Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Romanos 12.9-21
Leituras: Jeremias 15.15-21 e Mateus 16.21-28
Autor: Samuel Gaussmann
Data Litúrgica: 12º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 31/08/2014
1. Introdução
O texto de Jeremias retrata uma crise da vocação profética. Jeremias estava com o coração cheio de amargura e de dúvidas, enxergava diante de si somente as pesadas consequências de sua missão. Ele, que havia proclamado que Deus era a fonte de água viva (Jr 2.13), agora acusa-o de ser “ribeiro ilusório, águas que enganam” (Jr 15.18). Deus mantém o chamado e espera a resposta confiante do profeta. Deus promete agir, mais fortificando seu enviado do que operando uma vingança contra seus adversários. Deus não retira a cruz que pesa sobre os ombros do profeta, mas revela, pouco a pouco, que ela faz parte do ministério profético.
A realidade da cruz está fortemente presente no texto de Mateus, que revela como é difícil para a mente humana compreender e aceitar os propósitos divinos. Até aqueles que conviviam com Jesus não compreendiam sua mensagem. A advertência de Pedro revela a gigantesca distância entre a vontade humana e a divina, entre basear-se na própria consciência e ceder a seus desejos e seguir e obedecer aos preceitos bíblicos.
O cerne da mensagem de Romanos é como agir a partir da fé e como buscar forças para manter-se nessa postura. A ética cristã é, muitas vezes, “nadar contra a maré”. Esse sentimento o profeta Jeremias experimentou em seu ministério, e ele derrama seus lamentos diante de Deus. Pedro também não compreendia por que tanto sofrimento pelo qual o Messias deveria passar. Como manter conectados mente (razão), coração (fé) e mãos (ação)?
2. Exegese: Entendendo para agir
Romanos 12-15 tratam de questões práticas da vida diária. Neles, Paulo formula o caráter ético da fé cristã. Seu ponto de partida é que nunca devemos fazer nada que torne mais difícil para qualquer pessoa o “ser cristão”, mesmo que isso signifique renunciar a algo que é correto e seguro para nós.
No v. 9, conforme a versão Almeida (ARA), consta “sem hipocrisia”. Nos dramas gregos clássicos, o ator (hypokrites) usava uma máscara que cobria seu rosto. O comportamento amoroso dos crentes não deveria ser como quem toma parte em um papel, usando uma máscara, mas deveria ser expressão autêntica de boa vontade. Na Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH) consta que o amor cristão não deve ser fingido.
A hospitalidade chegou a ser o mais importante vínculo entre os cristãos. A palavra que Paulo usou para afetuoso é filóstorgos, e storge é a palavra grega que define o amor familiar. Devemos amar-nos afetuosamente porque somos membros de uma mesma família. Dentro da igreja cristã, não formamos uma reunião de amigos, muito menos somos unidades isoladas; somos irmãos e irmãs porque, através de Cristo, temos um mesmo Pai: Deus.
Não devemos ser preguiçosos em nosso zelo. A vida cristã precisa ter a marca da intensidade e não da letargia. O cristão não pode viver levianamente, porque para ele a vida é algo sagrado, e tudo tem consequências, boas ou más. O cristão pode inflamar-se, mas nunca se oxidar. Devemos ser fervorosos, literalmente “fervendo no espírito”. Devemos manter nosso espírito em ponto de ebulição. Que desafio diante dos tantos “baldes de água fria” que o mundo joga sobre nós! A única coisa que Cristo não podia suportar é a pessoa que não é fria nem quente (Ap 3.15-16).
Os cristãos devem alegrar-se com os que se alegram e chorar com os que choram, ou seja, devem exercitar a empatia. É mais fácil chorar com os que choram do que alegrar-se com os que se alegram. Sentir alegria genuína com o sucesso de outra pessoa é sinal de maturidade espiritual. “Deixar de dar as boas-vindas à felicidade de um irmão, com genuína alegria, é um sentimento de inveja; e deixar de demonstrar tristeza em seu infortúnio é sinal de desumanidade” (João Calvino).
A linguagem usada por Paulo indica que os crentes compartilhavam dos mesmos pensamentos: indicação do papel estratégico da mente no processo de santificação. A forma que pensamos determina a nossa maneira de viver, e o pensar cristão não é uma reflexão em si mesma, mas a partir da palavra de Deus. “Não sejais sábios aos vossos próprios olhos” (v. 16) lembra-nos com propriedade o início da história humana. Satanás prometeu sabedoria a Adão e Eva. Ele os faria sábios como Deus, conhecendo o que são o bem e o mal. Desde então, todos os seres humanos pensam que entendem das coisas de Deus e nelas se intrometem. Basear-se em sua própria consciência é assumir-se como personalidade autônoma, é deixar Deus de fora. A maior sabedoria é reconhecer a cruz de Jesus Cristo como o insuperável amor de Deus por toda a humanidade e admitir que a consciência humana não dá conta do recado diante dos dilemas da vida.
“No que depender de vocês” (v. 18) significa que nós não podemos ser a origem das brigas. Sempre há escolha, e essa deve basear-se nos valores cristãos e no amor de Deus; e quando parece que não há escolha, devemos, humilde e confiadamente, deixar tudo nas mãos de Deus.
No v. 20, Paulo escreve sobre amontoar brasas vivas na cabeça dos inimigos. Outra tradução possível seria “farás com que lhe arda a cara de vergonha”. Não apenas ruborizar, mas incendiar de vergonha. A atitude cristã pretende assim conduzir à conversão ou, pelo menos, a uma vergonha tamanha, que leve a pessoa a revisar suas atitudes. O cristão deve libertar-se do desejo de “acertar as contas” com outras pessoas. Paulo dá três razões para isso:
1 – A vingança não nos pertence; pertence a Deus. Ninguém tem o direito de julgar o outro; só Deus pode fazê-lo. Paulo lembra, no v.19, a passagem de Deuteronômio 32.35. Na caminhada com o povo de Israel, Deus provou que liberta e julga.
2 – Tratar alguém com bondade antes do que vingativamente é a forma de tocar seu coração. A vingança pode quebrantar seu espírito; mas a bondade conquistará seu coração.
3 – Ceder diante da vingança é ser conquistado pelo mal. O mal nunca pode ser vencido pelo mal. Se ao ódio se opõe mais ódio, ele aumenta; mas se ao ódio se opõe amor, achou-se o antídoto para o veneno. A única maneira de destruir verdadeiramente um inimigo é torná-lo nosso amigo.
Paulo fala do perdão, não apenas na certeza de que Cristo perdoou quem o crucificava, mas por ter visto um cristão agindo nesse espírito: Estêvão, que morreu pedindo perdão para aqueles que o estavam apedrejando (At 7.60). Entre os que o mataram havia um jovem chamado Saulo, que veio a ser Paulo, o apóstolo dos gentios. Certamente a morte de Estêvão foi uma das coisas que aproximou Paulo de Cristo. Como disse Agostinho: “A igreja deve Paulo à oração de Estêvão”.
Platão já havia dito que o homem bondoso preferirá antes suportar o mal do que cometê-lo. Quando o cristão é ferido e insultado, ele tem diante de si o exemplo de seu Mestre, que sobre a cruz orou pedindo perdão para aqueles que o estavam matando. Não se vingar é deixar a fé abafar a voz ensurdecedora do desejo humano de buscar vingança a todo custo. “Quem deseja vingar-se toma a vida de seus inimigos nas próprias mãos e esquece que Deus já colocou a mão sobre essa pessoa, morrendo por ela na cruz” (Dietrich Bonhoeffer). Quem se vinga no ser humano torna sem efeito a morte de Cristo; ele se torna culpado diante do sangue da reconciliação.
3. Meditação: Comovendo para mover
Questionar os ouvintes logo de início, dando espaço para a discussão ou tempo para a reflexão: Você fala mais com sua boca ou com suas atitudes?
Seriam as virtudes listadas por Paulo virtudes recomendadas ou virtudes impossíveis? Se as encararmos como tarefa nossa, a obra humana é impossível, até mesmo desesperadora. Mas se forem encaradas como dádivas de Deus, sinais do comprometimento com uma nova postura de vida, inicia-se uma transformação da mente e das atitudes. Não há como nossa mente pequena compreender o amor de Deus, mas isso não O impede de vir até nós. É estranho e inacessível à nossa razão o fato de que Deus nos procurou e nos perdoou, sacrificando seu próprio Filho em nosso favor.
As palavras que Paulo usa são duras. A pessoa não está a salvo quando sua vida consiste em evitar prudentemente o mal e numa calculada adesão ao que é bom. Ninguém é bom quando simplesmente é porque teme as consequências de ser mau. Nenhuma virtude está segura se não for apaixonada. Ser cristão tem a ver com convicção e não adequação.
O amor só pode ser genuíno se for fundamentado em Cristo. Outras formas de amor não resistem, terminam ou até mesmo se corrompem em obsessões e paranoias. A nossa bondade não pode conquistar o amor de Deus nem a nossa maldade pode perdê-lo. Porém a tendência humana é resistir a esse divino amor. Por isso o apóstolo Paulo fala-nos de não apenas crer de coração e compreender as Escrituras, mas praticar o amor para que não existam brechas em nossa vida, por onde a tendência de resistir ao amor divino contamine nosso ser. Nesse sentido, amar não se pode basear apenas em sentimentos, mas em atitudes e principalmente em comprometimento. Isso se aplica à família, ao matrimônio, à vida profissional, à comunidade de fé…
No início do capítulo 12, Paulo inicia escrevendo que há muitos dons e todos são dádivas de Deus àqueles que vivem em Cristo. Agora é procurar colocar isso em prática para fazer a diferença no mundo! Como o texto é extenso e repleto de orientações e cada qual relevante, uma alternativa seria dividir o texto em cinco blocos, enfatizando as “marcas” de quem ama: 1. Quem ama é sincero; 2. Quem ama honra; 3. Quem ama serve; 4. Quem ama abençoa; 5. Quem ama pacifica. O mundo é hipócrita, nós somos sinceros; o mundo não honra (apenas “puxa o saco” e bajula por interesse), nós honramos, não por conveniência, mas por compromisso; o mundo quer ser servido, nós servimos; o mundo só valoriza quem se submete a seus valores ou quem tem alto poder aquisitivo, nós acolhemos e bendizemos a partir da dignidade que Deus concede a todas as criaturas; o mundo é vingativo e violento, nós perdoamos e disseminamos a paz que vem de Deus.
Outra temática abordada por Paulo, e que geralmente é o estopim para desentendimentos nas comunidades até hoje, é a questão dos privilégios e honrarias. Mais da metade dos problemas que surgem nas igrejas está relacionada, em maior ou menor medida, a direitos e privilégios, cargos e prestígio. Alguém não recebeu seu cargo; alguém se sentiu menosprezado ou não recebeu agradecimento e disso surgem vários problemas… A marca do verdadeiro cristão deve ser a humildade, que se propõe sempre antes a servir do que ser servido.
Nesse sentido, o agir fundamentado na fé vai encontrar resistências no mundo, mas isso não significará abandono de Deus ou incapacidade dos chamados, mas é a realidade da cruz. Realidade que o profeta Jeremias experimentou e que o discípulo Pedro não compreendeu.
“Que mal o que intenta maldade pode fazer contra você? O mal prejudica a ele e não a você. Sofrer injustiça não faz mal ao cristão. Fazer injustiça, porém, prejudica” (Dietrich Boenhoeffer). O maligno deseja que você também seja mau. Devemos quebrar a corrente do mal e apegar-nos a Deus como um elo numa corrente do bem. Unidos a Deus, Ele nos protege. É como óleo derramado numa corrente: toda ela fica lubrificada, assim todos nós estaremos na graça de Deus, se unidos a Ele. As correntes do mundo nos escravizam; somente a corrente de Deus nos liberta, pois nos leva a Ele e nos une ao próximo, sendo cada qual um elo importante.
Nesse sentido, a ética a partir da fé não é tornar a vida mais simples, mas mais significativa; não é evitar sofrimentos, mas saber aprender com eles; não é uma garantia de privilégios e facilidades, mas assumir responsabilidades e encarar desafios; não é saber tudo, mas tornar-se cada vez mais dependente de Deus.
4. Imagens para a prédica: Simbolizando para concretizar
Diante de um texto com tantas orientações de como proceder, veio-me à cabeça a imagem de uma lista. Antes de ir ao supermercado, é bom fazer uma lista de compras, que nos ajuda a não nos deixar seduzir por ofertas ou distrair nas prateleiras, mas a nos concentrar naquilo que é o mais necessário no momento. O apóstolo Paulo faz-nos uma lista para não esquecer as atitudes de quem vive pela fé. Essas ações são difíceis, por isso mais uma vez a importância de listar para não esquecer ou nos esquivar. Pode-se escrever essas orientações bíblicas em pequenos bilhetes como numa lista de supermercado no sentido de que agora a pessoa que leva essa lista não vai comprar esses itens, mas vai doar isso ao mundo. Afinal, a compra já foi feita e o preço já foi pago por Cristo na cruz. Deus faz a oferta, nós fazemos a escolha.
Origem da palavra sincero: Os romanos fabricavam certos vasos de uma cera especial. Muitas vezes, essa cera era tão pura, que os vasos se tornavam transparentes, podendo-se distinguir os objetos que tivessem sido colocados no seu interior. Desses vasos dizia-se: “Parece até que não tem cera! É um vaso sine cera!”. Sine cera significa sem cera, a qualidade do vaso perfeito, que deixava ver através de suas paredes. Da antiga cerâmica romana, o vocábulo sincero passou a ter significado mais profundo. Sincero é aquele que é autêntico, verdadeiro, que não oculta. O sincero, à semelhança do vaso romano, deixa ver, através de suas palavras, os sentimentos de seu coração.
5. Subsídios litúrgicos: Envolvendo para interagir
Cantos: Oração de São Francisco de Assis (Pe. C. Irala), Bem-aventurados (HPD 400), Veni creator spiritus (Coleção Miriã 1, nº 6), Canto da Esperança (HPD 438).
Seria muito significativo realizar Batismos nesse culto como sinal de pertencimento a Deus, de comprometimento dos pais, padrinhos, madrinhas e toda a comunidade na educação cristã, começando com o exemplo pessoal, ou celebrar a Ceia do Senhor como sinal de que alimentamos nossa fé e nossa força para agir no mundo a partir do que Deus nos dá.
Confissão de pecados: Salmo 51.
Anúncio da graça: Jeremias 17.14 ou Lamentações 3.22-23;25.
A imagem de uma corrente do bem: Ela vem de Deus e conecta-nos a Ele, e devemos alcançá-la a todos ao nosso redor, formando mais elos para a glória de Deus. É tarefa cristã aumentar essa corrente no mundo e fortalecê-la em nós mesmos a cada dia. O nosso elo com Deus fortalecemos com oração e nosso elo com o próximo com diaconia (serviço cristão). Usar correntes na decoração da igreja e durante a liturgia: ou estamos presos na escravidão do mundo e de nossos desejos ou libertos na corrente do bem de Deus. Os elos do mundo nos escravizam; os elos de Deus nos elevam, “puxam para cima”.
Bibliografia
BONHOEFFER, Dietrich. Prédicas e alocuções. Trad. Harald Malschitzky. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2007. p.17-22.
BRAATEN, Carl E.; JENSON, Robert W. Dogmática Cristã. V. 2. São Leopoldo: Editora Sinodal,1995. p. 412-429.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).