É preciso que seja de coração
Proclamar Libertação – Volume 46
Prédica: Romanos 10.8b-13
Leituras: Deuteronômio 26.1-11 e Lucas 4.1-13
Autoria: Astor Albrecht
Data Litúrgica: 1º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 06/03/2022
1. Introdução
Iniciamos o tempo da Quaresma. O número 40 tem grande significado nas Escrituras: 40 dias de dilúvio, 40 dias que Moisés e Elias ficaram no monte, 40 anos de peregrinação do povo no deserto, Jesus foi tentado por 40 dias antes de começar o ministério. É período de provação e de conhecer o que realmente há no coração: arrepender-se e abandonar o pecado e andar em novidade de vida com o Senhor. É tempo de lançar o olhar para a cruz de Jesus e tudo o que fez para a nossa salvação. A cruz é síntese e símbolo de todo o evangelho, mas também aponta para a autenticidade da verdadeira vida cristã. Quaresma é um tempo de parada para uma profunda reflexão à luz da palavra de Deus. Que nós e os membros de nossas comunidades sejam iluminados por essa palavra e transformados pelo ressurreto, nosso único e necessário Salvador.
A leitura de Deuteronômio 26.1-11 trata dos primeiros frutos da terra. Depois de morar algum tempo na terra prometida, cada israelita deveria levar a primeira parte de todas as colheitas ao lugar de adoração. A apresentação da oferta de gratidão pelas colheitas era acompanhada de uma confissão de fé (v. 5-9), na qual se recordavam os grandes feitos do Senhor desde a saída do Egito até a entrada na terra prometida.
A leitura de Lucas 4.1-13 trata da tentação de Jesus. Sua fidelidade a Deus passa por dura provação. A permanência de Jesus no deserto durante 40 dias sem comer e as provas às quais é submetido recordam as experiências do povo de Israel no deserto quando saiu do Egito. As citações bíblicas dos v. 4 a 10 referem-se àquela experiência histórica. Israel fracassou na prova, porém Jesus se manteve fiel à sua missão. Vale destacar que por três vezes Jesus responde com citações de Deuteronômio. Em sua missão ele não seguirá o desejo dele ou das pessoas, mas somente a vontade de Deus.
2. Exegese
O texto proposto para a pregação encontra-se num contexto amplo que trata da descrença de Israel. Os capítulos 9 a 11 abordam o tema da relação do povo de Israel com o plano de salvação. Israel, em sua maior parte, não aceitou Jesus como seu Messias. No contexto mais próximo, Paulo afirma que Israel tem zelo por Deus (10.2), quer dizer, busca por Deus, mas lhe falta entendimento de que a salvação não é obtida pelo cumprimento da lei (obras), mas pela fé em Cristo (10.4). Não temos que “escalar os degraus dos céus” para receber a salvação. Deus a trouxe até nós em Cristo Jesus (10.6). Em suma, Israel, em sua maioria, não aceitou o evangelho porque procurava ser salvo por meio de ações e não por meio da fé. Mas o evangelho anuncia que a maneira como a pessoa é aceita por Deus é a mesma para judeus e não judeus, a saber, pela fé em Cristo.
Vejamos agora com mais atenção os versículos que fazem parte do texto para a pregação.
V. 8 – O texto para a pregação inicia no final do v. 8, mas é preciso conhecer os versículos anteriores. Os versículos 6 a 8 são de Deuteronômio 32.12-14, onde Moisés explica ao povo de Israel que a lei era fácil de entender e de cumprir. Paulo aplica essa passagem ao evangelho, afirmando que este está ao alcance de todas as pessoas. Na pessoa de Jesus, Deus superou, por sua iniciativa, o abismo entre céu e terra (v. 6). Cristo está presente como vitorioso sobre o mundo da perdição (v. 7) e a soberania da sua justiça é anunciada para todas as pessoas (v. 8). Essa proclamação é chamada de “palavra da fé”, ou seja, ela não é condição prévia para a salvação, pois tudo o que é preciso para a salvação já foi feito por Cristo Jesus. “As coisas estão feitas e só devemos tomar ou deixá-las” (BARCLAY, 1983, p. 150).
V. 9 – Entre o ouvir a proclamação do evangelho e a salvação há um “se”. A salvação está aqui, presente, ao nosso alcance. Cada pessoa é chamada a aceitá-la pela fé que vem do coração e proclamar Cristo como Senhor. Quando o senhorio de Jesus se faz presente na vida, a pessoa não fica calada guardando isso para si mesma, mas ela faz uma confissão. Em caso negativo, essa confissão seria um “não” ou, quem sabe, até uma blasfêmia. Mas quando essa confissão é de reverência, “Jesus é Senhor”, então acontece um entregar-se a ele como servo e serva (Rm 6.16). Essa confissão não é uma palavra sem vida e força, mas cremos “que Deus o ressuscitou dentre os mortos”. A fé salvadora é fé na ressurreição, se não fosse assim, ela seria vã (1Co 15.17). A pessoa cristã não só crê que Jesus viveu, mas que ele vive. Não só deve saber a respeito de Cristo, mas deve conhecer o Cristo. Não está estudando um personagem histórico, mas está vivendo com uma presença real.
V. 10 – O comentário bíblico de Champlin faz, neste versículo, uma crítica à tradução da Bíblia na versão Almeida Atualizada, que traduz aqui “a respeito da salvação”, afirmando que isso não é uma tradução, mas sim uma interpretação. Afirma que o original grego não diz isso, pois a proposição grega “eis” não tem esse sentido (CHAMPLIN, 1995, p. 776). A Nova Versão Internacional traduz assim: com a boca se confessa para a salvação. Melhor a Nova Tradução na Linguagem de Hoje: falamos com a boca e assim somos salvos. Coração e lábios devem estar unidos: não há divisão entre crer e confessar. Não se pode ocultar a fé e nem encenar a confissão. A pessoa cristã que crê em seu coração confessa a sua fé com os lábios. Não somente Deus, mas também o próximo deve saber que somos pessoas cristãs. Declaramos para todas as pessoas de que lado estamos.
V. 11-12 – Cada pessoa pode ter esperança, pois Deus não faz distinção entre as pessoas. Aqui temos uma relação com Efésios 2.14-18: a lei criara uma parede de separação entre judeus e outros povos. Mas quando Cristo cumpriu a lei e se tornou “Senhor de todos”, caiu por terra a diferença entre judeus e gentios. Em sua riqueza, o Senhor não deixará de mãos vazias as pessoas que o invocarem.
V. 13 – O verbo “invocar” não se encontra numa forma de ação contínua, mas designa o ato isolado. Portanto, nesse momento, Paulo tem em vista menos o “ser” cristão e mais o “tornar-se” cristão (POHL, 1999, p. 102). É na invocação do nome do Senhor que se concretizam de forma prática os v. 9 e 10.
3. Meditação
É preciso que seja de coração. O texto bíblico declara: e, em teu coração, creres (v. 9) e com o coração se crê (v. 10). Não se trata de um mero sentimento, mas sim da essência da pessoa. E é assim porque as aparências de nada servem diante de Deus. Será que a mensagem pregada nos dias de hoje nas mais diversas redes sociais e templos almeja despertar o coração para buscar os benefícios de Deus no lugar de Deus mesmo? Uma fé que faz de Deus um meio para alcançar um fim? Uma fé que já não trata mais de perdão dos pecados e de salvação? Uma fé que relativiza todas as coisas e já não busca mais ser inteiramente do Senhor?
Isso certamente se reflete na prática da vida, no andar com Cristo. Muitos amam ouvir a respeito do reino dos céus, mas os que carregam a cruz são poucos. Muitas desejam seu conforto, mas poucas a sua tribulação. Muitos se encontram ao redor da mesa, mas poucos na abstinência. Todas desejam se alegrar com ele, mas poucas estão dispostas a suportar qualquer coisa por ele ou com ele. Muitos acompanham Jesus no partir do pão, mas poucos tomam com ele o cálice da Paixão. Muitas reverenciam seus milagres, mas poucas o seguem na vergonha da cruz. Muitos amam Jesus, mas somente enquanto as adversidades e tentações não vêm. Quando não é de coração, a pessoa cristã facilmente se queixa e cai em abatimento quando a fé não a recompensa segundo o seu desejo. Neste caso, a tentação ganhou largo espaço no coração.
Essa palavra evangélica é um convite para colocar a vida (o coração) nas mãos do Salvador. O texto ensina como é acessível e disponível a fé em Cristo. O evangelho é exposto com claridade e a vida, morte e ressurreição de Cristo testificam de quem ele é. Quem o buscar, certamente o encontrará. Mas quem prefere procurar por si mesmo, também a si mesmo encontrará. Neste caso, já não se trata mais de pedir pela vinda do “seu reino”, mas sim pela vinda do “meu reino”. Foi o que o diabo procurou incutir em Jesus: um milagre para saciar a sua necessidade (fome); conquistar o mundo, mas abandonar a Deus; chamar atenção de todos, mas sem a cruz. Jesus permaneceu fiel ao propósito do Pai. Importa que, de coração crente, também nos confiemos aos seus cuidados, porque quando tudo falhar, só ele poderá ajudar.
É preciso que seja de coração, a fim de que nossa confissão de fé seja de fato uma fonte de vida e de esperança. E as pessoas carecem de vida verdadeira, de esperança. Buscam por isso. Em Atos 16, um pai de família está pronto a cometer suicídio, quando Paulo grita para que ele não se faça nenhum mal. E qual a pergunta que ele faz? Senhores, que devo fazer para ser salvo? (At 16.30). O ser humano carece de salvação. Precisa de ajuda. Contudo, as tentações sugerem que a resposta para essa pergunta está em algum lugar, mas num lugar sem Cristo e longe dele.
Paulo cita várias vezes textos das Escrituras do Antigo Testamento para falar a respeito da salvação. Na tentação, Jesus também fez o mesmo. Devemos buscar a verdade na palavra de Deus. Ali está o que traz proveito espiritual, que alimenta a fé e direciona para Cristo. Tudo o mais é frágil e passageiro, mas a verdade do Senhor permanece para sempre. Por isso toda pessoa que invocar o nome do Senhor será salva (v. 13). A leitura bíblica de Deuteronômio 26 nos fala como o povo era instruído a dar testemunho do que Deus tinha feito e a não se esquecer de suas bênçãos na terra prometida. Nossa confissão de fé hoje não pode se limitar a um conjunto de normas seguidas pelo intelecto. Confissão de fé precisa ser palavra viva. Coisa que vem do coração e age na vida de quem crê. Não se limita ao mundo das ideias, mas é existencial. É testemunhar a ação graciosa de Deus na vida, tal como o povo fora ensinado: e o Senhor nos tirou do Egito com poderosa mão (Dt 26.8). Na confissão a fé, sai do silêncio a fim de anunciar a presença de Deus, proclamar a sua glória e graça que nos alcança.
É preciso que seja de coração. A fé e a confissão andam juntas. “A fé muda nem é fé” (Olshausem). “A confissão sem a fé seria uma hipocrisia” (Lange). A pessoa cristã anda com Cristo e, na união da fé e da confissão, segue uma vida frutífera em palavras e ações. E isso com alegria e gratidão, não como uma norma, nem poderia ser, mas sim com coração crente que se direciona ao próximo.
4. Imagens para a prédica
Sobre o tema “é preciso que seja de coração”, compartilho uma experiência do tempo de estudo e formação numa comunidade de nossa IECLB. Ministro e presbitério iniciaram um ponto de pregação em um bairro novo na cidade. Conseguiram uma sala de aula numa escola para iniciar encontros de estudo bíblico e cultos. Alguns membros moravam naquele bairro, mas procurava-se alcançar também outros moradores. Dentre os membros, havia dois irmãos. Um deles morava cerca de cem metros da escola e, o outro, morava cerca de dez quilômetros da escola. Qual deles participava de forma ativa? O que morava distante. Aquele casal e seus dois filhos muito se dedicaram naquele ministério. É assim: quando não procede do coração, toda facilidade é uma dificuldade; quando é de coração, toda dificuldade é enfrentada com amor e confiança no auxílio de Deus.
5. Subsídios litúrgicos
Do Livro de Canto da IECLB sugiro cantar: Alto preço (601); Nem só palavra é o amor (568); Quem quer cantar do amor (588).
Pode-se usar o seguinte texto para a acolhida e apresentar o tema do culto para a comunidade reunida: Buscar-me-eis e me achareis quando me buscardes de todo o vosso coração (Jr 29.13).
Bibliografia
BARCLAY, William. Romanos. Buenos Aires: La Aurora, 1983.
CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo. São Paulo: Candeia, 1995. v. 3.
POHL, Adolf. Carta aos Romanos. Curitiba: Esperança, 1999.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).