofremos, nós mesmos, quando gostaríamos de fazer algo por alguém, mas nos sentimos pequenos e impotentes perante a dor alheia?!
Poucas semanas antes de elaborar o presente auxílio homilético, tive que oficiar o sepultamento de um homem relativamente moço — 42 anos —, pai de onze filhos, dos quais a maioria ainda são pequenos. Não foi uma morte repentina. Uma grave doença, o câncer, o atormentou terrivelmente, sugando, aos poucos, as suas forças até a última gota. De tão magro que estava, mais parecia um esqueleto do que um ser humano completo. — Qual a imagem que os filhos vão guardar de seu pai? Os filhos que tanto precisariam do carinho do amor e do afeto do pai? De que forma levar consolo para essa família enlutada?
No dia 28 de fevereiro, 48 jovens voltavam de Alegrete a Três Passos, após haverem prestado o serviço militar. Na entrada da cidade de São Luiz Gonzaga, o pneu dianteiro esquerdo do ônibus estourou. Em consequência, o veiculo colidiu lateralmente contra um cargueiro que trafegava no sentido contrário. Neste acidente morreram cinco jovens e outros cinco ficaram gravemente feridos. Os pais das vitimas não mais tiveram a alegria de rever, com vida, os filhos tão esperados Esperavam jovens sorridentes e alegres, mas voltaram apenas corpos sem vida. Haverá palavras de consolo nesta hora?
Alguns anos atrás, conheci um casal de certa idade que tinha a árdua tarefa de cuidar de uma filha excepcional e deficiente por mais de trinta anos. Quando pequena, a filha caminhava e brincava. Mais tarde, porém, em consequência dos frequentes ataques epilépticos, ela ficou confinada ao leito. Nos últimos anos de vida, seus braços e suas pernas estavam repuxados e o corpo todo retorcido. Os únicos sons que ela emitia eram gemidos de dor, quando sobrevinham os ataques. Como se tudo isto não bastasse, ainda faleceu seu pai, ficando a mãe sozinha com a deficiente. Poucas semanas depois a filha finalmente também descansou.
Em circunstâncias como as acima relatadas desaparece qualquer perspectiva de futuro e esperança. Mesmo a fé daqueles que confiam firmemente em Deus sofre um profundo abalo. As forças naturais da pessoa certamente não são suficientes para suportar tamanha dor. A aflição pode ser tão grande que faltam palavras para expressar o que se sente. As ideias se confundem, de modo que a pessoa não consegue se concentrar rnem sequer para uma oração. Assim sendo, parece ter chegado o fim total. Para quem se sente abandonado por Deus, para quem a comunicação com Deus está impossibilitada, não há mais esperança.
É importante, então, saber-se da assistência do Espírito. Quando estamos no fim, quando não vemos mais nada, a não ser desespero, o próprio Espírito intercede por nós. Ele não nos abandona. O Espírito sofre conosco e, neste sofrimento, pede pela manifestação do novo mundo de Deus.
2. A afirmação de que todas as cousas cooperam para o bem não é de fácil aceitação e compreensão. De que maneira doença, dor, aflição e morte podem contribuir para o bem do ser humano?
Para responder a esta pergunta é necessário considerar o final do versículo: … daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Somente quem ouve e atende ao chamado de Deus, somente quem sabe que Deus tem um plano de salvação e se sabe incluído nele é capaz de compreender e aceitar esta afirmação. Aqueles que acham que tudo, tanto o bem quanto o mal, acontece por um mero acaso e aqueles que acreditam num destino cego, não poderão concordar com o pensamento do apóstolo.
Certamente não devemos nem podemos responsabilizar Deus por todo sofrimento, como se ele o quisesse ou até nele tivesse o seu prazer. Já dissemos antes que muito sofrimento é consequência da culpa humana. O que Paulo quer dizer, assim o entendo, é que Deus, como Senhor onipotente, pode colocar tudo a seu serviço, inclusive os acontecimentos que querem impedir a realização de seus planos. Em princípio, parece que o sofrimento arrasa e acaba com o seguidor de Jesus Cristo. Mas Deus pode fazer com que justamente o sofrimento leve a pessoa a encontrar-se, a crescer na fé e no entendimento, a tornar-se um cristão adulto e maduro. Exemplos de como isto acontece certamente não nos faltam.
O exemplo mais típico de como Deus escreve reto por linhas tortas é o caminho seguido por Cristo. Os homens que crucificaram Jesus queriam acabar definitivamente com ele e apagar suas ideias e ensinamentos da face da terra. Mas Deus se utilizou justamente desta ação destruidora dos homens para fazê-lo Senhor sobre todos e sobre tudo. O caminho pelo vale do sofrimento é que o conduziu à glória.
Se Deus nos predestinou para sermos conformes à imagem de seu Filho, isto significa que havemos de segui-lo pelo vale de lágrimas para a glória, através da morte para a vida. Ainda vivemos num mundo em que há tristeza e dor, morte, angústia e horror, mas o plano de Deus está firme. Nada, nem ninguém, poderá impedir a realização daquilo que está planejado desde a fundação do mundo. O alvo fina! é a glorificação plena — junto com Cristo — de todos aqueles que atenderam ao seu chamado. Esta glorificação se faz sentir já agora, no mundo em que vivemos. Apesar de todas as adversidades, de toda fraqueza, de toda dor, apesar de termos apenas fragmentos daquilo que haverá de ser, o mundo novo de Deus já iniciou.
IV — Sugestão para a prédica
Na elaboração da prédica, poder-se-á seguir a linha de pensamento da meditação:
1. Motivação: Relatar alguns fatos, à semelhança dos que vimos acima.
2. Desenvolvimento do conteúdo central: Nas situações limítrofes da vida.
a) o próprio Espírito de Deus nos fortalece, intercedendo por nós;
b) o plano de Deus continua firme e inabalável, de modo que nada poderá impedir sua realização.
3. Conclusão: O alvo final do plano de Deus é a glorificação dos que foram chamados. Esta,
apesar de todas as forças contrárias, já inicia no mundo em que vivemos.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus e Pai! É com humildade que nos aproximamos do trono da tua graça para confessarmos a nossa culpa. Reconhecemos que, na maioria das vezes, tentamos organizar sozinhos a nossa vida. Vivemos os nossos dias como se tu fosses um estranho para nós Quando tudo vai bem, não nos lembramos que tu queres ser nosso companheiro de todas as horas; esquecemos de compartilhar contigo nossas alegrias e realizações. É justamente por causa disso que pareces estar tão distante, quando te procuramos nos momentos de tristeza e de aflição. Obrigado, Senhor, que o teu poder ultrapassa os limites de nosso sentimento, que tu estás conosco também nas horas em que nada sentimos de tua presença. Obrigado que tua mão nos segura em nossas fraquezas. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Nós te agradecemos, Senhor, porque tu nos escolheste e chamaste para sermos os seguidores do teu Filho Jesus Cristo. Nós te agradecemos porque sabes de nossas necessidades e nos ouves, mesmo que não saibamos orar como convém. Tranqüiliza-nos, para podermos ouvir com devoção as palavras que animam e vivificam nosso espírito cansado e abatido. Gostaríamos de sair daqui na certeza de que tu mesmo falaste conosco. Amém.
3. Assuntos para a oração final: Interceder em favor dos aflitos, abatidos e desesperados por causa de sofrimento e morte; em favor dos que em vão esperam que o dia de amanhã seja melhor; por aqueles que não têm mais nada a esperar, a não ser a morte; em favor dos que em vão esperam que o dia de amanhã seja melhor; por aqueles que não têm mais nada a esperar, a não ser a morte; por todos os desanimados e cansados da vida, em cujos rostos se vêem estampados a tristeza e o sofrimento; por aqueles que envelheceram antes do tempo, por causa de desventuras e desgraças. (Seria bom lembrar casos bem concretos da localidade.) Pedir por nós mesmos: que sejamos fortalecidos e amparados na hora da angústia; que, enquanto pudermos, lutemos para evitar, afastar e amenizar a dor alheia.
VI — Bibliografia
– ALTHAUS, P. Der Brief an die Römer. In: Das Neue Testamenl Deutsch. Vol. 6. 10a ed. Göttingen, 1966.
– GERSTENBERGER, E.S. Por que sofrer? São Leopoldo, 1979.
– NYGREN, A. Der Römerbrief. 4a ed. Göttingen, 1965.
– SCHMIDT, H. W. Der Brief des Paulus an die Römer. In: Tkeologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Vol. 6. 3a ed. Berlin, 1972.