I.
A pergunta, se riqueza é bênção ou maldição, não é nova. Acompanha o ser humano desde há muito tempo. Nos dias de hoje, porém, adquiriu especial insistência. O contraste entre países ricos e pobres, o lado a lado de extremo luxo e extrema miséria no mesmo país e na mesma cidade, o aumento do fosso entre a população bem e mal situada, o inchaço das favelas e os lucros fantásticos da especulação financeira, isto inquieta a consciência cristã e deve inquietar qualquer pessoa de boa vontade. Está comprovado que a falta de perspectivas, principalmente entre jovens, é um dos grandes incentivos dos fugitivos econômicos e da onda de violência que assola o Brasil e o mundo. Será correto dizer que toda riqueza é bênção e que foi Deus quem assim distribuiu os bens da terra?
É evidente que as coisas não são assim tão simples. A experiência humana ensina que a riqueza pode transformar-se em maldição. Escraviza as pessoas e provoca um terrível medo de perder o que se tem. Em nosso País, aliás, a desigualdade social é particularmente escandalosa, acusando vergonhoso atraso no desenvolvimento. Uma sociedade peca, quando se mostra incapaz da justa distribuição dos recursos. Pois o excesso de uns produz a necessidade de outros e pode significar roubo daquilo a que estes têm direito.
Para todas as pessoas proprietárias de bens, ainda que modestos, tais pensamentos são incômodos e mexem com a consciência. Porventura, será pecado possuir alguma coisa? Urge refletir sobre essas questões. Autenticidade cristã, moral, pessoal está em jogo. Sim, está em jogo o bem estar da sociedade como tal. Que dizer com respeito às posses? Serão bênção ou maldição? Vejamos o testemunho da Bíblia.
II.
A consulta ao Antigo Testamento não fornece uma resposta unívoca, muito embora permita fazer valiosas observações. Há duas linhas de pensamento contrastantes:
1. Por um lado, bem estar e riqueza aparecem claramente como bênção divina. Celeiros abarrotados, fertilidade de campos, de animais e seres humanos, fartura são promessas dadas a quem segue os mandamentos de Deus e lhe respeita a vontade (cf. Deuteronômio 28.1-14). “A bênção do Senhor enriquece” (Provérbios 10.22). Portanto, riqueza é vista como algo positivo. É dom de Deus, fruto merecido de trabalho esforçado e de mordomia responsável (Provérbios 10.4s; 24.3). É claro que sob tal perspectiva, pobreza acusa ausência de bênção. Será vista como fruto culposo de desobediência, de preguiça e comportamento negligente.
Essa linha de pensamento pode ser encontrada em amplas porções do Antigo Testamento, desde a história dos patriarcas até o livro de Jó. É bem verdade que neste livro a concepção da riqueza como bênção entra em crise. Jó não se conforma com os golpes sofridos. A repentina pobreza que o sobreveio confunde seu modo de pensar, de acordo com o qual um justo, tal como se julga, não merecia a desgraça. Jó se nega a aceitar que sua pobreza seja decorrência de algum pecado que teria cometido. Ainda assim, apesar de questionar a identificação de riqueza e bênção, este livro confirma a força deste pensamento. Ele prevalece também no rabinismo da época do Novo Testamento e exerce forte influência ainda hoje.
2. De outro lado, observa-se uma linha de pensamento altamente crítico. Riqueza tem seus perigos. Cria a ilusão de falsa segurança (Provérbios 18.10), rouba o sono das pessoas (Eclesiastes 5.12), conduz ao pecado. “Melhor o pobre que anda na sua integridade do que o perverso nos seus caminhos, ainda que seja rico” (Provérbios 28.6). Os mais proeminentes representantes deste pensamento crítico são os profetas. Muita riqueza tem sua origem não em trabalho honesto, mas em exploração e injustiça. Através de tributos irregulares (Amós 5.11), adulteração de medidas e pesos (Amós 8.5), acúmulo de propriedades (Isaías 5.8s) são oprimidos os pobres, criam-se desníveis sociais, são destruídos os miseráveis da terra (Amós 8.4). Sob tais condições riqueza não pode ser bênção. Merece antes o juízo de Deus, tal como os profetas o proclamam.
Qual destes pensamentos terá razão? Ora, em ambos se articulam experiências válidas. Quem poderia negar que trabalho honesto, esforço individual e vida disciplinada merecem recompensa e sucesso e que, sob circunstâncias normais, também os têm? Agir de modo responsável com o que se tem, ou não, isto faz alguma diferença. Se, por exemplo, distribuo a mesma quantia de dinheiro a várias pessoas, verei depois de certo tempo que dele fizeram uso diverso. Uns, talvez, o tenham esbanjado, outros o investiram em algo útil. Porventura, pode o esbanjador queixar-se de que o outro está melhor de vida? Deus reprova o desperdício e a preguiça. Mas a trabalho ordeiro e responsável dará sua bênção. Esta é uma realidade.
Da mesma forma, porém, é evidente que muita riqueza não resulta de trabalho honesto, mas sim de corrupção, tráfico de influência, especulação, roubo. Resulta de uma legislação ou de um sistema que privilegia os fortes e tira a vez dos fracos, gerando pobreza e miséria. É assustador observar a tirania que as posses podem exercer sobre as pessoas. Fazem-nas cruéis, ávidas, desumanas. A alma então afoga no desejo de possuir. Isto nada tem a ver com bênção. Aqui começa a idolatria do dinheiro que produz maldição. Ela se revela nas distorções e nos conflitos sociais, na guerra por mercados, bem como na frustração, na solidão e no permanente medo dos que afundam no luxo. Esta é a outra realidade.
O problema é que as pessoas costumam enxergar somente uma das realidades. Dizem, então, que todos os pobres são preguiçosos, ignorando os brutais mecanismos de exploração na sociedade. Ou, então, culpam exclusivamente as estruturas ou o sistema capitalista das desigualdades sociais, como se responsabilidade individual não importasse. Bem mais presente entre nós, porém, é a primeira afirmação, que atribui a desgraça dos pobres indistintamente a eles próprios. Isto não é justo. Pois importa enxergar ambas as realidades e saber distinguir. Que significa isto em termos práticos?
III.
Antes de prosseguir, devemos considerar o Novo Testamento. Que diz ele a respeito da riqueza?
É interessante que nem Jesus nem a primeira cristandade dizem ser a riqueza uma bênção. É verdade que também não se fala em maldição. Não é culpa do agricultor insensato de Lucas 12.16s que fez boas colheitas e se tornou homem rico. A abundância que Deus dá jamais é castigo ou maldição. Ainda assim, o Novo Testamento é altamente crítico frente às posses, mostrando estar profundamente comprometido com a tradição profética do Antigo Testamento. Se vemos bem, são três as principais razões:
1. Riqueza engana as pessoas. Podemos bem observá-lo no exemplo do já mencionado agricultor. Ele é insensato por julgar que é na abundância de bens que se realiza a vida de uma pessoa (Lucas 12.13s). A riqueza produz a sensação de estar em posse de uma garantia de vida, uma ilusão que pode facilmente estourar como bolha de sabão: “Louco, esta noite te pedirão a tua alma!” (Lucas 12.20) As riquezas não podem dispensar da necessidade que o ser humano tem da graça divina. Infelizmente, porém, a fascinação que exercem e as ficções que criam costumam sufocar a palavra de Deus e impedir que ela traga fruto (cf. Mateus 13.22).
2. Riqueza cativa as pessoas e lhes tira a liberdade. Periga constituir-se em ídolo. Por isto Jesus diz: “Não podeis servir a Deus e às riquezas” (Mateus 6.24). Sinal da possessão pelas riquezas é a avareza, a cobiça ou a ganância que, por esta razão, pertence aos vícios a serem evitados (cf. 1 Coríntios 6.10; Efésios 5.3; Colossences 3.5; etc.). Ela faz as pessoas incapazes de verem o necessitado. É o caso do homem rico, na parábola de Jesus, que não enxergou Lázaro à sua porta (Lucas 16.19s). Riqueza prende e escraviza, como o vemos no caso do jovem impedido de seguir a Jesus por causa das suas muitas posses (Mateus 19.16s). Ela atrofia o amor, incapacita para dar, perverte a fé. Por isso, paira sobre os ricos o “ai” da ameaça (Lucas 6.24). Somente um milagre de Deus os pode salvar (Marcos 10.23s). A bem-aventurança é dos pobres, cuja fé não foi desviada do Deus verdadeiro.
3. A riqueza, por demais vezes, tem origem injusta (Lucas 16.11). Provém de corrupção e fraude, de salários diminuídos ou retidos (Tiago 5.1s). De fato, geralmente a exploração é bem mais lucrativa do que o trabalho honesto, sendo que escrúpulos morais prejudicam os negócios. A exploração pode ser favorecida, ainda, por leis ou um sistema que privilegia o grupo dos fortes, remetendo os outros ao desamparo social e condenando-os à permanente penúria.
IV.
Então, será verdade que o Novo Testamento endiabra as posses, afirmando que na pobreza está a salvação? Porventura, nega a trabalho esforçado a recompensa merecida? Isto seria um mal-entendido. Certamente, a crítica do Novo Testamento às riquezas é contundente, e convém deixar questionar-se por ela. Mas nenhum dos dois Testamentos apregoa um ideal de pobreza. Esta jamais aparece como algo desejável. Ela é sempre um mal a ser eliminado. O que a Bíblia quer é relativamente simples de resumir:
1. Deve ser evitado o acúmulo de bens. Aliás, em parte alguma do Antigo e do Novo Testamento encontram-se passagens que questionem a legitimidade da posse como tal. A existência de propriedade particular é pressuposta com grande naturalidade. O problema não são as posses. Estas, se fruto do suor do rosto (Gênesis 3.19) são de fato bênção. O pão de cada dia é indispensável para a vida. E os demais dons de Deus que tornam a vida agradável são motivo da mais profunda gratidão. De Deus provém a boa dádiva (Tiago 1.17). O que deve inquietar não são as posses, e, sim, o excesso das mesmas, ou seja, a riqueza.
Portanto é preciso distinguir: Riqueza não é sinônimo de posse. É posse em demasia que, por isto, produz pobreza e necessidade. A riqueza desequilibra a estrutura social. Ela tem a pobreza por companheira. É aí que reagem os profetas, Jesus e os apóstolos: tal desequilíbrio denuncia pecado, injustiça, idolatria. Exige a redistribuição. Acúmulo indevido de propriedade e posses não é bênção. Acarreta prejuízos para a sociedade e merece o juízo de Deus.
2. Importa permanecer livre com relação às posses, não endeusá-las nem se tornar escravo delas. Nisto reside uma das grandes ameaças ao ser humano, a saber que os bens o venham a dominar. Então as pessoas correm atrás do dinheiro e nunca se satisfazem com o que têm. Sacrificam-se na ânsia de continuamente aumentar a propriedade. Novamente dizemos: O problema não são as posses. O problema é o coração humano que não consegue confiar em Deus, mas cria um ídolo e a ele se prende. Nesse tocante o exemplo do próprio Jesus é instrutivo: Ele não diz que as posses, os bens, nem mesmo a propriedade particular sejam do diabo (cf. Marcos 1.29; Lucas 8.2s; etc). Jesus gostava dos bens da terra. Não era asceta. Apreciava festejar, sendo até injuriado como glutão e bebedor de vinho (Mateus 11.19). Mas também sabia renunciar. Não tinha onde reclinar a cabeça (Lucas 9.58). Portanto, soube usar sem abusar ou cair em dependência.
De modo mais impressionante, porém, mostra-se a liberdade de Jesus na capacidade que tinha para dar. Compartilhava bens, tempo, dons – sim, deu sua própria vida em favor de nós. Ser livre das posses significa saber dar, do que nos dá um exemplo a viúva pobre, cujo sacrifício envergonha os ricos (Marcos 12.41s). Desgraçadamente, o domínio das posses mata o amor, e mata também a fé. Não é sem razão que o apóstolo João pergunta: “Ora, aquele que possuir recursos deste mundo, e vir a seu irmão padecer necessidade e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus?” (1 João 3.17)
V.
Já não vivemos no mundo da Bíblia. A globalização, a revolução industrial, a tecnologia produziram profundas mudanças na economia e nas relações de trabalho. Por automação e concorrência internacional está sobrando mão de obra no mercado, acarretando o flagelo do desemprego e do aviltamento dos salários. De um modo geral, o trabalho acabou desvalorizado. Riqueza se produz por capital e tecnologia de ponta, fazendo com que enormes contingentes da população mundial sejam jogadas na pobreza. Mudou a função do Estado e da política. Não é possível desenhar, neste contexto, um quadro nem aproximativamente exaustivo da realidade social do planeta. De qualquer maneira, ele inspira cuidados e até temores. Assim como a política ambiental, assim também a política econômica e social exige profundos reparos para evitar futuras catástrofes. Nessa tarefa urgente a voz da Bíblia representa indispensável ajuda. Sintetizando as observações feitas acima e inserindo-as na realidade de hoje, formulamos três conclusões que julgamos especialmente relevantes:
1. Também no futuro deverá ser garantido a trabalho, inclusive ao manual e braçal, o devido valor. É este um dos pré-requisitos tanto de sucesso individual quanto do bem comum. Deus não há de negar sua bênção nessas condições. O ser humano deve trabalhar para comer (2 Tessalonicenses 3.10). Exige-se dele iniciativa, espírito empreendedor, garra. Ai de quem se joga nas redes para viver às custas de outros. Ócio e desleixo não agradam a Deus (Mateus 25.14s). É o trabalho que alimenta a humanidade. Também o capital não o consegue. É improdutivo enquanto não gerar empregos. Pela mesma razão não se combate o flagelo da pobreza com esmola somente. Esmola, assistência caritativa, bolsas certamente são importantes. Ajudam a aliviar sofrimento agudo, momentâneo. Mas não resolvem o problema da miséria sem a oferta de chances de trabalho. Este é fundamental, inclusive, para a auto-estima das pessoas. O ser humano precisa sentir-se útil. Eis porque o desemprego, ou seja a desocupação forçada, fere as pessoas tanto no bolso como no brio, produzindo tédio, revolta, violência. Toda sociedade que pretende assegurar segurança e paz a seus membros, deve preocupar-se com a situação no mercado de trabalho, zelando pela redistribuição do trabalho remunerado em caso de escassez, cuidando do cumprimento das leis trabalhistas e coibindo a exploração dos assalariados.
2. A isto se associa a obrigação da administração responsável dos bens, da boa mordomia, do cuidado com o que Deus confiou à criatura. Não podem esperar a bênção divina nem o desperdício nem o uso irresponsável dos recursos ou sua indevida apropriação. É o que vale tanto para a esfera privada quanto pública. Deus requer honestidade, transparência, aplicação conscienciosa. Uma sociedade, na qual honestidade já não compensa e avançou a sinônimo de estupidez, não tem futuro. Encontra-se à beira do abismo. A expectativa de bênção exige a decidida inconformidade e a conseqüente penalização da corrupção. Ademais, a globalização dos mercados financeiros estimulou a especulação, acenando com lucros fabulosos. Revelou-se como fator de concentração de riqueza e de aumento das desigualdades sociais. Que significa justiça social nessas condições? Deplora-se a “economização” de praticamente todos os setores da vida. Mas não há proposta de ética econômica que venha disciplinar os excessos do assim chamado “livre mercado”. Ora, a lei da selva sempre tem tido efeitos devastadores para o ser humano. Mais do que em outras épocas, a “bênção divina” depende de uma boa “política”, portanto de correta administração pública, voltada para o bem da coletividade. Tal constatação não dispensa o cidadão comum de sua responsabilidade própria, mas indica os horizontes em que esta se enquadra. Restabelecer o equilíbrio social através de justa tributação e outros meios, desagravar os conflitos do embate entre pobreza e riqueza mediante a abertura de perspectivas para as populações à margem, promover o desenvolvimento sustentável de uma nação, isto exige o empenho privado e político, sempre na tentativa de resgatar a saúde do corpo social.
3. O objetivo requer, sobretudo, uma profunda mudança de mentalidade, conforme a ensina a Bíblia. O ser humano não existe em função das posses, e, sim, estas em função das pessoas. A vida humana não se esgota em possuir, consumir e gastar nem se mede pelo seu poder de compra e produção. Toda posse é provisória, um empréstimo temporário, um talento a ser devolvido. Certo dia seremos radicalmente desapropriados. É estúpido quem não o enxerga. A libertação do culto às posses, da busca do lucro a qualquer preço, do materialismo dos nossos dias se nos coloca como um dos imperativos mais urgentes. O ser humano vale mais do que o produto, mais do que alguns pontos adicionais na bolsa de valores, mais do que os índices de rentabilidade. Necessitamos de uma economia com rosto humano. Sociedade que o ignora vai atrair a maldição de Deus sobre si a manifestar-se crescentemente no sofrimento dos excluídos, na frustração dos drogados, na violência dos desesperados, na morte de vítimas inocentes.
Não se pode forçar a bênção de Deus. Ela não é mercadoria à venda nem mesmo em Igrejas que garantem prosperidade a seus fregueses. A bênção de Deus é gratuita. Ainda assim, ela se condiciona a algumas premissas. Deus jamais dará bênção à avareza, à corrupção, ao roubo, à injustiça, ao crime. Então, há o que fazer para arrumar a casa a fim de que Deus encontre servos fiéis, bem-aventurados por ele na hora da prestação de contas, por terem feito uso louvável dos bens confiados e cuidado do bem-estar de seus semelhantes (cf Lc 12.42s).
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Abril 2007
P. Dr. Gottfried Brakemeier