Série: Quer seja oportuno, quer não
Agosto
Tema: Superstição: produto de angústias
Explicação do tema: A superstição é um fenômeno largamente difundido em nossa sociedade. Entretanto, é muito importante reconhecer que o povo tem uma série de conhecimentos de medicina popular e dos fenómenos da natureza que não merecem esta designação.
A superstição diviniza fenômenos naturais ou pessoas, criando dependências e desintegrando relações sociais importantes. As situações de angústia impelem pessoas a procurarem solução para os seus problemas na superstição.
Texto da prédica: Romanos 8.31-39
Autor: Harald Malschitzky
I — A título de introdução
Basta ler alguns capítulos da Epístola aos Romanos para notar logo uma diferença fundamental em relação ás outras cartas de Paulo: aqui ele não responde a perguntas e nem se reporta a problemas específicos como, por exemplo, os que ocorreram em Corinto (1 Co 1.10ss). Esta carta tem muito mais o aspecto de uma pregação devidamente ordenada por temas e não a partir de acontecimentos. Isso tem sua razão de ser: o plano de Paulo era chegar até a Espanha e, para tanto, ele precisava ou desejava um ponto de apoio em Roma e o encaminhamento pela comunidade cristã existente em Roma. (Rm 15.22-29) Assim, na carta, Paulo procura apresentar-se à comunidade (1.1ss) e o faz também através de uma exposição do Evangelho.
Logo no início (1.16-17) está a tese que vai perpassar toda a carta, o justo viverá por fé, aliás, uma citação veterotestamentária, o que, entre outras, é também uma característica desta carta. A tese inicial é desenvolvida para as mais diversas direções, sempre sob o enfoque: o que significa a justiça de Deus em relação aos judeus, aos gentios e à comunidade cristã? E é no trecho entre 3.21 e 8.39 que ele tenta tirar as consequências para a vida. Justiça de Deus e a justificação pela fé têm consequências bem concretas para a vida, pois é o caminho inverno daquele seguido por judeus e gentios que procuram justificar-se por obras. (Rm 3.28) A certeza de que a justificação é um presente gratuito (o pleonasmo é proposital!) de Deus, leva o autor a uma confissão de fé cheia de alegria e convicção, num texto que procura ser abrangente e que lembra um cântico de louvor. Aliás, pode ser até que o apóstolo tenha inserido nesta passagem trechos de algum cântico conhecido. E assim como Paulo, no inicio da carta, expressa, em uma espécie de tese, aquilo que será exposto a seguir (1.16-17), ele agora, também em forma de uma tese curta, tira as consequências do que expusera: Se Deus é por nós, quem será contra nós? (8.31 b). (Este cap. l apoia-se em Westermann, p. 265-267.)
II — O texto
O trecho 8.33-39 divide-se em três partes, sendo os vv. 31 e 32 a introdução e uma espécie de sumário.
V. 31a: Especialmente neste trecho Paulo usa o esquema de pergunta-resposta. Neste versículo a pergunta não é apenas retórica, mas, sim, ela introduz a confissão que segue.
V. 31 b: Nesta segunda parte — também em forma de pergunta — logo fica claro de que se trata nesta confissão de fé: se Deus está do lado dos homens nada poderá provocar uma separação, nada poderá desfazer esta relação. Este é o resultado da exposição que o apóstolo inicia a partir de 1.18. Aconteça o que acontecer, de Deus nada poderá afastar-nos,
V. 32: É evidente que, após uma confissão tão incisiva e definitiva, se coloca logo a pergunta pela sua origem. De onde Paulo tira tanta certeza? Será apenas um sentimento subjetivo e pessoal? Não, muito pelo contrário: ele tem dados objetivos em que se basear. Baseando-se ou ao menos aludindo a Gn 22.12 e 16, onde nos é relatado que Deus poupa o filho de Abraão, o apóstolo lembra que o mesmo Deus não poupou o seu próprio filho, isto é, não poupou a si mesmo. Por causa dos homens Deus entrega o seu filho aos executores assim como o juiz o faz com quem é condenado pelo tribunal. Os homens são absolvidos porque um outro é condenado em seu lugar. Os homens, a Humanidade, são o objetivo do agir de Deus. A entrega de seu filho constitui a expressão mais forte e mais clara de seu agir em favor dos homens. E, mais uma vez em forma de pergunta, Paulo afirma que todo o resto (TA PANTA) será acrescentado quase que como um suplemento. (Seitz) Embora esta expressão tenha causado alguma dor de cabeça para os intérpretes (cf. Voigt, p. 65), certamente poder-se-á entender que ela engloba uma vida plena tanto presente quanto futura, uma vida em esperança, uma vida sem medo de quem quer que seja, um futuro aberto também para além da morte.
Vv. 33-34: Daqui para a frente Paulo fala claramente dos benificiados pela ação de Deus em Cristo. No entanto, ele não acalenta qualquer ilusão. Estas pessoas, mesmo que beneficiadas por Deus, continuam culpadas. Seria uma graça barata (Bonhoeffer) se, de repente, culpa não mais fosse culpa. Pauto não está pondo em dúvida a existência de acusações contra os homens (Seitz, p. 58), acusações que nos levariam à morte, pois o salário do pecado é a morte (Rm 6.23). Talvez até possamos afirmar, em nossa suposta defesa, que não contribuímos efetivamente para a miséria e a desgraça que assolam o mundo. Ainda assim, permanece contra nós a acusação de que também pouco ou nada fizemos para mudar esta situação de miséria. (Cf. Voigt, p. 68.) Ocorre que, no banco dos réus do tribunal que nos julga e nos pode condenar, está o próprio Deus no Cristo, isto é, a condenação acerta e já acertou um outro, Jesus Cristo (Rm 5.8-11). Por isso: É Deus quem os justifica (V.33b).
Vv. 35-37: O fato de o Cristo estar no banco dos réus em lugar dos homens não significa uma vida fácil, não significa — como se costuma pensar e apregoar em alguns círculos cristãos — que já estamos livres e isentos de problemas e sofrimentos. Não se trata de minimizar ou espiritualizar o sofrimento, o que se faz no seio do Seicho-No-lê e também em círculos cristãos. Muito pelo contrário, o sofrimento do cristão, aqui e agora, pode ser muito concreto e muito violento; afinal, perseguição, fome, nudez e espada são grandezas muito concretas, algumas das quais Pauto experimentou em seu próprio corpo. Só há que ser lembrado que agora o sofrimento não é um castigo mas acontece na e peta causa de Cristo. No v.37 é que o paradoxo se torna mais claro e mais articulado: em meio ao sofrimento concreto já somos vencedores em Cristo! Isso não significa uma visão otimista da vida (porque Cristo já sofreu por nós. o sofrimento de agora é mais aparente do que real) e nem uma visão pessimista desta vida (o cristão só é cristão quando sofre). Embora a vida no discipulado não seja um sonhado mar de rosas, sabemos que, como no tribunal, também na vivência, na vida, aquele que nos amou está conosco (v. 31b).
Vv. 38-39: Nestes dois versículos Paulo junta uma série de conceitos para deixar bem claro que nada mesmo pode nos separar do amor de Deus. Ele começa citando a morte, o que mais assusta as pessoas, pois ela é temida por fracos e fortes, ricos e pobres. O fato de esta morte estar sobre nossas cabeças como a espada de Dâmocles, leva pessoas à loucura peia vida, a aproveitar a vida com todas as letras e a, por isso mesmo, desprezar e destruir tanto a natureza como a vida de seus semelhantes. Mas não só morte e a vida são ameaças; há também poderes cósmicos que ameaçam o homem, um mundo povoado de poderes, supostos ou verdadeiros, que exercem domínio sobre o ser humano. Como se isso tudo não bastasse, o homem se sente ameaçado tanto pelo presente quanto, mais ainda, pelo futuro incerto. Isso tudo impede o ser humano de se empenhar em favor das muitas causas da Humanidade; afinal, cada um precisa se virar por si e para si mesmo. Mas, estão aí também os poderes concretos do mundo, incorporados por governantes, juizes e superiores, todos eles usando a espada para destruir de fato (v.35). Ora, esta realidade não mudou muito até os nossos dias. Hoje as formas de matar e destruir pessoas e grupos sociais são mais sutis e bem mais devastadoras. E é neste particular da relação com os poderosos que os cristãos se deixam corromper mais facilmente, quer procurando vantagens particulares, quer tentando privilégios para a comunidade cristã. E o medo de perder certas regalias é que leva à conclusão antibíblica, segundo a qual a Igreja não tem nada a ver com a política, mormente quando é preciso criticar. Por isso, é preciso dizer bem alto que também os poderosos deste mundo não podem separar-nos de Deus. Em seguida, o apóstolo menciona altura e profundidade e talvez pense em todos aqueles poderes representa-dos por astros e pela astrologia, grandezas temidas até os nossos dias. E, para arrematar, Paulo repete: … nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus. Se, por um lado, o apóstolo emprega uma série de conceitos conhecidos na época e que, cada um por si, refletem algum poder concreto ou tido como tal, por outro lado, certamente pode-se afirmar que ele usa todos os termos para ter certeza de que não ficou nenhuma brecha pela qual algum poder pudesse penetrar. Todos os poderes estão aniquilados e não são capazes de nos separar de Deus.
III — Reflexão a caminho da prédica
Nosso texto que, sem dúvida, tem características de um hino de louvor, nos mostra um Paulo tremendamente sóbrio frente ao mundo e aos poderes de qualquer tipo. Aqui estamos diante de uma verdadeira secularização; isto é, aqui as coisas vão para o seu devido lugar, o que, aliás, já pode ser constatado, por exemplo, em Gn 1 e 2 ou mesmo no SI 8. A diferença é que nos textos do Antigo Testamento o ponto de partida é a criação, enquanto que Paulo parte do sofrimento e da morte de Cristo. O efeito, porém, é o mesmo: Deus está acima de todos os poderes e forças, ainda que eles constituam ameaças bem reais (perseguição e espada, por exemplo). E o v. 3lb é a essência da secularização: Se Deus é por nós, quem será contra nós?''. Se isso é verdade, não há o que temer, quer morte, quer vida, quer poderes cósmicos, quer poderes constituídos. Deus liberta o homem para que ele possa encarar de frente todos os poderes (reais ou imaginários) e viver o discipulado apesar e, eventualmente, contra eles. Nada de uma glória que eleve o cristão alguns metros acima do chão; nada de um afastamento do mundo; nada de uma fuga para dentro do próprio arraial. Muito pelo contrário: proposta de Paulo é a vida a partir de Deus e na certeza do Deus conosco (Imanuel). Neste contexto vale a pena lembrar o hino de Lutero Deus é castelo forte e bom (Hinos do povo de Deus, n° 97). Para os desavisados Lutero poderia estar convidando à fuga do mundo; na verdade, ele colocou a mensagem do Evangelho para dentro do mundo e viveu este mundo como poucos.
Nosso texto dá subsídios para diversas prédicas. Uma só jamais poderia esgotar todos os assuntos levantados e se ela o fizer será muito superficial. Esta constatação já nos obriga a delimitar algum assunto. Por outro lado, a proposta para esta série é partir da realidade e enfocá-la a partir de um contexto. Como agosto é o mês do desgosto, nada mais óbvio que se destaque um dos problemas sérios da humanidade que é a superstição. Vimos acima que Paulo alude a poderes dos mais diversos que acabam enredando e escravizando o homem.
Nos manda a tradição evangélica que tudo o que cheira a superstição é condenável, pecaminoso e diabólico. Parece que, com o correr do tempo, sempre mais fenômenos foram atirados para dentro deste caldeirão de coisas condenadas. Com isso, porém, perdemos a capacidade de discernir entre medicina popular e superstição e pão mais nos perguntamos por causas da superstição. Uma pequena cena pode ilustrar o fenômeno: Eu explicava os 10 mandamentos ao meu primeiro grupo de confirmandos. Um deles havia faltado na vez anterior e pedi explicações. Sem rodeios ele disse que tinha ido a um curandeiro. È fácil de imaginar que eu parti para cima da vítima. Aqui estava um transgressor dos mandamentos. Ainda não refeito da minha catilinária o jovem se defendeu: Mas eu só fui num arrumador de osso!
Nosso discurso, quando se fala de superstição, quase sempre é apologético e cheio de condenações indiscriminadas o que, no mínimo, é um franco desrespeito ao ouvinte. Além disso, nós nos esquecemos de perguntar pelas causas que levaram muitos — certamente não todos! — a este tipo de prática. Até que ponto a medicina impessoal de hoje leva a pessoa a procurar outros recursos? Até que ponto os preços da medicina moderna pressionam pessoas a se atirarem em outras direções? Até que ponto a nossa prática eclesial racional e fria estará dando margem a que pessoas procurem por ambientes nos quais elas são mais aceitas e respeitadas? (Cf. Wangen.) Falar da superstição sem que nos façamos estas perguntas é mais um desrespeito ao ouvinte.
O texto nos propõe sobriedade e, com isso, discriminação dos fenômenos. Se é que, por causa de Deus, nada poderá ser contra nós, então uma prédica sobre a superstição, antes de condenações e colocações dogmáticas, deverá abrir o debate e a reflexão sobre o que é e o que não é superstição.
Será necessário destacar tudo aquilo que faz parte da medicina popular e que nada tem de superstição. Há muito massagista, arrumador de osso, chazinho da vovó, conhecedor de plantas e dos fenômenos da natureza que merecem o nosso respeito.
Há, ao mesmo tempo, o charlatanismo perigoso que, para conseguir credibilidade, usa supostas fórmulas mágicas e cria uma depen¬dência no cliente.
Há a superstição que escraviza. Ela se concretiza em números de sorte ou azar, em horóscopos, na quiromancia, no ocultismo (cf. Weingaertner), no fechamento do corpo (magia branca) e no despacho (magia negra), no medo de que o time da gente perca, pelo que se usa sempre a mesma roupa quando ele joga (João Figueiredo), no medo de desvelar-se demais diante dos outros, pelo que só se pode ser fotografado sempre do mesmo lado (Júlio Iglesias). Estes são exemplos de coisas que escravizam e criam dependência. Aqui é preciso proclamar com clareza: Se Deus é por nós, quem será contra nós?; e isso, não para condenar as pessoas que estão enredadas, mas para ajudá-las a sair desta escravidão.
IV — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: É fácil dizer com a boca que só tu és o Senhor de nossas vidas. Na prática, porém, nos deixamos levar por outros poderes e menosprezamos o teu senhorio Perdoa-nos, Senhor, e ajuda-nos a viver e celebrar sempre de novo que só tu és Senhor e Salvador em nossas vidas. Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Nós nos dizemos um mundo secularizado e evoluído. Entretanto, prendemos a nossa vida a poderes, ainda que eles sejam falsos. Queremos garantir e ganhar a nossa vida e nem notamos que justamente assim a estamos perdendo. Ajuda-nos, Senhor, a colocar toda a nossa confiança somente em ti, pois em tuas mãos está o nosso viver e o nosso morrer. Amém.
3. Assuntos para a oração final: Constatar que a criatura humana é presa fácil de todos os tipos de poderes. Constatar que muitas vezes nos deixamos escravizar por estes poderes. Pedir que Deus ajude para que saibamos discernir entre aquilo que é bom e aquilo que atrapalha e destrói a vida. Pedir que Deus ajude a sua Igreja na tarefa de libertar as pessoas de todos os poderes que possam existir. Pedir que Deus esteja conosco neste afã a fim de que não condenemos simplesmente, mas testemunhemos concretamente o amor cristão a estas pessoas.
V — Bibliografia
— ALTHAUS, P. Der Brief an die Römer. In: Dos Neue Testament Deutsch. Vol. 6.10a. ed. Göttingen, 1966.
— DE QUERVAIN, A. Meditação sobre Romanos 8.33-39. In: Herr tue meine Lippen auf. Vot. 4. 4a ed. Wuppertal/Barmen, 1963.
— SEITZ, M. Meditação sobre Romanos 8.31 b-39. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 56. Caderno 11. Göttingen, 1967.
— VOIGT, G. Meditação sobre Romanos 8.31b-39. In: Das heilige Volk. Göttingen, 1979.
— WANGEN, R. Questões que a religiosidade popular levanta em mim. In: Estudos Teológicos. São Leopoldo, 16(3): 33-36,1976.
— WEINGAERTNER, N. Ocultismo — religiosidade popular? In: Estudos Teológicos. São Leopoldo, 16(3): 25-32, 1976.
— WESTERMANN, C. Abriss der Bibelkunde. 2a ed. Stuttgart, 1962.