Saberes e sabores da sabedoria
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Provérbios 9.1-6
Leituras: João 6.51-58 e Efésios 5.15-20
Autoria: Luiz Carlos Ramos
Data Litúrgica: 13º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 19/08/2018
1. Introdução
Os textos indicados para o 13º Domingo após Pentecostes estão conectados pelo tema da sabedoria e do banquete da vida. Na Epístola aos Efésios, o apóstolo Paulo admoesta aqueles e aquelas que o leem a adotarem um modo de vida sábio: administrando bem o tempo e aproveitando cada minuto; procurando compreender qual é a vontade de Deus para suas vidas; não se inebriando com vinho, mas transbordando no Espírito; louvando e cantando hinos ao Senhor; rendendo sempre muitas graças por tudo o que Deus faz; tratando a todos sempre com respeito e dignidade.
No texto do evangelho, Jesus se apresenta como o pão que desceu do céu e que se dá como alimento a todos quantos vêm até ele. Sua carne é verdadeira comida e seu sangue é verdadeira bebida, sustento para a vida eterna.
2. Exegese
(Observação: as versões da Bíblia utilizadas são referidas por suas siglas: NTLH – Nova Tradução na Linguagem de Hoje; ARA – Almeida Revista e Atualizada; ARC – Almeida Revista e Corrigida; TB – Tradução Brasileira; BP – Bíblia do Peregrino).
O livro de Provérbios faz parte da vasta literatura sapiencial de Israel que, por sua vez, vai desde os livros de Jó, Eclesiastes e alguns salmos, dentre os textos canônicos, até numerosos outros da literatura apócrifa, do judaísmo mais tardio. Quanto ao livro de Provérbios, conquanto a tradição atribua a maior parte do conteúdo ao lendário rei Salomão, as pesquisas demonstram que parte do material tem origem pré-exílica, sua compilação e edição final se deram em período muito mais recente: os aramaísmos e referências à lei e à profecia, por exemplo, sugerem um período posterior a Esdras.
De fato, não se pode indicar precisamente quem são os verdadeiros autores dos provérbios que aí vão colecionados, porque são, na prática, pinçados da sabedoria popular. São máximas, aforismos, ditos, axiomas, anexins, adágios que circulavam nas ruas, na roça, nas praças, nas casas, nos campos de batalha, enfim, nos lugares onde o povo convivia. Alguns desses ditos se destacaram e acabaram caindo no gosto popular. Alguns ficaram gravados na memória coletiva e iam passando de geração em geração, até que alguém teve as condições objetivas de registrá-las por escrito.
Essa informação sobre a autoria é relevante porque nos revela um dado determinante para a nossa chave hermenêutica: a verdadeira sabedoria não é patrimônio exclusivo de um autor esclarecido da classe privilegiada. O copyright da sabedoria pertence ao povo e, por isso, seus dividendos devem ser devolvidos a ele.
No capítulo 9, a sabedoria e a insensatez são apresentadas de maneira personificada, como se fossem duas mulheres, muito diferentes entre si contudo. A Senhora Sabedoria (NTLH, ARA, ARC, TB) é a própria Sensatez (BP, v. 1-6), respeitável, diligente e operosa. Já a Dona Insensatez (BP, v. 13-18) é indolente, desocupada, falta-lhe juízo (NTLH), louca e apaixonada (ARA), alvoroçadora e néscia (ARC), turbulenta e estúpida (TB). A perícope que nos corresponde omite a narrativa referente à Dona Insensatez, mas para compreender melhor os v. 1-6 é bom ter no horizonte os v. 13-18.
v. 1: A Sabedoria edificou a sua casa, lavrou as suas sete colunas. A Senhora Sabedoria é empreendedora e operosa. Edificar uma casa requer inteligência, conhecimento, experiência, tino, força, destreza. O uso simbólico do número sete é frequente. Pode-se supor, entre tantas outras possibilidades interpretativas, que a sabedoria é o resultado de uma construção (“sua casa”) que tem como base a busca diligente pela perfeição, a completude e o próprio Deus (número sete). Uma associação natural se dá com a parábola de Jesus a respeito do homem sábio que constrói sua casa e a fundamenta sobre a rocha. Neste caso, enfatizando a correlação intrínseca entre teoria e prática.
v. 2: Carneou os seus animais, misturou o seu vinho e arrumou a sua mesa. A Senhora Sabedoria é detalhista, atenta e caprichosa na organização do banquete, que está preparando para oferecer aos inexperientes, incautos e desajuizados: prepara o prato principal (animais cevados, cf. TB), prepara o bom vinho (ao que parece o vinho de então era mais denso que os atuais, precisava ser diluído com água e, eventualmente, com outras especiarias, para ser servido), arranja cuidadosamente a mesa. A abastança de carne e vinho da Senhora Sabedoria contrastam com a frugalidade de pão e água da Dona Insensatez. Parece sugerir que o alimento da sabedoria é substancial e de bom sabor, coisa de bom gosto, enquanto o da insensatez é escasso e insípido.
v. 3: Já deu ordens às suas criadas e, assim, convida desde as alturas da cidade. A Senhora Sabedoria é mulher de iniciativa, articulada, tem autoridade para enviar embaixadoras e poder de convocatória para atrair convidados. Ao passo que a Dona Insensatez apenas aguarda, sentada, que passem por ela os transeuntes, para então abordá-los e aliciá-los. Sua caracterização lembra a da prostituta, apresentada no capítulo 7. O banquete mencionado em Mateus 22 também surge como uma associação fácil.
v. 4: Quem é simples, volte-se para aqui. Aos faltos de senso diz. Seus convidados são a “gente tola” e “sem juízo” (NTLH), “simples” e “faltos de senso” (ARA), “faltos de entendimento” (ARC), “estúpido” (TB), “inexperiente” e “quem carece de juízo” (BP). Curiosamente, a Dona Insensatez usa as mesmas palavras no convite que faz à mesma gente simples e tola (v. 16). A semelhança nos termos do convite seria a razão pela qual os que carecem de entendimento são ludibriados pela Insensatez e acabam seduzidos por ela.
v. 5: Vinde, comei do meu pão e bebei do vinho que misturei. Pão e vinho no Novo Testamento haverão de se tornar termo técnico, associado ao convite para entrar na festa do reino de Deus. A associação com o memorial eucarístico é inevitável. O texto do evangelho do dia apresenta Jesus como o pão que desceu do céu, sua carne é verdadeira comida e seu sangue é verdadeira bebida. Estabelecendo as correlações, numa releitura cristológica dos Provérbios, sugere ser Jesus essa mulher sábia que dá de comer, que se dá como comida, e que come com os famintos e necessitados de juízo e entendimento (fome e sede de justiça?).
v. 6: Deixai os insensatos e vivei; andai pelo caminho do entendimento. Os que aceitarem o convite (imperativo) da sabedoria encontrarão o caminho para a vida e adquirirão a capacidade de discernir o que é certo e o que é errado. Mas sensatez e prudência (BP) não são meras aquisições intelectuais. São o resultado alcançado por quem se dispõe a assentar-se à mesa e se alimentar das ricas e saborosas iguarias servidas pela Sabedoria.
3. Meditação
Há uma diferença radical entre senso comum e bom senso. O senso comum é, amiúde, preconceituoso, discriminatório, reducionista, simplista e, a rigor, reflete a ideologia dominante. Por essa razão, o senso comum predomina nas massas e é ostentado pelas maiorias.
O bom senso, por sua vez, requer muito discernimento, capacidade crítica, autonomia de pensamento, lucidez e coragem, porque com frequência caminha na contramão do senso comum. É, por isso mesmo, para poucos. A Sabedoria é o estado próprio daquela pessoa que conseguiu migrar do senso comum e alcançar o bom senso.
A sabedoria não é, como alguns sugerem, o contrário da inteligência, mas a pressupõe. Considere-se o processo: na base estão os dados; colecionando-se dados, obtêm-se informação; cruzando-se informações, chega-se ao conhecimento. Com o conhecimento pode-se fazer muita coisa, desde encontrar a cura para uma doença até construir uma arma de destruição em massa. Quem constrói uma arma de destruição em massa detém, certamente, muito conhecimento, mas não se pode dizer que seja alguém sábio. Daí se depreende que sabedoria não é o mesmo que conhecimento.
A sabedoria, conquanto tome em conta dados, informações e conhecimento, é governada por uma força maior que a razão, o que determina seu modo de ser é o amor.
Rubem Alves, escrevendo para a Folha de São Paulo sobre a ciência e a sapiência, conclui: “[…] um piano, em si mesmo, é estúpido. […] Os pianos obedecem tanto ao toque de um macaco, de um louco ou do Nelson Freire. Os pianos não são fins em si mesmos. São ferramentas. São construídos para tornar possível a beleza da música. […] Para que o piano produza beleza, há os pianistas. […] A diferença está entre ‘ciência’ e ‘sapiência’. Os teólogos medievais diziam que a ciência era uma serva da teologia. Parodiando, eu digo que a ciência é uma serva da sapiência. A ciência é fogo que aumenta o poder dos homens sobre o mundo. A sapiência usa o fogo da ciência para transformar o mundo em comida, objeto de deleite. Sábio é aquele que degusta. Mas, se o cozinheiro só conhecer os saberes que moram na caixa de ferramentas, é possível que o excesso de fogo queime a comida e, eventualmente, o próprio cozinheiro…”.
Sugiro que a prédica se encaminhe de tal maneira que termine com um convite, tal como o da Senhora Sabedoria do texto de Provérbios 9.1-6. Um convite para que nos aproximemos da mesa da comunhão e participemos do saboroso banquete oferecido pela Senhora Sabedoria, que nos desafi a a superar os preconceitos, discriminações, reducionismos, próprios do nosso senso comum, e elevemos o nosso coração para o alto, até onde está a Sabedoria, o discernimento, a sensatez, a prudência e o supremo bom senso. E assim nos alimentemos do pão que desceu do céu, de tal maneira que seja para nós o corpo de Cristo, e o cálice seja para nós a vida de Cristo. Assim, alimentados pela sabedoria divina, podemos seguir revigorados pelo caminho do entendimento e da vida plena e abundante.
4. Imagens para a prédica
Há muitos contos que tratam do tema da sabedoria. Escolhi um, de autoria não identificada, que poderia vir a ilustrar, isto é, lançar luz sobre o tema da prédica.
A mulher sábia e a pedra
Uma mulher sábia, em sua jornada, quando atravessava as montanhas, encontrou em um córrego uma pedra preciosa. No dia seguinte, ela cruzou com outro viajante que estava faminto. Ela abriu sua mochila para compartilhar um pouco da sua comida. O viajante faminto viu a pedra preciosa e pediu à mulher que a desse a ele. Ela lhe deu a pedra sem a menor hesitação. O viajante partiu, regozijando-se por sua boa fortuna. Ele sabia que a pedra era valiosa o sufi ciente para garantir-lhe conforto pelo resto da vida. No entanto, alguns dias mais tarde, o homem devolveu a pedra à mulher sábia. “Eu estive pensando” – disse ele. – “Sei quão valiosa é essa pedra, mas eu a devolvo na esperança de que você possa me dar algo ainda mais precioso. Dê-me o que você tem dentro de você, que é ainda mais valioso. Dê-me o que fez com que você fosse capaz de me dar aquela pedra.
5. Subsídios litúrgicos
Credo
Creio na sabedoria de Deus.
Creio na sabedoria divina,
cuja casa está edificada sobre as colunas inabaláveis
da justiça e do direito, da bondade e da ternura,
da sensatez e da paz,
e, acima de tudo, sobre a coluna do amor.
Aceitamos de bom grato o feliz convite
para nos assentarmos à mesa farta do pleno conhecimento,
e nos alimentarmos do Pão da Vida e bebermos do Cálice da Salvação.
Reafirmamos nosso desejo e compromisso de deixar a insensatez,
para andar pelo caminho da vida plena e abundante.
Bênção
Que a instrução divina nos ensine.
Que a educação divina nos transforme.
Que a sabedoria divina nos conduza hoje, amanhã e depois.
Amém.
Bibliografia
STORNIOLO, Ivo. Bíblia do peregrino. Tradução de José Bortolini. São Paulo: Paulus, 2002. 2 v., il., mapas.
THE INTERPRETER’S Bible: the Holy Scriptures. The Book of Psalms. The Book of Proverbs. New York: Abingdon; Nashville: Cokesbury, 1954. v. 4.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).