Prédica: Provérbios 16.1-9
Autor: Günter Wehrmann
Data Litúrgica: Ano Novo
Data da Pregação: 01/01/1983
Proclamar Libertação – Volume: VIII
I — Considerações introdutórias acerca do Livro dos Provérbios
O Livro dos Provérbios normalmente é muito pouco considerado nas pregações dominicais. Portanto, parece necessário fazer algumas considerações introdutórias com vistas ao texto em pauta.
Costumeiramente o Livro dos Provérbios é subdividido em dois blocos: caps. 1-9 (escritos após o exílio) e caps. 10-31 (coleção de sentenças sapienciais e provérbios do tempo do reinado).
Com vistas ao nosso texto, o segundo bloco é importante. Aqui se procura fixar o que acontece, baseado em experiências concretas. Tais provérbios existem em toda humanidade. São anteriores â letra e independentes da escrita: trata-se da concentração da experiência de um grupo. Eles não obedecem a uma certa teoria ou esquema. Às vezes até são contraditórios e desordenados, um em relação ao outro.
Os provérbios não procuram apenas constatar o que acontece. Voltam-se repetidamente para as contradições da vida social e as tensões dela decorrentes (cf. 10.15; 18.23; 22.2). Von Rad acha que eles não apelam para uma mudança ou transformação de tais situações sociais (cf. Rad, p. 154s). No entanto, pergunto, com muito respeito: Será que sentenças, como: Melhor é ter pouco com justiça do que grandes rendimentos sem o direito (16.8), refletem um simples conformismo com a situação injusta da distribuição dos bens? Ou será que tais sentenças não poderiam ser formuladas justamente pelos pobres, como protesto contra a situação reinante? Em todo caso, evidencia-se, que já antes do cativeiro, também nos provérbios, é percebido que o Senhor da aliança se preocupa com a justiça e o direito. Abominação para Javé è o soberbo (16.5), abominação para o rei é fazer a maldade (16.12), abominação para Javé é perverter o juízo (17.15), é usar dois pesos e duas medidas (2.10; 20.23). Em tais sentenças é percebível a seme-lhança com a pregação dos profetas.
Se ignorarmos este fato, a nossa interpretação dos provérbios tornar-se-á conservadora, aceitando ou até justificando a ordem do mundo atual. Porém, o Evangelho sempre questiona o que se estabeleceu.
Finalmente sejam ditas algumas palavras sobre os conteúdos básicos dos provérbios. Eles partem da experiência vivida, refletem sobre riqueza, pobreza, sucesso e bem estar. Muitas vezes até estabelecem uma inter-relação entre a maneira de viver e o consequente sucesso, respectivamente calamidade (Tun-Ergehen-Zusammenhang), o que, de certa forma, parece ser compensação divina. O ideal dos provérbios é o sábio, o justo — ambos os termos são usados quase como sinônimos (cf. Ringgren, p.10). Ser sábio não é algo teórico, mas é ser prático, ser entendido na vida, é a maneira justa de corresponder às necessidades e exigências da vida como Deus a quer para todos. Assim, os termos ”sabedoria, justiça e temor a Deus formam uma unidade inseparável (cf. caps. 1-9). Sob este ângulo todos os provérbios, até os que parecem ser os mais profanos, querem ser vistos.
II — Tradução
V.1: À pessoa (competem) planos do coração, mas do Senhor (vem) a resposta da língua.
V.2: Todos os caminhos (negócios, afazeres, maneira de viver) são (parecem) puros aos seus olhos, mas o que examina (pesa, avalia) os espíritos é o Senhor.
V.3: Confia ao Senhor (abwälzen = descarrega por cima do Senhor) as tuas obras, e os teus desígnios (planos) serão concretizados (estabelecidos).
V.4: Todas as cousas o Senhor fez conforme os seus desígnios, assim também (até) o perverso (ímpio) para o dia da calamidade.
V.5: Abominável é ao Senhor todo o arrogante (soberbo) de coração, com toda certeza: ele não ficará impune.
V.6: Pelo amor (misericórdia, graça) e pela fidelidade (longanimidade) a culpa é expiada (remida), e pelo temor ao Senhor escapa-se do mal (da calamidade).
V.7: Se os caminhos (o comportamento, a maneira de viver) de alguém agradam ao Senhor, ele o deixa ter paz também (até) com seus inimigos,.
V.8. Melhor é (ter) pouco com justiça (com Rechttun = fazer o que é direito), do que grandes rendimentos com injustiça (sem o direito).
V.9: O coração do homem traça (planeja) o seu caminho (manei-ia de viver e agir), mas o Senhor dirige o seu passo.
III — Considerações exegéticas
V.1: Tal sentença, ao contrário do provérbio popular, é obra dos sábios e sacerdotes na corte real (cf. Schwantes). Ringgren (p.68) interpreta da seguinte forma: A pessoa pode e deve refletir bem sobre uma pergunta; s. arte de dar uma resposta certa, isto é, achar cada vez a palavra adequada, é uma dádiva de Deus. De fato, muitas vezes sentimos dificuldade em expressar, de maneira adequada, o que pensamos, perdemos o tom, ou até nos falta clareza sobre a pergunta em pauta.
Esta sentença aponta para a distância que existe entre o coração (lugar do planejamento) e a língua (lugar da execução da fala). Longo è o caminho do planejamento bem ponderado até a palavra certa, dita na hora certa e no tom certo. Muita coisa pode atrapalhar. Aí nos confrontamos com o extra nos. O nosso planejar cauteloso chega ao seu limite (cf. Rad, p. 134),
V.2: Não apenas os pensamentos e planos, mas também os afazeres, os negócios, toda a maneira de viver, estão descobertos aos olhos do Senhor. Aos nossos olhos eles podem parecer puros e bons. Mesmo que não possamos ser acusados de nenhuma culpa, e mesmo que nem tenhamos consciência de nossa culpa, o Senhor perscruta os espíritos (poderíamos dizer o coração). Diante disso, qualquer justificação própria se torna ilusória. Rad (p.133), com razão, afirma que a pessoa está sempre totalmente no mundo e, ao mesmo tempo, totalmente diante de Deus.
V.3: Portanto, resta somente um caminho para o comportamento adequado e promissor: confiar as obras (tudo) ao Senhor. O que significa isto? Não mais planejar? Não mais agir? Não! Aqui não se intenciona fatalismo, pacifismo ou preguiça! Aqui se fala do mistério da inter-relação existente entre plano de Deus e plano humano, entre ação divina e ação humana. Deus usa a pessoa para, através dela, fazer a sua obra. Então nossas obras são feitas em Deus (Jo 3.21). Para nós isto implica precaução e despreocupação ao mesmo tempo. Isto é: planejar como se não se planejasse. (Voigt, p. 222). Isto é abnegação total Lembra a oração de Cristo em Getsêmane: Não seja feito conforme a minha vontade,… Neste contexto pode ser lembrado também Fl. 2.12-13.
V.4: É consolador saber que o Senhor fez todas as cousas. Por isso, elas têm nele a sua origem, alvo e sentido. Ele as fez conforme os seus desígnios, conforme os seus planos, e lhes deu a finalidade que ele quis. Esta fé na onipresença e onipotência de Deus (cf. 1 ° artigo do Credo Apostólico) até inclui e engloba aquilo que a razão tem dificuldade para compreender (refiro-me a v. 4b). Aqui está o limite da nossa razão teológica. Mas conforme o NT, o amor de Deus chega ao extremo: iustificatio impii. Aqui é expiada a culpa (cf. Voigt, p. 223).
V.5: Esta fé no Criador e Senhor da história sabe que para Deus é uma abominação, um nojo, quando a pessoa vive de maneira arrogante e soberba. Não podemos psicologizar isto, pois se trata de comportamento concreto e prático. Quando a pessoa pula por cima das leis justas que protegem o fraco, ela se torna arrogante e soberba aos olhos de Deus. Ele, que é soberano, certamente acertará as contas com aqueles que fizeram mau uso do seu poder, da sua inteligência ou da sua fé.
Vv. 6 e 7: Mas, quem teme ao Senhor, quem assume o seu devido lugar diante do Deus soberano, quem vive da misericórdia, da fidelidade e da justiça de Deus, este está sendo transformado por ele para poder ser misericordioso e fiel, para poder perdoar e colocar sinais de justiça. Assim Deus o guarda do mal e faz com que tenha paz, até com seus inimigos (cf. Gn 26. 27-31).
V.8: A cobiça é fruto da preocupação. Mas esta também è uma espécie de soberba que duvida da divindade de Deus (cf. Voigt, p. 221). Sim, tal cobiça, muitas vezes, anda de mãos dadas com a injustiça, a sonegação e a exploração. Não nos iludamos! Isto não passa despercebido aos olhos de Deus. Ele vai defender o direito dos injustiçados contra os exploradores e sonegadores. Portanto, é melhor ter pouco com justiça e ter Deus como seu defensor. No entanto, isto não serve para se conformar com as injustiças; pelo contrário, serve para levantar a voz denunciadora e para pôr sinais de justiça.
V.9: De uma certa forma este versículo retoma e, ao mesmo tempo, amplia o v.1. É consolador saber que o Senhor guia os nossos passos. Com esta confiança podemos e devemos planejar o nosso caminho, o nosso trabalho e a nossa vida toda. Subentende-se que tudo isso não tem apenas implicações individuais, mas também sociais e coletivas.
IV — Considerações homiléticas
Ainda uma palavra deve ser dita referente à relação do texto com o evento do Ano Novo. Não é mais preciso explicitar a interligação entre ambos. Neste evento, as pessoas que vão assistir ao culto (as outras que passaram a noite festejando e bebendo provavelmente nem estarão nó culto!) têm uma abertura especial para as seguintes perguntas: Valeu a pena viver no ano passado? O que eu faço com aquilo que não foi bom? Como posso viver melhor neste novo ano9 A tais perguntas, e outras mais, o texto procura responder. Será impossível considerar, ou até esgotar a mensagem de todo o texto numa prédica só. Portanto, é necessário formular um tema a partir do texto, que se relacione com o evento do Ano Novo
V — Meditação
Tema: O onipotente Deus tem tudo nas suas mãos.
1. Deus nos convida para uma avaliação de nossa vida
Ano Novo e/ou Silvestre é, para os que não vivem de maneira superficial, um marco importante. É um dia propício para parar, refletir e avaliar o que se passou, com vistas àquilo que está por vir. Neste sentido, as pessoas que vão ao culto trazem consigo muitas perguntas e esperanças (cf. item IV e atualize no seu próprio contexto!). Quem sabe, um traz consigo o fardo de um matrimônio destruído e o outro pretende casar-se; um traz consigo um pesado endividamento junto aos bancos e o outro pretende aplicar o seu dinheiro comprando um imóvel; um está desempregado e o outro goza de um emprego seguro e bem remunerado; um perdeu o filho num acidente e o outro está na feliz espera de um nenê; um chegou a crer em Cristo e o outro sente o próprio vazio dentro de si; um tem o seu ”Plano de Ação pronto e o outro não sabe como continuar…
Tão contraditória e até grotesca é a vida hoje. Todos anseiam por dias melhores e se esforçam para tal, quando já não resignaram. Como estamos nós com as nossas preocupações e expectativas diante de Deus no Ano Novo? O que Deus nos tem a dizer?
2. Deus nos tira tudo das mãos
O nosso trecho de Pv 16 é, à primeira vista, muito duro. Isso, porque ele nos questiona em nossa convicção de que o nosso falar seja correto e coerente (v.1). Aliás, se as nossas palavras fossem adequadas, não haveria desentendimento e separação. Ele nos questiona em nosso possuir e ter (v.8); ele questiona a nossa disposição de perdoar e amar (v 6); e, conforme o v.2, ele nos questiona na certeza de que os nossos caminhos (os nossos afazeres, negócios, palavras, pensamentos, enfim, toda a nossa maneira de viver) são puros e certos; ele nos questiona em nossa certeza de que os nossos planos e os nossos métodos, o nosso know how vingarão; sim, ele até questiona a nossa segurança religiosa, a nossa certeza de salvação. Pois, abominável é ao Senhor todo arrogante de coração (cf. item III, v.5). É arrogância e soberba enriquecer-se material ou espiritualmente a custa dos fracos e pequenos, aproveitando-se dos furos da lei, sonegando impostos, não pagando salário justo, não repartindo a terra com aqueles que nela precisam trabalhar para ganharem o seu sustento. É arrogância achar que o meu matrimônio não será destruído, como aconteceu com fulano; pois ninguém tem garantia; somente se pode viver da promessa de Deus (FI 1.6).
É percebível que, de fato, Deus nos tira das mãos tudo o que possamos usar para nossa própria segurança, certeza, sucesso ou justificação própria. E, de repente, caem os contrastes apontados no inicio desta meditação (cf. item V, 1). Assim surge a comunhão entre aqueles que estão com mãos vazias diante de Deus, Agora…
3. Deus nos põe tudo nas mãos
Ele nos contempla com o seu amor, sua misericórdia, graça, fidelidade e longanimidade (v.6), perdoando-nos a arrogância, na medida em que, humildemente, nos curvamos sob a cruz de Cristo. Desta maneira estamos sendo capacitados para perdoarmos o outro. Ele nos carrega e suporta em sua longanimidade e fidelidade; isto nos capacita para carregarmos e suportarmos um ao outro (Gl 6.2). Aceita e justifica-nos por graça; isto nos leva a romper este circulo diabólico do você vale pelo que produz, tem e consome e a viver gratuidade. Dá-nos a paz de maneira incondicional e gratuita, o que nos leva a ter paz, até com os inimigos (v. 7b). Assim, ele nos torna agentes da paz num mundo de guerras — agentes da paz que agem sem violência. Pois esta Cristo mesmo sofreu, uma vez por todas, na cruz. Deus nos faz perceber que ele é o Senhor que fez todas as cousas, que é origem, alvo e sentido de tudo. Isto o Espírito Santo nos faz crer, apesar e em meio de todas as contradições, adversidades e perversidades. Estas não terão a última palavra, mas, sim, o Senhor (1 Co 15.28)!
Por causa disso, temos uma esperança que não acaba, nem morre. Por causa disso, podemos confiar a ele todas as nossas obras, nossos planos, pensamentos, palavras, obras, negócios e toda a nossa maneira de viver.
Mas agora a coisa muda completamente. Ele assume o comando em nossas vida, orientando, questionando e corrigindo a nossa maneira de viver e agir. Este é o verdadeiro temor ao Senhor. Somente assim nos vale a promessa de que os nossos desígnios serão concretizados (v. 3b), escaparemos do mal (v. 6b), teremos paz com os inimigos (v. 7b). Pois ele estará dirigindo os nossos passos (v. 9b), e nós teremos verdadeiro futuro.
A pregação poderia seguir os passos da meditação, observando as questões exegéticas e homiléticas (cf. itens III e IV).
VI — Subsídios Litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus e Pai, no início deste novo ano, nós nos voltamos a ti. Queremos confessar humildemente as nossas falhas, transgressões e omissões. Tu sabes que, no ano passado, muitas vezes, seguimos os nossos próprios caminhos, ditados por nosso egoísmo, orgulho e arrogância. Assim, deixamos de lado os fracos e necessitados em nossa comunidade; nós nos conformamos com injustiça, exploração e marginalização; nós nos acomodamos, em vez de repartir o nosso tempo, nossos dons e bens com aqueles que de nós necessitavam Senhor aos teus olhos toda a nossa vida esta descoberta. Não nos rejeites! Mas perdoa, aceita e transforma-nos por causa de Jesus Cristo. Tem piedade de nós Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus e Pai, agradecemos-te que nos suportaste e carregaste até hoje e que possibilitaste o nosso encontro contigo e entre nós. Faze com que experimentemos agora verdadeira comunhão contigo com os irmãos. Faze com que a tua Palavra e a tua presença nos libertem e transformem, de maneira que este novo ano que iniciamos se torne um ano, com o qual tu te possas comprazer, isto te pedimos em nome de Jesus Cristo que reina contigo e com o Espirito Santo de eternidade em eternidade. Amém.
3. Assuntos para intercessão na oração final: agradecimento pela comunhão com Deus e uns com os outros; pedido para que Deus afaste de nós qualquer falsa segurança, soberba e arrogância material e espiritual; pedido para que ele nos torne humildes, a fim de que vivamos do seu amor, do seu perdão e da sua graça; pedido para que ele nos capacite para amarmos, perdoarmos, carregarmos e suportarmos uns aos outros; pedido para que este amor reine em toda a Paróquia, Distrito, Região e IECLB; intercessão pelos dirigentes e lideres da Igreja, em todos os níveis; que Deus lhes conceda humildade, perseverança e sabedoria: intercessão pelos governantes de nosso pais, em todos os níveis, para que promovam a paz, a justiça e o bem estar para todos, principalmente para os pequenos e fracos; pedido para que Deus nos capacite, use e envie como arautos da paz, da justiça e da esperança.
4. Hinos sugeridos: Se as águas do mar da vida Hinos do povo de Deus, n° 216;
Entrega os teus enfados — Hinos do povo de Deus, n° 188.
VII — Bibliografia
– RAD, G. von. Weisheit in Israel Neukirchen-VIuyn, 1970.
– RINGGREN, H. Sprüche. In: Das Alte Testament Deutsch. Vol. 16. 2. ed. Göttingen, 1967.
– SCHWANTES, M. Provérbios 16. São Leopoldo, 1978 (polígrafo).
– VOIGT, G. Meditação sobre Provérbios 16.1-9. In: Der helle Morgenstern. Berlin, 1956.
– WOLFF, H.W. Anthropologie des Alten Testaments. München. 1973.