Natal comum(unitário) e extraordinário
Proclamar Libertação – Volume 45
Prédica: Romanos 16.25-27
Leituras: 2 Samuel 7.1-11,16 e Lucas 1.26-38
Autoria: Samuel Gausmann
Data Litúrgica: 4° Domingo de Advento
Data da Pregação: 20/12/2020
1. Introdução: Deus age no comum!
A Carta de Paulo aos Romanos é uma das mais densas doutrinariamente, uma síntese bem elaborada do pensamento teológico do apóstolo. Agostinho converteu-se lendo essa carta (Confissões 8,13,23). Lutero começou a Reforma protestante com seu Comentário à Carta aos Romanos, onde ele debate a ideia da justificação. A densidade do conteúdo quer servir de inspiração para uma vivência comprometida da fé.
No texto de 2 Samuel 7, Davi revela ao profeta Natã a intenção de construir um templo para Deus. Por intermédio de Natã, Deus lembra ao rei toda a sua peregrinação junto com o povo de Israel desde a saída do Egito. Deus enfatiza sua presença junto com seu povo (fui contigo por onde quer que andaste, v. 9) e que é ele quem vem e se manifesta e que na sua grandeza não pode ser “confinado” dentro de paredes. Deus estabelece aliança com Davi a partir do seu poder, glória e misericórdia. Em Lucas, novamente Deus faz uso do comum da vida para se manifestar e revela que vai habitar no ventre de uma jovem para visitar a humanidade sob forma humana. Deus desce da sua glória para estar ainda mais próximo do ser humano. Deus usa o incomum para comunicar sua glória e ter comunhão com a humanidade, revelando seu plano de salvação.
Na proximidade de mais um Natal, a tríade de textos bíblicos quer nos revelar a glória de Deus se manifestando no comum para tornar nossa vida repleta de significado. A contagem regressiva já começou, você está preparado ou preparada?
2. Exegese: mistério revelado?
A redação de cartas na antiguidade geralmente se orientava por uma divisão em três partes: introdução epistolar (apresentar quem escreve, a quem se destina e ainda uma saudação), corpo epistolar (desenvolvimento do conteúdo), conclusão epistolar (agradecimento aos destinatários e voto de bênção). Nosso trecho bíblico faz parte da conclusão da Carta aos Romanos, em que Paulo faz uso dessa convenção e a incrementa, tornando-a, além de uma conclusão, uma doxologia.
Doxologia é uma fórmula litúrgica para louvar a Deus com preces, poesias ou hinos. Essa palavra provém da junção de dois termos gregos: doxa (glória) e logia (palavra). A palavra glória tem o sentido de louvor, exaltação, honra. Paulo apresenta diversas doxologias em suas epístolas (ex.: Gl 1.5; Ef 3.21; Fp 4.20; 1Tm 1.17), o que nos revela que essa não era uma prática incomum para ele. No entanto, nenhuma doxologia é tão longa e elaborada como a de Romanos.
A localização dessa doxologia na Carta aos Romanos não é consensual. Alguns manuscritos a apresentam em 14.23 e outros em 15.33. Isso pode indicar que a doxologia final é um acréscimo ao texto original do capítulo 16. Há também a hipótese de que a epístola original aos romanos terminaria em 15.33 com acréscimo do hino final (16.25-27) sem o texto de 16.1-24, colocando também em dúvida a autoria de Paulo para esses trechos finais.
Uma forma de tradução seria:
25 Àquele que tem o poder de vos confirmar segundo o Evangelho
que eu anuncio pregando Jesus Cristo – revelação de um mistério
envolvido em silêncio desde os séculos eternos,
26 agora, porém, manifestado e, pelos escritos proféticos e por disposição
do Deus eterno, dado a conhecer a todos os gentios para
levá-los à obediência da fé –
27 a Deus, único e sábio, por Jesus Cristo, a Ele seja dada a glória,
pelos séculos dos séculos! Amém.
O termo grego para “confirmar” significa “firmar”, “sustentar”. Deus é poderoso para confirmar nossa filiação divina por meio de Cristo e nossa irmandade pela fé: uma irmandade universal! Na tradução de Almeida consta no v. 25 segundo o meu evangelho e a pregação de Jesus Cristo. Essa expressão “meu evangelho” não quer dizer que Paulo tem sua própria versão do evangelho. Ele abre a carta desta forma: Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus (Rm 1.1). Nesse sentido, a tradução segundo o Evangelho que eu anuncio pregando Jesus Cristo expressa melhor a ideia do apóstolo sobre a missão para a qual foi chamado.
Além de eterno, Deus é descrito como o “único sábio ou único e sábio”. Esses dois termos caros ao monoteísmo podem ser traduzidos separada (ao Deus único e sábio) ou juntamente (a Deus, o único sábio). Mesmo que o tema da sabedoria divina possa ser encontrado no pensamento grego, aqui sabedoria é aquela manifestada em Cristo. Ela não é um conhecimento proveniente de iluminação interior, mas consiste em uma revelação encarnada. Deus é sábio e por isso estabeleceu um plano apropriado a seu desígnio eterno (o “mistério”) e o executa por meio de Jesus Cristo, mediante a pregação do evangelho. Deus é o único: essa expressão reflete o conceito central da confissão originária de Israel, o chamado shemá Israel: Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor (cf. Dt 6.4). Paulo quer destacar a exclusividade de Deus diante dos muitos deuses em Roma e sua sabedoria suprema.
O substantivo mystērion é composto a partir da raiz myō, que significa “ser silencioso”, “fechar a boca”. O sufixo tērion designa tanto o lugar onde se dá a ação quanto a ação em vista de determinado fim. A palavra “mistério” significa algo silenciado em vista de um fim particular e não algo inacessível ou incompreensível. A maior parte da ocorrência da palavra “mistério” aparece no contexto do conhecimento e, em função disso, muitas vezes, num esquema de revelação (Rm 16.25-26; 1Co 2.7-9; Ef 3.1-13; Cl 1.26-27). Não estão em foco os mistérios das religiões gregas que somente os iniciados podiam compreender. Os mistérios de Deus só podem tornar-se conhecidos por meio da própria revelação divina e não porque as pessoas sejam suficientemente engenhosas para chegar a tal conhecimento. Nesse sentido, mistério não é um enigma para ser decifrado, é algo sagrado e que foi revelado por Deus em tempo oportuno: a vinda de Cristo. Esse acento teológico de revelação ao termo mistério é ampliado quando percebemos que essa revelação não tem destinatário exclusivo, mas todas as nações do mundo. Toda a humanidade passa a ter acesso à fé, porque o Evangelho é força de Deus (Rm 1.16). O “agora” do v. 25 expressa a ação de Deus que se encarna na história da humanidade para orientá-la em direção a seu alvo.
Entre todas as nações (v. 26): desde Abraão, Deus fez a promessa de abençoar todas as nações. Ele começou pela família de Abraão: instrumento da bênção e não alvo único dela. Paulo sabia que a igreja de Roma ficava no centro nevrálgico de um império, que começava a perseguir cristãos. Essa igreja foi fundada por judeus e, mais tarde, eles foram expulsos pelo imperador Cláudio e isso deu ocasião para que mais gentios participassem da igreja.
A fórmula “por Jesus Cristo” enfatiza a exaltação de Cristo à direita de Deus como intercessor e mediador, como Paulo o apresentou em Romanos 8.34. Em Romanos 16.25, assim como em Romanos 16.27, Deus vem apresentado em relação com Jesus Cristo, mesmo não sendo qualificado como “Pai de Jesus Cristo”.
3. Meditação: o encantamento no cotidiano
O apóstolo Paulo eleva seu olhar para a glória de Deus ao finalizar uma carta tão depurada no discurso teológico. A conclusão da carta não é com frases de impacto do seu redator nem com um desfecho dogmático, mas com uma doxologia! Da mesma forma, o Natal não compreende apenas o conhecimento da história do nascimento do filho de Maria e José, mas a fé na encarnação do Salvador. No comum da gente de Roma se manifesta a extraordinária glória de Deus, chamando pessoas para a fé. O contexto cosmopolita de Roma não era nada favorável para a criação e a manutenção de igrejas e ainda igrejas tão diversas, reunindo judeus e gentios. A glória de Deus manifesta-se também no fato de surgir igrejas em Roma e, por isso, serve de inspiração para olharmos com mais atenção para o colorido da glória de Deus no cinza do concreto de nossas cidades hoje. Assim como o menino Jesus nasceu longe dos palácios, há muita vivência de fé pulsando nas periferias das cidades e nos contextos agrários mais distantes. A doxologia ressalta que o poder de Deus age no comum e os olhos da fé percebem que o comum ganha ares extraordinários no comunitário.
O apóstolo preocupava-se com a continuidade da comunidade cristã em Roma. A doxologia não contempla apenas informação. É anúncio! Nesse sentido, é fundamental destacar que Natal não é apenas uma data religiosa ou um feriado oportuno, mas é a rememoração do mistério divino revelado e encarnado, que mudou a história da humanidade para sempre. Rememorar esse mistério é atualizá-lo, permitindo que seu impacto continue transformando vidas! Somos tentados a nos perder no comum, na rotina, ainda mais quando se trata de rituais e datas religiosas. É possível que nossa vida do dia a dia, agitada com a preparação para o Natal, seja preenchida com extraordinários significados? A experiência de Maria (Lc 1.26-38) responde com um enfático sim! Ela mostra-nos o que acontece quando o comum torna-se extraordinário! Muitas vezes queremos limitar as dádivas de Deus de acordo com nossos padrões. A caminhada do Advento é o divino irrompendo dentro do mundano. Mesmo que o mundano capriche nos sons, cores e sabores, nada se iguala ao retumbante milagre da encarnação. O 4º Domingo de Advento torna-se um prelúdio da sinfonia da encarnação, um “esquenta” da festa da divina presença, um prólogo da história de amor de Deus pela humanidade.
Estamos acostumados a analisar, perscrutar teológica e cientificamente as verdades bíblicas. E mesmo uma carta tão densa no conteúdo como Romanos, finaliza com adoração e contemplação. No 4º Domingo de Advento vamos desarmar o espírito para que os olhos do coração contemplem a glória de Deus e a mente aceite a simplicidade e a veracidade do amor divino. O anúncio do Natal não é para valer apenas para uma época, mas para a vida inteira, ou seja, uma vida glorificada e que, por isso, glorifica a Deus por meio de si e edifica, pela fé, outras vidas. Uma vez visto, não tem como “desver”, uma vez que sabemos, não há como ficar indiferente. A mensagem de Deus, uma vez revelada, não tem como ser barrada, sufocada ou controlada – se eles se calarem, as próprias pedras clamarão (Lc 19.40). Não seremos mais os mesmos depois de experimentar um Natal doxológico com a glória divina refletida no estudo e vivenciada no dia a dia.
4. Imagens para a prédica: Natal comunitário (comum+unitário)
Um jornalista, certa vez, afirmou: “Um fato é como um saco – só fica em pé quando está cheio”. No mundo virtual circulam muitas notícias falsas (fake news) e o Natal nos traz a notícia mais incrível e impactante de todos os tempos: o nascimento do Salvador. No Advento estamos com o saco cheio de esperança ou apenas de “saco cheio”? Preparar dois sacos parecidos com os sacos de presentes do Papai Noel. Deixá-los bem cheios e volumosos. O primeiro, encher com balões e estourá-los nomeando coisas do Natal: presentes, enfeites, comidas, bebidas, festas, amigo secreto, feriado etc. Tudo isso passa até o final do Natal e o que permanece é o saco vazio – a vida vazia. No segundo saco colocar uma caixa/embalagem grande o suficiente para preencher o saco e dentro dessa embalagem uma cruz para destacar que o maior presente do Natal é o Filho de Deus, Jesus Cristo, o mistério do amor de Deus revelado ao mundo. Esse presente permanece e precisa ser lembrado todos os dias.
Outra simbologia impactante seria com o laço vermelho da Coroa de Advento. Nos textos bíblicos previstos é destacada a aliança de amor que Deus faz conosco, cujo auge é Cristo. Cada pessoa vai ganhar dois pequenos laços vermelhos: o primeiro é para ela se lembrar de fazer uma ação por dia que glorifique a Deus até o Natal, e o segundo é para presentear alguém junto com um gesto de solidariedade. Lembrar a importância de, a partir deste domingo, estreitar, intensificar, reatar laços afetivos. Depois de refletir sobre o significado dessa doxologia e termos sido privados de cultivar tantos laços afetivos por causa da pandemia do coronavírus, como quero vivenciar a espera para o Natal?
Chama a atenção o jogo de palavras que Paulo usa: séculos eternos/agora, envolvido em silêncio/dado a conhecer e os sinônimos revelado, manifestado e conhecido. Nesse sentido, vale explorar imagens de contraste, como: do silêncio ao anúncio, das trevas à luz, do mistério à revelação, da gestação ao nascimento, da inércia ao movimento, do Advento ao Natal (o “pulo de alegria” do 4° Domingo de Advento para o Natal, afinal serão somente quatro dias), do afastamento à comunhão (lembrar o isolamento social devido à pandemia da Covid-19. Espero que nessa época esteja liberada toda forma de contato físico, pois enquanto escrevo sigo a orientação #fiqueemcasa).
5. Subsídios litúrgicos: extraordinariamente comum
Destacar a dimensão de mistério do Advento e a expectativa biblicamente adequada para a espera. A Coroa de Advento é pedagógica nesse sentido. O acendimento da quarta vela da coroa pode ser realizado no momento do Glória, fazendo alusão ao canto de glória dos anjos conforme Lucas. Se é costume deixar esse glória para a véspera de Natal, o acendimento das velas pode ser realizado durante a leitura de Romanos: a cada versículo, acender uma vela, e depois do “amém” do v. 27, cantar aleluia e então acender a última vela.
O desafio é fazer da doxologia não apenas um momento da liturgia, mas o fio vermelho que perpassa todo o culto. Da ortodoxia à doxologia: a doutrina que não apenas convence a mente, mas comove o coração. O profundo conhecimento da palavra que leva ao intenso louvor e ao desprendido serviço em amor.
Paráfrase da doxologia de Paulo: Ouve, ouve, comunidade! Hoje é a oportunidade de ouvir a história da salvação, quando Deus enviou seu Filho para a humanidade! Vem chegando o Natal, mas com ele tanta hiperatividade: vamos atentar ao que é mais importante: Deus veio a nós e é atuante! Glória a Deus que nos socorre, glória ao único e sábio Deus que nos unifica com ele: ele que é comunhão, nos chama para viver em mutirão! Logo é Natal, não nos esqueçamos do principal! Natal extraordinário é lembrar que no comum Deus se manifestou, que o mistério foi revelado e como suas filhas e seus filhos fomos consagradas e consagrados!
Bibliografia
LEENHARDT, Franz J. Epístola aos Romanos – Comentário Exegético. São Paulo: ASTE, 1969.
REYNIER, Chantal. Para ler a Carta aos Romanos. São Paulo: Loyola, 2015.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).