Proclamar Libertação – Volume 32
Prédica: Romanos 10.5-15
Leituras: 1 Reis 19.9-18, Mateus 14.22-33
Autor: Martin N. Dreher
Data Litúrgica: 13º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 10/08/2008
1. Introdução
Os textos levam-nos, mais uma vez, ao centro do evangelho. O texto de Romanos é uma espécie de ponto de rotação ou ponto vertical da luta comovente do apóstolo, expressa nos capítulos 9-11 de sua epístola maior. Onde antes só havia abismos surge, de repente, chão firme sob os pés. Quando se pergunta como é que se consegue chegar a esse chão firme debaixo dos pés, apresenta-se-nos a pregação da palavra, que nos concede uma certeza inabalável. Essa certeza vem do centro do evangelho.
O texto tem relação simétrica com Mateus 14.22-33, evangelho para o domingo. A mão de Jesus que segura o Pedro que está para afundar também proporciona chão firme debaixo de seus pés e dos pés da comunidade. Esse chão firme possibilita lá e cá a confissão de que Jesus é o Senhor. Crer e invocar o nome de Jesus.
De igual maneira, 1 Reis 19.9-18 diz-nos como o Elias autoconfiante, após sua vitória retumbante frente aos profetas de Baal, vê o abismo abrir-se diante de seus pés, quando foge e chega ao monte onde começara a história de Deus com seu povo e onde ele chega pensando ser o último israelita. A revelação de Deus, distinta da de Baal, no “sussurro calmo e suave” põe-lhe novamente chão sob os pés, manda-o voltar pelo deserto para aprender que evangelho é podermos viver a partir da graça e da misericórdia de Deus.
Não precisamos subir ao céu nem descer aos infernos para trazer Cristo (Rm 10.6 e 7); ele está próximo de nós.
2. Romanos 10.5-15
O que significa que não precisamos subir ao céu nem descer aos infernos para trazer Cristo, pois ele está próximo de nós, fica evidente quando verificamos a preocupação do apóstolo em relação a seu povo, Israel (Rm 9.1s.; 10.1). A questão fica mais candente quando, no capítulo 9, afloram as profundezas insondáveis da eleição ou da rejeição por parte de Deus. “Portanto, Deus tem misericórdia de quem ele quer e endurece o coração de quem ele quer” (Rm 9.18). Deus é um oleiro que faz o pote de barro que pode tanto ser especial como de uso comum, expressar sua paciência ou sua ira (9.21-24). As fronteiras que separavam judeus e cristãos já foram superadas (Rm 9.24). De Deus depende o fato de encontrarmos ou não o caminho que leva a ele, de sermos crentes ou descrentes, de sermos salvos ou permanecermos na perdição. Em Deus está superada a distinção entre judeus e gentios; dele depende a salvação ou a perdição de todos e de cada um de nós. No
que tange à fé, majoritariamente assumimos uma postura bastante serena (serena demais!), pois nos convencemos de que a salvação de todos é questão de honra para o querido papai do céu. Ou julgamos que salvação depende de nossa decisão em favor de Deus e que, nesse caso, rejeição da parte de Deus é algo que no fundo não nos atinge, pois podemos tornar a ajeitar as coisas. Aquelas pessoas que levaram a sério a questão da salvação, que refletiram profundamente sobre ela e que também sofreram em decorrência dela, essas pessoas tiveram que aprender o que significa afirmar que Deus é livre e soberano. O Deus que é livre e soberano não permite barganhas consigo, não se corrompe com ofertas de nossa parte; ele simplesmente pode aceitar ou rejeitar, sem mérito ou dignidade de nossa parte. Se assim não fosse, Deus só teria escolhido Israel e nós estaríamos fora de sua eleição. Paulo, contudo, descobriu que felizmente Deus é livre e que em sua liberdade também pôde acolher gentios, por amor a Jesus. Não nos cabe querer perscrutar o íntimo de Deus e querer entender por que Israel não aceitou Jesus e como foi possível que nós caíssemos a seus pés e o adorássemos como nosso Senhor. O que nos cabe é ocupar-nos com o Deus feito carne, com o Jesus crucificado, no qual estão contidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento. A nós cabe aceitar a boa-nova evangélica que nos é anunciada, na qual o próprio Deus se nos oferece em Jesus Cristo e se compromete conosco. É disso que fala a perícope. Aquilo que necessitamos está muito próximo de nós. Temos aceitação na fé, e essa fé nos é presenteada na pregação.
3. Meditando
Só depende de Deus estarmos assentados à sua direita, de podermos ser salvos. Só depende de Deus estarmos distantes de Deus e condenados. Por isso fé é um maravilhar-se por podermos crer. Descrença, em contrapartida, é motivo de inquietação, de pavor até ante o Deus que soberanamente elege ou rejeita, sem que possamos entendê-lo. O que vai acontecer com as pessoas que moram ao nosso redor, com as quais nos encontramos na rua, e que não querem ouvir falar de Jesus, por decisão de Deus? Por outro lado: O que será de nós que agora cremos, se Deus por vontade para nós incompreensível resolver transformar nosso crer em descrença? A pregação e o pregador deveriam evitar de cair nesse tipo de perguntas inquietantes, que certamente desviarão a atenção da comunidade reunida do principal, o evangelho. Função da pregação é animar e consolar.
Contudo, não haverá consolo autêntico se fizermos de conta que o elemento chocante contido em Romanos 9 inexiste. Ali lemos a respeito da soberania de Deus, que pode eleger e rejeitar quando e como quiser. Quando elege alguém, não o faz porque tenha que fazê-lo. Ele também pode rejeitar, e nós não temos o direito de levá-lo às barras do tribunal para que preste contas de seus atos! (“Quem é você, meu amigo, para discutir com Deus? Será que um pote de barro pode perguntar a quem o fez: ‘Por que você me fez assim?'”.) Deus é livre. E se Deus deve prestar contas a alguém, esse alguém é ele próprio! Vamos deixar Deus ser Deus! Também aqui vale o primeiro mandamento.
A afirmação da liberdade de Deus e de que ele não deve nada a ninguém leva, necessariamente, em nossas categorias de pensamento, à afirmação de que a humanidade está dividida em dois grupos de pessoas. Há algumas que são eleitas e não-rejeitadas; há outras que são rejeitadas e não-eleitas. Só vemos diante de nós aceitos e rejeitados. A bem da verdade, não os estamos vendo, pois de ninguém, nem mesmo de nós mesmos, podemos dizer o que Deus decidiu a respeito de uma pessoa. Isso é, necessariamente, decorrência da afirmação contida na sentença que tem a predestinação como pressuposto.
Se isso é verdade, tanto mais deveria chamar nossa atenção o fato de que Paulo procura levar nossos pensamentos e certezas em outra direção. Mesmo que seja verdade que Deus é soberano e que devemos respeitar sua liberdade, Deus nem está interessado em separar os seres humanos nos dois grupos mencionados. Ele quer que todos sejam salvos. É disso que fala o evangelho. Seu desejo é uma relação saudável (shalom), de mútuo amor entre ele e nós. Essa é talvez uma das melhores definições para a justiça de Deus, para a justificação. Não se trata de conseguirmos a salvação, como pretendiam os judeus, “à nossa própria maneira” (v. 3), mas de sermos presenteados com a justiça de Cristo, com o amor de Deus que está em Cristo. A justiça de Cristo não é um alvo distante, um objetivo que devemos alcançar.
Aquilo de que necessitamos está bem perto de nós. Não precisamos subir até o céu para buscar Jesus e também não precisamos descer aos infernos para retirá-lo de lá (v. 6 e 7). O esforço desesperado para conseguir obter um lugar sob o sol de Deus por meios próprios ou para conseguir certeza de que esse lugar nos está assegurado deve ser e é desnecessário, fútil e vão. Isso tanto vale para nós que somos piedosos como para nós que somos descrentes. No fundo, nós piedosos e descrentes somos medrosos, pessoas temerosas de perder a loteria da vida. A salvação que vem de Deus não é obtida através da “fezinha” que se faz na agência lotérica. Ir à agência lotérica para fazer negócio com Deus é burrice. É caminhada desnecessária. “A mensagem de Deus está perto de você, em seus lábios e no seu coração”.
A coisa é simples: abrir os olhos, aceitar Cristo. Nada mais é necessário. Agora, veja bem: aceitar o Cristo que está próximo de nós. Talvez nesse ponto tenhamos as maiores dificuldades. Não é através do cumprimento da Lei que somos salvos, mas através do cumprimento da fé. Uma confissão ao Senhor e a certeza, no coração, de que Deus o ressuscitou dos mortos (v. 9). À confissão do coração (“Jesus é o Senhor”) não corresponde uma fé cardíaca, que não se expressa. No pensamento de Paulo, boca e coração correspondem-se na confissão a Cristo. “A mensagem da fé” (v. 8) é a palavra confessada publicamente, não a fé mais ou menos intensa que está em nós. É a fé que confessa o que Cristo significa e fez por nós.
A salvação não depende da intensidade de nossa fé. Isso significaria substituir a intensidade das obras pela intensidade da fé. A fé não pretende ser nada e não tem nada a apresentar. Ela não olha para si, não confia em si e não desespera por causa de sua fragilidade. Ela só olha para Cristo e adora: “Ó, como estás próximo de mim! Ó, como me amas! Sou todo admiração. Como podes te interessar tanto por mim? Puxa, valho tanto para ti, a ponto de haveres pago preço tão alto por mim? E, agora, apesar de tudo, tu me aceitas assim como sou? Que felicidade: é verdade que não me pedes mais do que me deixar amar por ti? Jamais fui amado tão desinteressada e incondicionalmente como por ti”. Nada é exigido de nós! É disso que também fala a confissão com a boca e com o coração. Nesse amor que vem ao nosso encontro, Cristo é nosso Senhor. É o ressurreto que vem ao nosso encontro. É vida, é salvação.
As muitas discussões em torno da predestinação são perda de tempo. Basta ouvir o evangelho de Jesus Cristo, talvez na versão de Isaías 28.16: “Estou colocando em Sião uma pedra, uma pedra preciosa que eu escolhi, para ser a pedra principal do alicerce. Nela está escrito isto: ‘Quem tem fé não tem medo'”.
Não há pessoas mais habilitadas ou menos habilitadas para receber o amor de Deus. As chances dos “gregos” não são menores do que as dos “judeus”. Todos estão incluídos quando Cristo realiza a ligação entre nós e Deus. A eleição não é algo que aconteça em algum lugar recôndito do coração de Deus. Ela torna-se realidade quando Jesus se dirige a nós. “Aqui não há distinção.” Cristãos piedosos e aqueles que só conseguem olhar através do buraquinho da cerca que há no fundo do quintal. Pessoas que levam uma vida normal e aquelas para as quais nada dá certo. Aquelas que já conhecem Jesus há muito tempo e aquelas que mal conseguem entender quem e o que ele é. A pregação tem que anunciar a todos que são importantes para Jesus, em primeiro lugar aos “pobres de espírito”. A salvação não acontece quando temos “vida interior” rica ou quando estamos na “plenitude da vida”. É mais simples: “Deus é o mesmo Senhor de todos e abençoa generosamente todos os que pedem sua ajuda” (v. 12).
Paulo gosta de falar do Deus “rico”. Quem tiver problemas com a questão da predestinação ou quem julgar que é difícil encontrar Deus ou ter certeza da fé deveria saber que esses probleminhas não significam nada diante de um Deus que é tão rico. Também deveria saber que Deus tem mais o que fazer do que ficar matutando sobre quem deve ou não deve excluir da salvação. Deve, contudo, saber que Deus quer atrair todos porque ele é “rico” para “todos os que o invocam”. Permitam-me lembrar que, em nossos cultos, na liturgia, os que invocam a Deus dizem: Kyrie eleison (Tem piedade, Senhor). Também quem só consegue gemer deveria saber que Deus ouve gemidos. Basta aceitá-lo.
Se compreendemos Paulo até aqui e se conseguimos entender o Deus que ele nos anuncia por causa de Jesus, permanece uma questão. É verdade que recebemos a salvação em fé. Mas como chego a ela? Esta pergunta, que é feita por muita gente, é a mesma que é feita por quem está na frente de uma vitrine. Vejo o urso de pelúcia, o fogão, o perfume, mas a loja está fechada e a carteira está vazia. Paulo ocupa-se com a questão a partir do v. 14. Ao escrever essas palavras, Paulo está pensando no culto da comunidade. É ali que se encontra Cristo. “A fé vem por ouvir a mensagem.” Há gente que pensa que se pode encontrar Deus em qualquer lugar. É verdade que Deus está em todas as partes: na natureza, na história, naquilo que nos concede e também naquilo que tira de nós. Em tudo isso, contudo, é e permanece abscôndito, oculto. E quem o procura aí só fica confuso. Parece que está assistindo um teatro de fantoches, mas sem entender o que está acontecendo por trás dos panos.
No culto, estamos nos palco, envolvidos com o Cristo ressurreto e participando de sua vida, paixão e morte por nós. Até poderíamos desistir da pregação e dos meios da graça se Jesus Cristo não fosse Jesus Cristo. É o ressurreto, é o encarnado. E, por causa da encarnação, onde ele se deu a conhecer, ele só pode ser reconhecido nos meios da graça, na palavra externa e nos sacramentos. Para que possamos invocar o nome de Jesus precisamos da fé, mas a fé não se pega por aí, muito menos nas minhas forças internas. Ela brota de uma notícia que recebemos. A notícia recebida, contudo, vem por intermédio de um mensageiro, de um anjo, de um ângelo, de um carteiro, enviado e autorizado pelo próprio Deus, um apóstolo. Por seu intermédio o Verbo se faz carne. A pregação depende do Cristo vivo (“A fé vem por ouvir a mensagem e a mensagem vem por meio da pregação a respeito de Cristo”). Dessa pregação brota a aclamação: Jesus é o Senhor!
O Cristo que vem a nós no culto da comunidade movimenta-se no “chão”, não está “no ar”, nem vem “do ar”. Vem através de “vasos de barro”, mensageiros. Pregar o evangelho nada mais é do que Cristo vir a nós ou atrair-nos a ele. “Fica em silêncio e deixa que ele aja em ti e te ajude. Assim Cristo será teu.” É o que Lutero poderia dizer.
Não posso provar, como na demonstração de um teorema, que é o próprio Cristo que fala a mim na pregação. A palavra demonstra-se a si mesma, onde e quando for do agrado de Deus. Confio que a palavra de Deus vai demonstrar sua eficácia, cedo ou tarde. É uma faísca que bota fogo. É bom saber que aquilo de que necessitamos está bem próximo de nós, mesmo que no momento não tenhamos certeza disso. É um vento suave, mas chão firme.
4. Imagens
Na meditação fiz uso de algumas imagens. Volto a enumerá-las e trago outras.
Como imaginamos Deus? A Lutero apresentaram Deus como um Cristo assentado sobre o arco-íris, com as mãos calcadas sobre os joelhos, uma espada de dois gumes na boca e relâmpagos saindo de seus olhos: o Deus que castiga os bons e castiga os maus. Terrível.
Como imaginamos Deus? Na natureza. Somente na natureza limpa ou também no riacho podre? Somente no sorriso da criança bem vestida ou também na criança maltrapilha. A primeira tem pais crentes, e a segunda tem pais pecadores?
Como imaginamos Deus? Como no teatro de marionetes?
Vida de fé é como visita à lotérica? Negócio de cristão é botar uma “fezinha” em Jesus por R$ 10,00, 15,00 ou 1.000,00. Será que ele nos abençoa de acordo com o que estamos dispostos a dar a ele? Quem tem mil camelos é mais abençoado do que quem tem apenas um?
Deus é diferente.
5. Subsídios litúrgicos
Oração de coleta:
Senhor, Deus eterno e poderoso, ouve-nos: Concede-nos a fé que vence o mundo e que confia totalmente em ti. Deixa-nos reconhecer Jesus, o Salvador. Ouve-nos, por Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo constrói teu reino neste mundo. Senhor, tu és princípio e fim dos tempos, de eternidade a eternidade. Amém.
Oração de intercessão:
Grande Deus, teus caminhos são insondáveis e teus milagres incomensuráveis. Teu Filho Jesus Cristo é o salvador do mundo que te perdeu. Teu Espírito é quem transforma nossos corações.
Senhor, nós te agradecemos por dirigires tua mensagem a todas as pessoas neste mundo. Ninguém está excluído do ingresso em teu reino. Todo aquele que te reconhece como o Senhor que ressuscitou dos mortos está salvo. Experimentamos que essa fé é mais forte do que todos os poderes deste mundo. Muitas experiências parecem desdizê-lo, mas a fé vê o que permanece oculto aos olhos.
Senhor, nós te pedimos, preserva tua igreja de cegueira e de discussões sem sentido. Sofremos por causa da divisão das confissões. Estamos, contudo, unidos pela palavra da Bíblia e pela fé em ti. Supera as valetas e as cercas feitas pelas pessoas por causa de seus acentos. Reúne todos em torno de tua mesa.
Senhor, pedimos pela fé que te confessa perante o mundo. Dá-nos a fé que não tem medo dos poderosos deste mundo e que confessa a verdade em teu nome e luta pelo bem. Senhor, nós cremos, ajuda-nos em nossa falta de fé. Quando as dúvidas nos atacam, não conseguimos andar e nosso coração fica apavorado. Concede-nos, então, teu Espírito Santo para que tenhamos a certeza de que podemos vencer o mundo e chegar a teu reino.
Senhor, és o fundamento de nossa vida. És nossa luz. Permite que brilhe em nós e neste mundo por causa de Jesus. Amém.
Bibliografia
BARTH, Karl. Der Römerbrief. Zollikon-Zürich: Evangelischer Verlag, 1947.
KÄSEMANN, Ernst. An die Römer (Handbuch zum Neuen Testament 8). Tübingen: J.C.B.Mohr, 1973.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).