Prédica: Romanos 3.19-28
Leituras: Isaías 62.6-7,10-12 e João 8.31-36
Autor: Ricardo Willy Rieth
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/2000
Proclamar Libertação – Volume: XXV
Tema: Reforma
Introdução
A celebração do Dia da Reforma ocorre numa época em que no Brasil são festejados os 500 anos de descobrimento. Trata-se de uma repetição do já acontecido em 1992, quanto o feito de Colombo esteve no centro das atenções em toda a América Latina. Evoca-se a capacidade de superação dos próprios limites experimentada pela humanidade naquela ocasião.
Lembrar a Reforma, também ocorrida há cerca de 500 anos, e fazê-lo a partir de sua mensagem central, pode ser muito apropriado. Nesse sentido, o texto de Rm 3.19-28, além de texto, é um excelente pretexto para falar do fracasso humano quando se insiste em elogiar o seu sucesso. Para falar da ação de Deus, quando se teima em louvar a ação das pessoas.
Texto/contexto
Esse trecho de Romanos é central para a compreensão de toda a carta. Situa-se na parte em que o apóstolo tematiza a justificação do ímpio com base na fé em Jesus Cristo (1.18-5.21). Trata-se do detalhamento da tese apresentada nos vv. 1.16s. A situação, de fato, de todas as pessoas perante Deus é descrita: todas, judias ou não, estão sem exceção sob a ira de Deus, pois todas pecaram (1.18-3.20). Essa realidade de todo o universo é superada pela ação salvífica da justiça de Deus na morte expiatória de Jesus Cristo. Assim, todas as pessoas, judias ou não, contrariamente à sentença da lei, que as denuncia como pecadoras, tornam-se justas com base na fé em Jesus Cristo (3.21-4.25).
V. 19: A Paulo importa dizer que a acusação da Escritura (v. 10) não vale só para os gentios, mas para os judeus que vivem no âmbito da Tora (2.12) a eles dada. O que a Tora diz aqui tem por objetivo mostrar que os judeus, assim como os gentios, tornaram-se sacrílegos, que seu gloriar-se irá se esvair. ‘Iodos, judeus e gentios (v. 9), sujeitaram-se ao direito divino executado no irihiinal da ira.
V. 20: Isso também vale tendo em vista justamente o dom da lei: com base nas obras da lei, ou seja, com base no cumprimento dos mandamentos elementares da Tora carne alguma sobre a terra será reconhecida justa diante do tribuna] de Deus. Paulo cita o SI 143.2 e acrescenta por obras da lei. Coloca-o sob a autoridade da palavra da Escritura. No judaísmo não há origem possível para esta posição, pois a lei nele vale elementarmente como garantia da salvação e o cumprimento de seus mandamentos naturalmente como pressuposto para a justificação. Paulo polemiza contra essa compreensão. Com sabemos indica-se que tal posição era conhecida da tradição litúrgica vivida pela comunidade à qual escreve.
Vale perguntar: qual o sentido dessa frase? Com base no dito previamente fica claro que ninguém é justificado(a) por obras da lei, porque todas as pessoas são culpadas diante de Deus (v. 19), porque não há nenhuma justa (vv. 10-12), todas pecaram e estão sob o pecado (v. 9), tanto judias na lei como não-judias sem a lei (v. 2.12). Pessoas injustas, porém, cuja injustiça é manifesta e ativa através de seus atos, não são justificadas por cumprirem os mandamentos (como ato de reparação, pelo qual os pecados seriam suspensos). A lei não tem poder algum para isso (v. 8.3). Ela existe apenas para justificar os justos (v. 2.13) e não os pecadores. Se todos pecaram, sua função somente pode ser a de fazer com que reconheçam os pecados, fazer com que estes se manifestem como pecados.
O que importa ao judeu é, para além do princípio da justificação por obras da lei, fundamentar a própria justiça no privilégio histórico-salvífico da eleição de Deus, garantindo-a dessa forma. Paulo, em contraposição, faz das obras a medida exclusiva da justificação do justo (v. 2.13). Diante dessa medida, tanto judeus como não-judeus sucumbem. Justamente por isso Paulo quer conduzir seu interlocutor ao conhecimento e reconhecimento de que seu pecado é verdadeiramente a razão da condenação. Devido a suas obras o judeu pelas obras da lei não é reconhecido justo (v. 2.17-24). A base sobre a qual se compreende o anúncio da justiça da fé é a denúncia de que todas as pessoas são pecadoras por causa de suas obras.
V. 21: O que agora segue c explicitado como antítese do precedente (v. 1.18): a revelação da justiça de Deus em contraposição à revelação de sua ira. A expressão mas agora tem sentido histórico-salvífico (cf. 2 Co 6.2): em contraposição ao tempo relativo à ira irrompe um novo tempo. Isso está plenamente dentro da compreensão de que a antiga era é desfeita pela nova, a era do fim dos tempos. Nesse horizonte, a comunidade cristã primitiva vivenciou e entendeu a conversão. Como repercussão da nova era em Cristo, que interfere na velha era da perdição, arrebatando de lá as pessoas fiéis (cf. Gl 1.4).
Justiça e ira de Deus são conceitos opostos. No pensamento judaico, porém, estendem-se a diferentes grupos humanos: a ira corresponde aos injustos; a justiça aos justos. Assim, com a consecução da ira de Deus aqueles são exterminados e somente estes permanecem em vida. Paulo, porém, pensa a oposição da seguinte maneira: a justiça de Deus se estende a todas as pessoas, igualmente injustas, que já caíram por completo sob a ira divina.
A revelação da justiça de Deus exclui a eficácia da lei no sentido do v. 3.20, o de obter-se a salvação mediante seu cumprimento. A exclusão da lei é condição para que a pessoa pecadora — revelada como tal pela lei em sentido escatológico-forense — seja justificada.
A desativação da lei não significa que ela seja desviada ou contornada. A justiça de Deus é eficaz justamente ali onde a lei amaldiçoa o pecador. Ela suspende essa maldição. Isso não é possível na lei, mas apenas sem a lei, pois a lei não tem a força para suspender sua própria ação (v. 8.3). Esse é o novo modo de Deus agir agora: promove a salvação lá onde a lei só pode prometer a condenação.
Como em um tribunal, a revelação da justiça de Deus sem a lei é testemunhada pela própria lei, juntamente com os profetas (a segunda parte do cânone vétero-testamentário). Paulo assume um elemento da tradição cristã primitiva, que via Jesus Cristo como anunciado previamente pelos profetas (cf. l Pe 1.10-12; Hb l.ls.; Lc 18.31; 24.25,44; At 3.18; 8.34s.; 10.43; 13.27; 26.27), e acrescenta a lei como testemunha. Mais adiante, no capítulo 4, ele apontará para a Tora como prova decisiva da Escritura para a tese que defende.
V. 22: A revelação da justiça de Deus se dá pela fé em Jesus Cristo. É dádiva de Deus a quem crê. A fé é determinada por seu objeto: Jesus Cristo. Não se trata de uma postura do ser humano, pela qual obtém justiça, mas da fé salvífica em Deus, que não se orienta por sua justiça na lei, mas na morte de Jesus Cristo. Por meio da fé em Jesus as pessoas pecadoras vivem a comunhão com Deus, comunhão da qual são excluídas pela lei. Se a ira de Deus se destinava a todos (v. 1.18), pois todos estão sob o pecado (v. 3.9), agora a justiça de Deus se volta a todos os que na fé se colocam na dependência de Cristo.
V. 23: O pecado de todas as pessoas é o lugar onde a justiça de Deus se faz ativa. Sob o pecado não há diferença entre judeus e gentios (v. 10.12), pois todos pecaram. As pessoas pecadoras perdem a glória de Deus assim como Adão, que a possuía ao ser criado, a perdeu.
V. 24: A justificação dos pecadores ocorre gratuitamente pela ação da graça de Deus como antagonista do pecado. Onde a tradição judaica talvez falasse de bondade, misericórdia, paciência ou longanimidade de Deus, Paulo usa graça, que repercute mais forte e radicalmente do que aqueles atributos. Graça é o poder salvífico escatologicamente atuante, com o qual Deus tira o pecado de todas as pessoas e sua condenação pela lei. Redenção designa a redenção dos pecados, conforme presente na vida litúrgica das primeiras comunidades cristãs (cf. Cl 1.14; Ef 1.7; Hb 9.15; l Co 1.30). Aí a experiência da redenção dos pecados por ocasião da conversão era compreendida como realização escatológica da redenção bíblica do êxodo, vivenciada pelas pessoas pecadoras na esperança da ressurreição dos mortos (Ef 5.7) e da nova criação (2 Co 5.17).
V. 25: A redenção em Jesus Cristo é o fundamento da justiça em lugar da condenação do pecado na lei. Em que sentido? A explicação que segue adota terminologia específica do culto no Antigo Testamento. O termo propiciação diz respeito à tampa de ouro (propiciatório) colocada sobre a arca da aliança, e ao lado da qual estavam querubins cobrindo com suas asas o lugar da presença de Yahweh com sua Palavra (cf. Êx 25.17-22; 30.6). No Dia da Expiação Yahweh se manifestava sobre ela para que diante dele ocorresse todo o ritual. O sumo sacerdote espargia o sangue de um novilho sobre a frente do propiciatório como expiação do santuário e também como expiação para si, sua família e toda a comunidade de Israel (cf. Ev 16). Paulo retoma essa tradição ritual para apresentar o Cristo crucificado na função de alguém engajado por Deus como propiciatório na festa da reconciliação, substituindo-a com sua morte. Esta é o lugar da presença de sua justiça salvífica para, através do sangue de Cristo, fazer expiação de todas as pessoas caídas em pecado.
Aqui são fundamentais três aspectos: l) que se trata de uma ação do próprio Deus; 2) que Cristo sofre a morte como consequência dos pecados de todas as pessoas. O próprio Deus faz expiação através desta morte. Ele se identifica com o Crucificado; 3) que essa expiação tem repercussão universal. Com pela fé, Paulo volta a acentuar (cf. v. 22) que a ação expiatória de Deus em Cristo se desvela às pessoas mediante a fé e as alcança na condição de crentes.
V. 26: Encerrou-se o tempo da paciência de Deus. Agora sua justiça se mostra na morte de Cristo através do pleno perdão, com o qual a ira de Deus foi suspensa. A comprovação da justiça de Deus reside no fato de que Deus é justo e justifica cada pessoa pecadora com base na fé em Jesus Cristo. Deus, em sua justiça, não se afasta da pessoa pecadora, não a sujeita ao tribunal de sua ira. Ao invés disso ele torna o injusto justo, não pelas obras da lei (pois essa possibilidade de justificação não mais existe), mas pela fé em Jesus. No final do versículo a ênfase está em Jesus. A pessoa pecadora não alcança a justiça meramente por fé, mas pela fé em Jesus, ou seja, por crer em Deus, que demonstrou sua justiça na morte expiatória de Cristo.
V. 27: Paulo retoma o dito nos vv. 2.17ss.: por que se gloria o judeu? Não há motivo para gloriar-se, pois a justiça de Deus é demonstrada no fato de ele justificar os pecadores com base na fé em Jesus (v. 26). Lei da fé deve ser compreendido como lei, ou Tora, em sentido estrito: ao contrário da lei, que vincula a justificação da pessoa a suas obras, Deus vincula a lei, como lei da fé, apenas à fé. Se Deus revela sua justiça em Cristo, mediante a fé (v. 22), então a Torá como lei requerente de obras e condenatória de pecadores está descartada (cf. vv. 21 e 28) e se apresenta agora como lei subordinada à fé.
V. 28: O apóstolo afirma o caráter exclusivo da fé no âmbito da justificação. Nesse ponto, séculos depois, também insistiram os reformadores. Com isso, Paulo não defende uma postura de passividade fiel e obediente perante Deus em oposição a uma justiça ativa, voltada à produtividade, da parte do judeu. Ao invés disso, ele se refere permanentemente à fé em Jesus (cf. v. 26). A pessoa, que se descobre pecadora por suas obras mediante a lei, se torna justa por conhecer e aceitar a remissão dos pecados pelo ato expiatório de Deus na morte de Jesus Cristo, ocorrida em seu favor, confiando plenamente nesta ação salvífica da justiça de Deus para sua vida.
Meditação
Lembrar o Dia da Reforma da Igreja significa olhar para trás e perguntar pelos motivos que levaram Lutero e outras pessoas a se engajarem naquele movimento que acabou repercutindo com tanta força na vida da Igreja, na teologia, na piedade, na sociedade e na cultura. A mensagem da Reforma, uma nova teologia, surgiu da experiência religiosa de Lutero com a teologia e as formas de piedade de fins da Idade Média e de seus estudos da Escritura e da tradição, auxiliado pela hermenêutica bíblico-humanista. Lutero compreendeu a justiça de Deus não mais como uma propriedade de Deus, que ele exige também do ser humano, mas como uma justiça que Deus imputa e se faz presente e atuante no ser humano, quando o justifica por graça. Assim, todos os esforços por merecer a graça de Deus, que determinavam decisivamente a sociedade de então, mediante exigências de produtividade, resultados e realizações (indulgências, jejuns, repetição mecânica de orações, veneração de santos e relíquias, vida monástica, dedicação de missas, procissões e consagração de objetos), tornaram-se supérfluos.
Em 1545, um ano antes de morrer, Lutero fez uma retrospectiva de sua vida. Ali, deixou evidente o quanto a compreensão de justiça de Deus expressa por Paulo em Romanos marcou sua existência:
Eu fora tomado por uma extraordinária paixão em conhecer a Paulo na Epístola aos Romanos. Mas fazia-me tropeçar, não a frieza de coração, mas uma única palavra no primeiro capítulo: A justiça de Deus é nele revelada (Rm 1.17). Isso porque eu odiava esta expressão justiça de Deus, pois o uso e o costume de iodos os professores me havia ensinado a entendê-la filosoficamente como justiça formal ou ativa (como a chamam) segundo a qual Deus é justo e castiga os pecadores e injustos. Eu não amava o Deus justo, que pune os pecadores; ao contrário, eu o odiava. Mesmo quando, como monge, eu vivia de forma irrepreensível, perante Deus eu me sentia pecador, e minha consciência me torturava muito. Não ousava ler a esperança de que pudesse conciliar a Deus através de minha satisfação. E mesmo que não me indignasse, blasfemando em silêncio contra Deus, eu resmun¬gava violentamente contra ele: como se não bastasse que os míseros pecadores, perdidos para toda a eternidade por causa do pecado original, estivessem oprimidos por toda sorte de infelicidade através da lei do decálogo — deveria Deus ainda amontoar aflição sobre aflição através do evangelho, e ameaçá-los com sua justiça e sua ira também através do evangelho? Assim eu andava furioso e de consciência confusa. Não obstante, teimava impertinentemente em bater à porta desta passagem; desejava com ardor saber o que Paulo queria. Aí Deus teve pena de mim. Dia e noite eu andava meditativo, até que por fim observei a relação entre as palavras: A justiça de Deus é nele revelada, como está escrito: o justo vive por fé. Aí passei a compreender a justiça de Deus como sendo uma justiça pela qual o justo vive através da dádiva de Deus, ou seja, da fé. Comecei a entender que o sentido é o seguinte: através do evangelho é revelada a justiça de Deus, isto é, a passiva, através da qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito: O justo vive por fé. Então me senti como que renascido, e entrei pelos portões abertos do próprio paraíso. Aí toda a Escritura me mostrou uma face completamente diferente. Fui passando em revista a Escritura, na medida em que a conhecia de memória, e também em outras palavras encontrei as coisas de forma análoga: Obra de Deus significa a obra que Deus opera em nós; virtude de Deus — pela qual ele nos faz poderosos; sabedoria de Deus — pela qual ele nos torna sábios. A mesma coisa vale para força de Deus, salvação de Deus, glória de Deus. Assim como antes eu havia odiado violentamente a frase justiça de Deus, com igual intensidade de amor eu agora a estimava a mais querida. Assim esta passagem de Paulo de fato foi para mim a porta do paraíso. (Martinho Lutero, Prefácio…, p. 30s.).
Hoje o contexto vivido no Brasil e na América Latina é totalmente distinto daquele da Europa central há cerca de 500 anos. A roupagem com a qual se apresenta o cotidiano é completamente diferente. Apesar disso, a ideia vigente quanto ao que vem a ser justiça e como esta pode ser alcançada é bastante semelhante. A pessoa vale por aquilo que produz. Isso se ainda chega a ser abençoada no sentido de poder ocupar um posto de trabalho para poder produzir. A pessoa vale por aquilo que consome. Se não consome, acaba sendo descartada. A justificação pelas obras da lei — não seria das leis do mercado? — é a justificação pela produtividade, pela relação custo-benefício, pelo consumo. A coisa é tão envolvente, que, apenas para citar um exemplo, chega a ser incorporada por igrejas cristãs em seu ensino sobre a ética cristã, a mordomia da oferta ou a prosperidade. Em todos os setores da sociedade o tribunal da ira de Deus está em sessão permanente. Quem está incumbido(a) da pregação precisa deixar claro à comunidade reunida onde está e aonde leva tal justificação pelas obras da lei.
Chega-se à conclusão de que a tese central de Romanos pode muito bem ser confrontada com a antítese proposta pelo cotidiano em que vivemos. Ou melhor, deve ser confrontada por quem, na fé, experimenta por graça a justiça de Deus e se identifica com ela. Tanto quanto nas épocas de Paulo e de Lutero, as pessoas vivem angustiadas, necessitam de consolo e carecem da justiça de Deus. Exatamente para isso acontece a pregação: para levar essa Palavra de conforto, esperança e vida.
Bibliografia
LUTERO, Martinho. Prefácio ao primeiro volume da edição completa dos escritos latinos. In: ID. Pelo evangelho de Cristo : obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma. Porto Alegre : Concórdia; São Leopoldo : Sinodal, 1984. p. (21) 22-32.
WILCKENS, Ulrich. Der Brief an die Römer : 1. Teilband: Röm 1-5. Zürich, Einsiedeln, Köln : Benziger; Neukirchen-Vluyn : Neukirchener, 1978. 337 p.
Proclamar Libertação 25
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia