O Natal Luz original
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica*: Romanos 1.1-7
Leituras: Isaías 11.1-9 e Lucas 2.1-7
Autoria: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: Noite de Natal
Data da Pregação: 24/12/2019
1. Introdução
Enquanto as leituras marginais são imediatamente transparentes para a festa de Natal, o texto previsto para a prédica causa alguma surpresa. As palavras de Isaías constituem-se em poderosa profecia daquilo que séculos depois aconteceria em Belém. Tornaram-se parte da mensagem de Natal, sendo por isso sempre de novo recitadas pela comunidade cristã. Da mesma forma, não há necessidade de mostrar a pertinência do segundo capítulo do Evangelho de Lucas com o nascimento de Jesus. O trecho fala do início do evento que hoje à noite comemoramos. Não assim a passagem de Romanos 1.1-7. Ela parece ser pouco apropriada para servir de base para a pregação neste dia. Qual sua relação com a festa de Natal?
No entanto, a tradição homilética atribui grande importância aos versículos introdutórios da Carta aos Romanos para este momento. Parece conter um segredo, razão pela qual sempre de novo serviu de texto referencial para o discurso sobre o Natal. Sem desprezar outros auxílios, permito-me chamar atenção às Göttinger Predigten im Internet, onde no arquivo se encontram exemplos instrutivos de prédicas (em português) dos colegas Wilfried Buchweiz, Osmar Witt, Astor Albrecht e Paulo Einsfeld (cf. www.theologie.uzh.ch/predigten). Também hoje vamos inspirar nossa reflexão nesse texto do apóstolo Paulo e procurar detectar os subsídios que oferece à nossa mensagem.
2. Observações exegéticas
“Paulo, servo de Cristo Jesus…”, nesses termos se apresenta o autor dessa carta. Ele a dirige aos cristãos de Roma a fim de preparar o terreno para seus planos de estender sua ação missionária à Espanha, no extremo ocidente do Império Romano (Rm 16.24). A comunidade pode ajudá-lo nos encaminhamentos. E, no entanto, os irmãos e as irmãs de fé em Roma não lhe servem de simples trampolim. Já a extensão da carta é um indício disso. O apóstolo envolve a comunidade numa reflexão teológica incomum em outras missivas suas. É verdade que essa comunidade lhe era desconhecida, assim como também vice-versa. Isso certamente justificaria uma apresentação mais longa, mas não algo que na opinião de comentaristas recentes se assemelha a um verdadeiro testamento teológico. Seja como for, a Carta aos Romanos é, sem dúvida, o depoimento mais importante da pregação do “apóstolo dos gentios”, e até mesmo um dos documentos fundantes da teologia cristã.
Falando de si como “servo”, Paulo aplica a si uma designação cabível a todas as pessoas que se colocam a serviço de Jesus Cristo. Quem nele crê pertence a ele, é “escravo” desse Senhor (1Co 7.22 e outros). Isso não impede que o título seja usado para destacar pessoas de exemplar piedade, a exemplo de Moisés (Js 1.2; etc.), oradores de salmos (105.26 etc.) ou, então, dos autores dos afamados hinos de “servos de Javé” no Antigo Testamento (Is 52.13 etc.). Nem todos são servos e servas da mesma maneira.
Também Paulo tem o que o destaca. Ele é chamado para ser apóstolo, portanto integrante de um grupo relativamente pequeno de pessoas da primeira cristandade. Apóstolos são testemunhas da ressurreição, os quais receberam uma missão especial. Assim também Paulo (cf. 1Co 9.1; 15.8s), juntamente com outros, Deus o separou para ser arauto do evangelho. A igreja cristã é apostólica justamente por esse motivo. Está construída sobre a ação evangelizadora dessas primeiras testemunhas (Ef 2.20). A elas a cristandade deve a noção do evangelho. É verdade que esse evangelho tem raízes nas promessas do antigo pacto, como o mostra a menção das Sagradas Escrituras (1.2). Ainda assim, ele traz notícia absoluta nova. Trata de Jesus Cristo, Filho de Deus, de sua pessoa e de sua história.
Para tanto Paulo lança mão de uma fórmula corrente nas comunidades. Pelo que tudo indica, os versículos 3 e 4 não foram formulados por ele, mas resumem algo que já antes dele se confessava. Existe sintonia apenas parcial entre a tradição subjacente e o pensamento de Paulo. O conteúdo do evangelho é Jesus Cristo. Quanto a isso há consenso. Mas isso não vale para a maneira de a ele se referir. Será possível afirmar que Jesus veio a ser Filho de Deus somente com a ressurreição? Aquela tradição anterior a Paulo parece insinuar uma cristologia de duas etapas. Com ela o apóstolo não concorda. Também para ele Jesus é descendente de Davi, mas jamais deixou de ser Filho de Deus. Por isso Paulo é enfático ao introduzir a fórmula com a menção desse título (1.3a). O evangelho fala de Jesus Cristo que, “segundo a carne”, veio da linhagem de Davi e, “segundo o Espirito”, do poder Deus, documentado pela ressurreição dos mortos. Também de acordo com Paulo, pois, Jesus foi um ser humano e um ser divino. Mas ele faz questão de deixar claro que Jesus não o foi sucessivamente, e sim simultaneamente. A tradição é adaptada e moldurada com palavras do próprio apóstolo, com o que esse lhe imprime outra concepção. Ele termina sublinhando ser esse Jesus Cristo “nosso Senhor”, ou seja, o Kyrios, do qual todos, enquanto cristãos e cristãs, são servos e servas (v. 4b).
Não se sabe o que motivou Paulo a incorporar a fórmula de fé no início de sua carta. Estaria a comunidade de Roma articulando sua fé nesses termos, de modo que Paulo já a essas alturas pretende corrigir? Isso é pouco provável, apesar de não ser impossível. De qualquer maneira, a comunidade de Roma é composta de gentílico-cristãos (v. 5), portanto de “novatos” na fé. Desde sempre chamou a atenção que falta a caracterização dos fiéis de Roma enquanto “igreja”. Mesmo assim, não admite dúvidas que ela o é. Não há necessidade de uma comunidade cristã ter estrutura episcopal e estar submissa a um papa para ser “igreja em sentido próprio”. Basta haver pessoas que aceitaram sua vocação para serem santas.
Com essa vocação Paulo se sente comprometido. Ao dirigir-se ao mundo gentílico, o apóstolo lhe transmite o convite do evangelho. Comunidade cristã não nasce da decisão de um grupo de pessoas em torno de determinado objetivo, e sim de uma ação de Deus. A igreja é criatura do evangelho, dizia Lutero. É o que encontra confirmação nessa passagem. No início da comunidade de Roma está o amor de Deus e o chamado a seus membros a dedicar sua vida a Jesus Cristo. É claro que isso implica um comportamento correspondente. Mas em termos bíblicos, o termo “santo” não designa alguém de conduta moral perfeita. O que se espera dos “santos” é que sua vida seja transparente para a pertença a Deus e Jesus Cristo. Cristãos são santos porque foram santificados por Deus e requisitados para seu serviço.
A tal gente Paulo manda essa carta e a despacha com os costumeiros votos. Deseja-lhes graça e paz, algo que na verdade já receberam. Mesmo assim é legítimo rogar a Deus para que a cada dia as renove. Paulo nada mais faz do que desejar a seus irmãos e suas irmãs em Roma as bênçãos implícitas na contínua presença do amor Deus em Jesus Cristo.
3. Meditação
Paulo proclama Cristo. Também o Natal o faz. É a razão para privilegiar um texto como esses para a pregação nessa oportunidade. Ele tem seu centro no testemunho cristológico da comunidade, acolhido e adaptado por Paulo. Jesus Cristo faz a diferença neste mundo. Seu nome é sinônimo da novidade, cujo testemunho a igreja cristã deve a todos os povos. Mas quem é Jesus Cristo?
Natal periga sucumbir numa porção de coisas que lhe são estranhas. Para muitos, tornou-se a festa do Papai Noel. Para outros, o que importa são os presentes que traz. Enfim, o Natal encanta pelo mar de luzes em que banha nossas cidades. Também pessoas de outras culturas e religiões são cativadas por seu brilho e se fascinam, mesmo quando a razão dessa festa não seja conhecida. A simbologia e os ritos natalinos são fortes e continuam a deslumbrar as pessoas em todo o mundo. “Feliz Natal!” Um gesto de cordialidade passa a unir as pessoas e a espalhar um ar de paz e de amor. Quando é que teremos um “feliz Natal”? Natal – uma fugaz emoção, e nada mais?
“Acima de tudo Natal é Cristo” – eis um alerta muito oportuno, lançado por parte de gente preocupada com a flagrante descaracterização do Natal em andamento na sociedade. Sem Cristo o Natal perde sua identidade. Festejamos seu aniversário hoje. Mas não basta cantar “Parabéns a você”. Os hinos de Natal são outros. A pessoa que há mais de dois mil anos nasceu é alguém bem especial.
Isso apesar de ter uma biografia muito humana. Jesus nasceu em Belém, é descendente do grande rei Davi, foi educado em Nazaré como filho de José e Maria. Assim é conhecido por seus conterrâneos. Todo o Novo Testamento o confirma: Jesus é filho de Davi. Simultaneamente, porém, a comunidade cristã celebra nele a manifestação do próprio Deus. Nesse menino Deus chega perto da criatura para resgatá-la de dor e miséria. Ninguém conheceu Jesus de fato, enquanto o viu somente pelo lado humano. É preciso descobrir em suas palavras e em seus gestos a ação de Deus. Deus é amor. Isso tem na pessoa de Jesus a mais cabal e convincente demonstração.
A comunidade cristã faria mal se desprezasse as emoções provocadas pelo Natal. Emoções fazem parte do ser humano e são condição de sua felicidade. Natal tem sua “mística”. Até certo ponto podemos acompanhar até mesmo a brincadeira do Papai Noel, cujo meio de transporte é o trenó e que também em países tropicais se veste de botas e grossos casacos de pele. Importa, porém, não permanecer preso à emocionalidade. O Papai Noel serve ao negócio e é figura estranha à Bíblia. Quem vem trazer luz a este mundo é Jesus Cristo. “Deus estava em Jesus Cristo”, vai dizer o apóstolo Paulo em outra carta sua (2Co 5.19). Deus se encarna em Jesus.
Celebramos, pois, um grande mistério: no menino Jesus Deus vem visitar a terra. Nasceu na pobreza, como fugitivo, solidário com quem sofre neste mundo. Não precisamos do dogma das duas naturezas para explicar o segredo. Basta contemplar a biografia desse Filho de Davi. Em sua pessoa percebemos o sopro do Espírito divino, descobrimos a misericórdia do Pai no céu, recebemos o perdão dos pecados. Ele, Jesus, define a imagem que temos e devemos ter de Deus, a saber, a de um Deus libertador, humilde, misericordioso. Todo o discurso que apregoa um outro Deus, opressor, brutal, vingativo, não é aquele que em Cristo veio mostrar seu rosto. Ele veio não para castigar, e sim para curar, perdoar e libertar. Por isso os anjos anunciam grande alegria aos pastores no campo (Lc 2.10) e falam de salvação que ocorreu nessa “noite feliz”. O mesmo faz a comunidade cristã ao sintonizar com eles, cantando: “Jubiloso, venturoso tempo santo de Natal!”.
4. Imagens para a prédica
Sugiro que a prédica explore a imagem tão natural nesta data, que é a de um aniversário. O próprio termo o indica: Natal é a festa que se faz para comemorar o nascimento de um ser humano. Há flagrantes semelhanças entre um aniversário comum e o de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, porém, caem em vista as diferenças. A comparação vai facilitar a interpretação do texto previsto para a prédica ao ressaltar o duplo aspecto da origem de Jesus.
Tradicionalmente é o divino que costuma prender a atenção. Natal é uma festa bonita. Introduz num outro mundo. Falando em paz na terra, em amor, alegria, sensibiliza anseios por algo de que se sente falta neste mundo. Ao mesmo tempo, porém, Natal tem aquele outro aspecto, expresso na precariedade das condições do nascimento de Jesus, nos propósitos assassinos do rei Herodes e outros crimes humanos que costumam encher as páginas da história. Não se trata de intercalar uma pausa romântica na rotina do dia a dia. Natal quer transformar nossa
realidade e introduzir algo de seu brilho em nossa vida.
Por isso mesmo a outra imagem essencial dessa festa é a luz. Natal é sempre “Natal Luz”, a não ser que deixe de ser o que é. É justo, pois, acentuar o efeito “luz” mediante velas, lanternas e artifícios pirotécnicos. Natal quer iluminar nossas vidas. E, no entanto, os enfeites natalinos não conseguem substituir “a glória do Senhor” (Lc 2.9) que apareceu aos pastores em Belém nem pela estrela que conduziu os magos à manjedoura (Mt 2.9s). É Deus quem traz luz a este mundo. As luzes que nós acendemos, cedo ou tarde, se apagam. A luz do Natal permanece. Dela somos chamados a ser testemunhas tanto por palavra como por ação, espantando a escuridão em nós mesmos e em nosso redor.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão dos pecados e Kyrie eleison
Senhor, nós não merecemos o Natal. Pois também nós cooperamos com o “apagar das luzes” neste mundo. Perdoa-nos quando isso acontece e quando acumulamos culpa junto a ti e nossos semelhantes. Ensina-nos a enxergar sofrimento alheio e a mobilizar socorro. Assusta-nos o crescimento de ódio e violência em nossa sociedade. Dá-nos coragem para combater suas raízes. Queremos mais do que um Natal, cujo efeito se resume num simples aumento do consumo de energia elétrica. Tu queres, isso sim, que resulte em mudança de estilo de vida em sociedade e na vivência pessoal. Kyrie eleison!
Oração do dia
Senhor, nós te agradecemos pelo Natal. Tu fizeste nascer Jesus por nós, para nos consolar, alegrar e animar. Somos como os pastores, mandados a Belém a fim de contemplar o milagre que lá aconteceu. Somos como os magos, orientados para descobrir o novo rei numa humilde estrebaria. Somos teus convidados. Como tais, pedimos-te por teus mais preciosos presentes. Dá-nos alegria, paz e amor, concedendo a todos a felicidade que o Natal promete. Amém!
Oração geral da igreja
Senhor, nós precisamos de teu Natal. Vivemos num mundo ameaçado, seja pelas mudanças climáticas ou pelas operações militares, seja pelos conflitos culturais e religiosos. Na maioria dos casos, é a estupidez humana que as produz. Existem por demais situações “sem Natal” neste mundo. Há gente com fome, sem moradia e sem companhia. Outras sofrem com depressões, falta de perspectivas profissionais ou graves doenças. Com todas essas pessoas nós nos solidarizamos e pedimos que realizes o que o profeta Isaías predisse ao dizer: O povo que andava em trevas viu grande luz e aos que viviam na região da sombra da morte, resplandeceu-lhes a luz (Is 9.2). Amém!
Bibliografia
ALTHAUS, Paul. Der Brief an die Römer. Das Neue Testament Deutsch. 10. Auf. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1966.
MICHEL, Otto. Der Brief an die Römer. Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament. 13. Auf. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1966.
*Nota do editor: Conforme as Senhas Diárias, o texto bíblico previsto para a prédica é Lucas 2.1-7. As demais leituras seguem as mesmas. Portanto a pessoa oficiante pode escolher se a prédica seguirá o texto do evangelho ou das cartas.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).