I – Prosperidade: uma promessa divina
Na Bíblia a prosperidade é uma promessa divina, externada de diversas maneiras e em diferentes épocas da vida do povo de Deus. Comumente ela vem ligada a verbos como prosperar, aumentar, abundar, multiplicar, crescer, enriquecer, entre outros. Pela prosperidade suplicam os fiéis (Sl 118.25), e a fartura é o que Deus assegura estar reservado para as pessoas que o temem e guardam a sua lei, respectivamente os seus mandamentos (Dt 28.1-14; Js 1.8; Sl 1.1-3; 112.1-3). Por isso se afirma em Pv 10.22 e 22.4: “A bênção do Senhor enriquece”, e “Para conseguir riqueza, respeito dos homens e uma vida feliz, você precisa ser humilde e obediente ao Senhor”. Logo: “Quem confia no Senhor prosperará” (Pv 28.25), e “[…] nos dias em que buscou ao Senhor, Deus o fez prosperar” (2Cr 26.5).
Dt 28.1ss torna claro que não se trata, nestes casos, unicamente de fartura e abundância em dinheiro ou em bens de consumo, como moradias. A prosperidade prometida por Deus abrange todas as esferas da vida, e as bênçãos são prometidas para a vida na cidade e no campo, envolvendo, neste último, sobretudo fartura de colheitas, celeiros abarrotados e multiplicação do gado. Por ser a prosperidade uma bênção divina em sentido amplo, é mais do que natural que a Bíblia, ao lado do seu aspecto material, enfatize também a sua dimensão espiritual. Ela o faz destacando o crescimento da igreja e da palavra de Deus (At 6.7; 9.31; 12.24; 19.20), ou então apontando para a necessidade de crescer e aumentar – ou seja, prosperar – no amor, na fé, no conhecimento de Jesus e nas ações de graça (Lc 17.5; Cl 2.7; 1Ts 3.12; 2Pe 3.18). Ef 4.15 resume o aspecto da prosperidade espiritual exortando: “Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo […].”
Nem sempre a promessa de prosperidade vem atrelada ao cumprimento da lei de Deus como um todo. Em algumas passagens ela vem associada à prática de mandamentos específicos como, por exemplo, o das primícias, dos dízimos e das ofertas (Gn 14.18s; Ml 3.8-12; Pv 3.9-10) ou, então, de recomendações para a ajuda aos pobres carentes (Pv 19.17; 22.9; 28.27; Is 58.10s; Mt 6.1-4), respectivamente, a comunidades carentes, como em 2Co 9.6-11. Várias das passagens citadas expressam a certeza de que doações desse gênero, ao contrário de trazerem prejuízo aos fiéis, em verdade farão com que Deus os recompense generosamente, pois “aquele que pouco semeia pouco também ceifará; e o que semeia com fartura com abundância também ceifará” (2Co 9.6; cf. o mesmo princípio – “o que se semeia é o que se colhe” – em Pv 11.24-26; 22.8s; Jó 4.8; Ob 15; Ef 6.8 e Gl 6.7).
II – Nem toda prosperidade representa bênção divina
Vários textos dão conta da existência de pessoas prósperas, mas cuja abundância não provém do temor e da obediência a Deus. Trata-se da prosperidade dos perversos e ímpios. Jó 21, o Sl 73 e textos como Is 5.8ss a descrevem em detalhes. Costuma vir associada com violência e opressão (Sl 73.6-8; Is 5.18, 20). Esta constatação faz da prosperidade uma realidade ambígua – ela tanto pode retratar uma bênção de Deus, quanto ser o resultado de valores e práticas contrárias a Sua vontade.
III – Entraves à prosperidade
Há algumas passagens na Bíblia – mesmo que poucas – em que a falta de prosperidade é atribuída aos próprios necessitados. Este é o caso, por exemplo, quando não há vontade para o trabalho (Pv 6.6-11; 10.4; 14.23; 20.4-13; 2Ts 3.10 – cf. também Pv 28.19 e 23.20s).
Na maioria dos casos, a palavra de Deus identifica a desobediência aos mandamentos divinos como o maior entrave à prosperidade (Dt 28.1ss, também 28.15ss). Esta desobediência leva à prática da injustiça, que pode manifestar-se legal e estruturalmente por leis que oprimem os necessitados e menos favorecidos (Is 10.1-4; Am 5.6ss; Mt 23.4; Mc 3.1-6), impedindo a sua ascensão social e econômica, ou seja, a sua prosperidade. Em outros casos, o entrave é resultado da transgressão de leis estabelecidas, como, por exemplo, das leis que solicitam não cobrar juros de pessoas carentes (Êx 22.25; Lv 25.35-38; Dt 23.19s) e não reter o salário de diaristas (Dt 24.15; Tg 5.1-5). A própria justiça, quando corrompida, favorece só a um segmento minoritário da população (Am 2.6; 6.12; Is 1.23; 32.7; Jr 5.28; 22.17; Mq 3.11 e 7.3). Alguns textos também deixam transparecer os prejuízos acarretados pelo desejo do acúmulo irrefreável dos bens, travando uma melhor distribuição de renda entre a maioria populacional (Is 5.8; 65.21ss; Jr 17.11; Mq 2.1-3; Mt 6.19-21; Lc 12.16-21).
Para a Palavra de Deus, estes e outros entraves colocados à prosperidade dos necessitados revelam não só falta de justiça e retidão, mas também de misericórdia e sensibilidade: Os 6.6; 14.3; Mq 6.8; 7.18; Mt 12.7. Jesus entendeu claramente que, se ao invés da injustiça, fosse buscado com prioridade – “em primeiro lugar” – o reino de Deus e a sua justiça, também os carentes haveriam de prosperar, pois não lhes faltaria mais comida, bebida e vestimenta (Mt 6.25-34 – cf. o v. 33!). Já o AT criticou duramente uma prática de piedade que se agradava em oferecer sacrifícios a Deus e ao seu templo, mas que não se dignava a zelar – com igual empenho – pelos sacrifícios em favor dos necessitados (1Sm 15.22; 7.1-11; Os 6.6; Am 5.21-24).
Os entraves colocados à prosperidade do povo de Deus explicam por que em países de tanta riqueza como a Palestina da época de Jesus (e o Brasil da atualidade!) existe tanta pobreza e carência. Explica também por que Jesus não terminou os seus dias como próspero pregador itinerante da Galiléia, Samaria e Judéia, mas como perseguido e crucificado, dando-se resultado semelhante também com vários de seus apóstolos (por exemplo, 2Co 4.7-11).
IV – Limites e finalidade da prosperidade
Há limites evangélicos para a prosperidade material? O NT intui com muita sabedoria que o acúmulo de bens e riquezas gera idolatria, ou seja, gera o apego e o amor ao dinheiro e aos bens e a dependência deles (Mt 6.19-21; Mt 6.24; Lc 12.16-21; 1Tm 6.10). Logo, o limite da prosperidade está dado quando não serve mais às necessidades reais, mas, em função do acúmulo, cria sempre novas e diferentes “necessidades” adicionais.
O limite da prosperidade é confirmado quando refletimos sobre a sua finalidade segundo o testemunho bíblico. Nos textos se confirmam dois importantes princípios:
1) A natureza última da prosperidade é coletiva. Deus a deseja para todo o seu povo, mesmo que seja sensível a petições individuais, como no caso de muitos salmos. No NT essa natureza coletiva é confirmada pela eclesialidade do povo de Deus: ele é o corpo de Cristo, onde todos são mutuamente dependentes e devem praticar a mútua solidariedade (At 2.42ss; 4.32ss; 1Co 12.25-27; 1Co 13). Por isso, em comunidade, a prosperidade de um membro já não será mais só sua – o será de toda a congregação; e a necessidade de um membro também já não será mais unicamente sua – será compartilhada pela comunidade, dentro da qual as e os fiéis devem levar mutuamente as cargas uns dos outros (Gl 6.2).
2) Esta natureza – originalmente coletiva – das bênçãos da prosperidade nos faz entender por que houve salvação na casa de Zaqueu quando resolveu dar metade dos seus bens aos pobres e devolver quatro vezes o valor de suas fraudes (Lc 19.1-10). Explica também por que Lucas dá tanta importância à prática das esmolas e da generosidade (Lc 11.39-41; 12.33; At 9.36; 10.2,4,31; 24.17 – cf. Lc 7.34ss e 14.12s) e por que Paulo faz uma exortação aos ricos no sentido de “que pratiquem o bem, sejam ricos de boas obras, generosos em dar e prontos a repartir” (1Tm 6.18). A partilha dos bens, a sua distribuição mais eqüitativa, é a finalidade última das bênçãos advindas da prosperidade material. Só assim haverá mais igualdade, podendo Deus ser o Pai de todas as pessoas para que elas sejam realmente uma fraternidade solidária, em vez de um conjunto de crentes egoístas e individualistas (2Co 8.13-15).
V – Considerações sobre a “doutrina da prosperidade” (DP)
Sobre o pano de fundo deste resumo do posicionamento bíblico, pode-se avaliar a nova “doutrina da prosperidade” (DP), como divulgada pelas igrejas de cunho neopentecostal, a exemplo da Igreja Universal do Reino de Deus e da Igreja Internacional da Graça de Deus, entre outras. A DP, fortemente influenciada pela corrente da “confissão positiva”, entende que todas as pessoas crentes devem e podem prosperar, desde que:
a) se transformem em fiéis e abnegadas dizimistas e doadoras de ofertas, pois, o princípio bíblico reza: “aquele que semeia pouco, pouco também ceifará; e o que semeia com fartura, com abundância também ceifará” (2Co 9.6), e “dai, e vos será dado” (Lc 6.38). No Brasil cunhou-se a expressão, num desvirtuamento da oração atribuída a São Francisco de Assis, “é dando que se recebe”;
b) se tornem plenamente cientes dos seus direitos de prosperidade, assegurados pelo próprio Deus em sua Palavra, para o que se recorre a textos como Ml 3.8-12; Lc 6.38; 2Co 9.6ss, entre outros;
c) saibam exigir e reivindicar junto a Deus a validade e o cumprimento desses direitos “em nome de Jesus”, isto porque “direito não reclamado é direito não existente”;
d) saibam permanecer firmes e convictas em suas exigências a Deus, jamais vacilando ou duvidando do seu cumprimento, mesmo que as aparências e as evidências apontem para o contrário. A base bíblica costuma amparar-se em textos como Mt 7.7s. A fé numa vida de abundância cria a realidade do sucesso; o vacilo, a dúvida e a insegurança quanto à prosperidade criam o fracasso. A fé e as palavras que lhe dão expressão são entendidas como forças que, uma vez verbalizadas, criam as próprias realidades que expressam. Dentro desta lógica, é errôneo rogar ou suplicar a Deus com expressões como “se for da tua vontade”, ou “que assim seja”, já que elas retratam dúvida quanto à absoluta convicção do atendimento divino. Os cristãos devem, muito mais, decretar, reivindicar e determinar o seu direito à felicidade;
e) estejam libertas de influências ou possessões demoníacas, que conservam os fiéis sob o domínio do pecado.
Tais pilares doutrinais da prosperidade, pregados com insistência diariamente pelos vários meios de comunicação, colocam as pessoas fiéis não-prósperas em situação constrangedora, culpabilizando-as ao lhes atribuir falta de fé nas promessas divinas ou então sugerindo possessão por demônios.
As críticas que cabe fazer a uma tal doutrina, podem ser resumidas nos seguintes pontos:
1. Há uma supervalorização do cumprimento do dízimo, entendido literalmente, em detrimento do cumprimento de todas as demais prescrições da lei bem como de outras ofertas solicitadas no AT, como as primícias e as “ofertas instituídas” (hebraico: terumah). Se quiséssemos ser exatos, à luz de textos como Dt 28.1ss, o descumprimento de qualquer um dos diversos mandamentos de Deus por si só já poderia implicar na suspensão das bênçãos prometidas! Note-se que na DP também costuma ser omitido que nem Jesus nem os apóstolos conclamaram para a doação de dízimos, e sim, unicamente para que cada qual desse aquilo que conseguisse dar com boa vontade e alegria, e não por tristeza ou coação (2Co 8.12; 9.7). E, por último: dificilmente se problematiza o dízimo como contribuição percentualmente eqüitativa de todos os fiéis, quando se sabe muito bem que a décima parte de um salário mínimo representa um valor proporcionalmente muito superior ao dízimo pago por quem recebe numa faixa entre 10 a 20 salários!
2. Para a DP as bênçãos na forma de abundância e prosperidade transformam-se de uma dádiva, que Deus, em seu amor, promete graciosamente às suas criaturas, em um direito, que se pode exigir e cobrar dEle. No entanto, a nossa condição de criaturas não ultrapassa biblicamente a de textos como Lc 17.10: “Também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer”; ou 1Co 4.7: “[…] E que tens tu que não tenhas recebido? […]”. A postura que reclama prosperidade como direito ignora, ademais, as diferenças entre Deus, Criador, e os seres humanos, suas criaturas: é só a Deus que cabe, em última análise, o governo do mundo (Is 40.12ss; Sl 145.13). Também não cabe a uma criatura tirar de Deus a liberdade para decidir a hora e o lugar para derramar as suas bênçãos (Ec 3.9-15; Mc 4.26-29). O mais grave nessa postura de exigência, contudo, é que (segundo Rm 3.21ss; Gl 2.15ss e Fp 3.8-9) toda criatura, por praticar a injustiça, depende, no que concerne à sua salvação – a sua prosperidade incluída – total e exclusivamente da graça de Deus. Portanto, se se quer falar da lógica do Do ut des (“dou para que dês”) ou do “É dando que se recebe” para caracterizar a nossa relação com Deus, então só podemos fazê-lo na consciência de que todo e qualquer recebimento não é nem direito nosso nem dever de Deus, mas unicamente expressão da Sua graça, não cabendo, pois, ser decretado e determinado, mas somente pedido e suplicado com humildade e na consciência de pecado.
3. A DP exalta indevidamente a prosperidade material, em detrimento de uma prosperidade em outras áreas da vida, como na fé, no amor e na esperança. Além disso, o seu acento no direito e dever de cada fiel de ser próspero advoga uma escatologia já plenamente realizada no aqui e agora, contrariando a dialética entre o “já” e o “ainda não”, tão característica de ambos os Testamentos. Em Jesus e na fé nele o Reino de Deus se faz presente já agora, mas o reino consumado está resguardado para o futuro. Portanto, “ainda não” vivemos nele, mas estamos a caminho.
A DP é exageradamente individualista. Não fomenta espírito de partilha e distribuição dos bens. Também se apresenta como não-profética e politicamente conservadora. Não procura ver as raízes estruturais da pobreza e do desemprego, muito menos os interesses gananciosos por detrás da concentração de renda. Coloca sobre a responsabilidade de demônios o que, na sociedade, é perfeitamente identificável e atribuível a interesses de pessoas, grupos e corporações. Daí que o seu combate ao mal da pobreza apela para uma mágica transformadora de palavras ditas com determinação, ao invés de se empenhar pela correção de estruturas de injustiça e das leis que as facultaram.
Não devemos permitir que os interesses econômico-financeiros que hoje determinam o processo de globalização sujeitem também a nossa fé a uma visão estreita de prosperidade individual e material. O Deus da vida é generoso e se compraz com a prosperidade de toda a sua criação – prosperidade que entendemos no sentido da vida plena a ser buscada diariamente pela fé em Cristo e pelo viver segundo o seu exemplo.
Porto Alegre, 19 de agosto de 2008.
Walter Altmann
Pastor Presidente