Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Romanos 1.1-7
Leituras: Isaias 7.10-16 e Mateus 1.18-25
Autor: Valdemar Gaede
Data Litúrgica: 4º Domingo de Advento
Data da Pregação: 22/12/2013
1. Introdução
Percebe-se uma bonita relação entre os três textos bíblicos previstos para o quarto domingo de Advento (Is 7.10-16; Mt 1.18-25 e Rm 1.1-7). Da mesma forma, é possível aproximar os referidos textos à época litúrgica do Advento. Veremos isso a seguir.
Da leitura de Isaías 7.10-16 vem o enunciado teológico de que, em meio às afirmações veterotestamentárias de que Deus está no comando e de que ele dirige, exige e impõe, existe também o anúncio do Deus Emanuel, isto é, do Deus que vem ao encontro do ser humano, que caminha junto e que assume radicalmente a condição humana. O Deus-conosco não está ausente no Primeiro Testamento. Inúmeros textos dão a conhecer o Deus que desce e que caminha junto com seu povo. Basta lembrar o tema do livro do Êxodo.
Porém, na história do nascimento de Jesus (Mt 1.18-25), o rosto do Deus Emanuel torna-se definitivamente visível aos olhos humanos, principalmente para aqueles que, por força da “teologia” dos dominadores, tinham quase se conformado em crer num Deus que somente exige, impõe e ameaça. Segundo o evangelho previsto para o dia, o humilde carpinteiro José e a humilde moça Maria acolheram em sua história de vida, embora com algum sentimento de surpresa ou de espanto, a novidade do Deus-conosco.
Da epístola do dia (Rm 1.1-7) sublinho a ideia de que o Deus-conosco, descendente de Davi, surpreende com seu jeito de cativar seguidores como o apóstolo Paulo, um “nascido fora de tempo” (1Co 15.8), cujo apostolado ficou marcado pela teologia da inclusão: “Em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi dado de beber de um só Espírito” (1Co 12.13). A boa-nova do Deus-conosco vence as leis exclusivistas que estavam arraigadas na tradição judaica durante séculos ou milênios e faz surgir comunidades abertas e acolhedoras em que todas as pessoas são incluídas. Em seu apostolado inclusivo, Paulo fez grandes esforços no sentido de levar o evangelho do Deus Emanuel a todos os povos.
Advento é vinda, chegada, Deus-conosco, Emanuel. E os três textos previstos para o dia, portanto, convergem nesse tema. O Deus encarnado, que veio a nós, conclama-nos e capacita-nos para edificar comunidades acolhedoras.
2. Exegese
Existe farto material exegético sobre a Carta de Paulo aos Romanos na série “Proclamar Libertação”. Em apenas dez do total de 37 volumes não foram abordados textos dessa epístola, que, segundo Lutero, é “o escrito mais importante do Novo Testamento e o mais puro evangelho […]. E quanto mais se lida com ele, tanto mais agradável e gostoso o texto fi ca. Nele encontramos em superabundância aquilo que um cristão deve saber: o que é lei, evangelho, pecado, castigo, graça, justiça, fé, Cristo, Deus, boas obras, amor, esperança, cruz. E como devemos proceder com todo o mundo, seja justo ou pecador, forte ou fraco, amigo ou inimigo, e em relação a nós mesmos” (cf. Obras Selecionadas de Martinho Lutero, v. 8, p. 129,140-141). Por causa da abundância de material exegético disponível no “Proclamar Libertação”, atenho-me aqui a uma breve análise, versículo por versículo, do texto em pauta.
V. 1 – “Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo para o evangelho de Deus…” Paulo define seu apostolado como apostolado de serviço. É o Paulo-servo quem está falando. Serviço sempre resulta em cruz. Da cruz do Paulo-servo falam vários textos de suas epístolas, entre os quais 2 Coríntios 11.23ss. De acordo com o referido texto, exercitar o “ser servo” significou, no apostolado de Paulo, muito trabalho, prisões, açoites, perigos de morte, apedrejamento, naufrágios, longas jornadas, perigos de rios e de salteadores, entre patrícios e gentios, perigos de cidade e de desertos, no mar e entre falsos irmãos, trabalhos, fadigas, vigílias, fome, sede, jejuns, preocupação com todas as igrejas, fugas perigosas.
O apostolado é serviço porque, de acordo com Paulo, somos “separados para o evangelho” pelo próprio Jesus-servo, que disse: “Quem quiser tornar-se grande entre vós será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será servo de todos” (Mc 10.43-44), tal como o Filho do Homem, “que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.28). Aquele a quem Paulo serve “a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo” (Fp 2.7). Não existe outra posição na igreja cristã senão a de serviço. Igreja é serviço. Ser “separado para o evangelho de Deus” é ser cativado pelo Jesus que serve. Jesus não obriga com a imposição da lei, mas cativa com o evangelho do serviço. E quem foi cativado serve no sentido do evangelho-serviço.
Ser separado para o evangelho de Deus não é estar a serviço da lei. No primeiro versículo do texto em pauta, já está presente toda a teologia de Paulo, baseada no “pela graça sois salvos, mediante a fé; e isso não vem de vós; é dom de Deus” (Ef 2.8). Evangelho é sempre serviço à vida como fruto da fé amparada na graça divina. Nessa primeira frase de sua Carta aos Romanos, Paulo coloca–se como servo da missão de Deus, que, segundo Isaías e Jesus, é evangelizar os pobres, proclamar libertação aos cativos e restaurar a vista dos cegos, pôr em liberdade os cativos e apregoar o ano aceitável do Senhor (Is 61.1-2 e Lc 4.18-19).
V. 2 – “… o qual foi por Deus, outrora, prometido por intermédio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras …” Segundo Lutero, em sua Epístola aos Romanos, o apóstolo Paulo quis “fornecer um acesso a todo o Antigo Testamento”, pois quem tiver essa epístola no coração tem consigo “a luz e a força do Antigo Testamento”. A boa-nova à qual o apóstolo Paulo serve não interrompe a história de Deus com seu povo, mas dá continuidade à mesma. Também aqui Paulo está a serviço da palavra que inclui todos, inclusive aqueles que rejeitavam Cristo porque ainda estavam agarrados à lei do Antigo Testamento. Jesus não veio acabar com a lei, mas cumpri-la. Não existe oposição entre evangelho e revelação divina veterotestamentária, mas harmonia e continuidade. O evangelho, conforme Paulo, está de acordo com todas as promessas dos profetas antigos nas Sagradas Escrituras.
V. 3 – “… com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi …” Quando estamos a serviço do servo Jesus Cristo, não nos esquecemos do rosto humano de Jesus: segundo a carne, ele é descendente de Davi. Nessa pequena afirmação está a grande novidade do evangelho: a encarnação. O Deus-conosco (Emanuel) somente é compreensível a partir do milagre da encarnação. Maria, José, Belém, pastores de Belém, sábios do Oriente compreenderam o evangelho e colocaram-se a serviço dessa boa-nova porque creram na encarnação de Deus em Jesus de Nazaré, nascido em Belém, descendente de Davi.
V. 4 – “ … e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor …” A ação do Espírito Santo (Batismo) e a ressurreição dos mortos fazem de Jesus de Nazaré (descendente de Davi) o Filho de Deus, o Cristo, o Kyrios. Com o v. 4 completa-se o enunciado teológico da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo) no texto em questão e sempre presente nas cartas de Paulo. Os temas do Batismo e da ressurreição também perpassam não somente a Carta aos Romanos, mas toda a teologia de Paulo em todos os seus escritos (cf. por exemplo: Rm 6.1-14; Ef 4.1-6; 1Co 15).
V. 5 – “… por intermédio de quem viemos a receber graça e apostolado por amor do seu nome, para a obediência por fé, entre todos os gentios …” O apostolado de Paulo baseia-se na graça divina e não em obras. Essa é a boa-nova do evangelho. A graça divina desperta a obediência por fé e inclui “todos os gentios”. A graça recebida capacita para o exercício de um apostolado que inclui. Por isso o apóstolo Paulo foi o “apóstolo dos gentios”.
V. 6 – “… de cujo número sois também vós chamados para serdes de Jesus Cristo.” O apostolado da graça leva o abraço inclusivo de Deus também à comunidade de Roma. A graça divina é o que, afinal, legitima um apostolado voltado especialmente aos “de fora” e descarta qualquer tipo de “teologia” que discrimina e exclui.
V. 7 – “A todos os amados de Deus, que estais em Roma, chamados para serdes santos, graça a vós outros e paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.” A saudação “graça e paz” é inclusiva. Inclui gentios e judeus. A primeira é saudação grega, e a segunda é judaica. O evangelho é para todos, sem distinção.
3. Meditação
Advento é tempo de celebrar por causa do Deus que vem. É o Emanuel anunciado pelos profetas, que nos incluiu e inclui todos os povos quando os coloca sob o manto da graça divina. Nos dias de hoje, mais do que nunca é importante anunciar este Deus que vem a nós. Pois muito se prega do ser humano que pretende encontrar e alcançar Deus com seus méritos próprios ou na base de uma troca de favores: “Eu faço, e Deus me recompensa”. A encarnação de Deus (o Emanuel que se tornou realidade definitiva) passou por Maria e José (descendência carnal de Davi), sendo Jesus de Nazaré reconhecido por pessoas excluídas da sociedade e da religião daquele tempo e sendo confirmado como Filho de Deus, como Kyrios e como Cristo pela ação do Espírito Santo no Batismo e pela ressurreição.
Assim, o Emanuel dos profetas é o mesmo Deus Triúno que faz de nós sua igreja não somente hoje, mas de todos os tempos e lugares. O Deus-conosco em Jesus Cristo não veio interromper a história de Deus com seu povo, mas complementá-la e torná-la definitiva e inclusiva, selando-a com sua graça, à qual temos acesso não por causa de obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo. O caminho inverso de Deus (ele vem a nós e nos separa) cativa-nos para o discipulado do serviço. Foi isso o que aconteceu com o apóstolo Paulo. Fé em Jesus, que “a si mesmo se humilhou assumindo a forma de servo”, significa estar a serviço. Celebrar a vinda de Deus a nós (Emanuel) implica serviço à vida sob a graça de Deus. Incluímos pessoas no reino do Jesus-servo e do Deus-conosco, não impondo, exigindo ou condenando, mas cativando para o serviço abnegado que assume a cruz como consequência de um discipulado que serve e inclui.
Nos tempos de hoje, em que as pseudoteologias da prosperidade e da salvação por méritos são incutidas por fundamentalistas que agem de má-fé na vida de muitas pessoas e de muitas comunidades, insinuando que existe um evangelho que carrega conteúdos de supostas “maldições do tempo de Noé” ou outras ideias que discriminam e excluem minorias historicamente oprimidas e subjugadas, é imprescindível que cada vez mais nos coloquemos a serviço do evangelho que inclui, do evangelho da graça e paz, do evangelho Emanuel.
O tempo litúrgico do Advento conclama-nos a vigiar não apenas num clima de espera pela segunda vinda de Cristo, mas também a ficar atentos em relação ao que é falado e é feito, de forma distorcida e em nome de Jesus, nos dias de hoje. Temas como encarnação, serviço, salvação por fé e graça, inclusão, Batismo, ressurreição e Trindade não podem ficar fora de nossas reflexões neste tempo de Advento, época que nos conclama a abrir caminho para o Deus que vem.
4. Ideias ou passos para a prédica
a) É comum ouvirmos a frase “Agora encontrei Jesus”. A Bíblia, ao contrário, fala de um Deus que vem a nós e encontra-nos ali onde estamos: Emanuel, Deus conosco. No Advento, celebramos a vinda de Deus a nós e não a nossa ida a ele. Lembrar o texto do Antigo Testamento (Is 7.9-16).
b) Maria e José, mesmo surpresos com a boa-nova do Deus que se encarna e que vem a nós, foram cativados e colocaram-se a serviço dessa boa-nova surpreendente. Lembrar o evangelho do dia (Mt 1.18-25).
c) Paulo foi surpreendido e cativado (separado) pela mesma boa-nova. Seu apostolado foi de serviço e de inclusão, pois a graça revelada em Jesus Cristo alcança todos – quando há fé – e impulsiona-nos para o serviço de amor a todos sem distinção.
d) Leitura do texto da prédica.
e) Paulo apresenta-se como servo do Deus que se encarnou em Jesus de Nazaré, de descendência humana, e que, pelo poder do Espírito Santo e pela ressurreição, é para nós o Filho de Deus e o Cristo. Assim Paulo está a serviço do evangelho que separa e cativa pessoas como nós para o serviço que edifica comunidades acolhedoras e inclusivas.
f) Na época litúrgica do Advento, não nos ocupamos com a pergunta de como, com a nossa religiosidade piedosa, encontrar ou alcançar Deus, mas sim em como recebê-lo em nosso meio e neste mundo na condição de comunidade cativada pelo bom evangelho da salvação por graça e fé. Esse puro evangelho nos impulsiona e capacita-nos para o serviço de acolher e de incluir todos, sem distinção, rejeitando qualquer vento de doutrina que discrimina e exclui. Advento é tempo de estar vigilante em relação a falsas doutrinas, que se opõem ao evangelho do Deus conosco, do Deus encarnado na realidade humana.
g) Existem exemplos suficientes, nos dias de hoje, de uma falsa religiosidade que condena e exclui quem é diferente, que quer ser servida e não servir, que pretende reinverter o caminho que Deus inverteu ao revelar-se como Emanuel. Como vamos celebrar o Advento e o Natal em meio a tudo isso?
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).