Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Romanos 4.1-5, 13-17
Leituras: Gênesis 12.1-4a e João 3.1-17
Autor: Manoel Bernardino de Santana Filho
Data Litúrgica: 2º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 20/03/2011
1. Considerações gerais
A Epístola aos Romanos é a primeira carta que Paulo escreveu a uma comunidade que ele não fundou. A estrutura da carta é uma mescla de orientações teológicas (1-11) com exortações pastorais (12-16). A carta foi de importância fundamental para os escritos da igreja, para firmar as mais importantes doutrinas como aquelas apresentadas por Agostinho contra Pelágio (Pelágio dizia que o ser humano tem participação na salvação porque ele precisa responder ao apelo de Deus – é a doutrina da cooperação ou sinergismo) e como texto central nos escritos reformatórios de Lutero e Calvino, e mais recentemente em Karl Barth.
A carta foi destinada originalmente a uma comunidade de peregrinos judeus, prosélitos, que presenciaram o acontecimento do Pentecostes em Jerusalém no ano 30 d.C. e converteram-se com o sermão de Pedro (At 2.14-41). Não foi fundada pelos apóstolos, mas o fortalecimento da fé cristã em Roma foi provavelmente obra de Pedro em 64 e Paulo um pouco depois. Por estar no centro do império, a comunidade sofreu durante a perseguição aos cristãos. Assim viveu a opressão, a escravidão, a exploração, a desvalorização como uma realidade diária. O medo e o temor às leis e aos poderes do império e o clima hostil fomentaram ainda mais tensões na vida da comunidade em relação à fé e às reflexões teológicas. Assim, a carta procura acalmar os ânimos, consolar a angústia e, sobretudo, clarear as ideias da comunidade em relação à vida de fé em Jesus Cristo.
Em Romanos, encontramos a explanação sobre a justificação pela fé e não pela lei, enfatizando o evangelho da graça. A lei que condena e a graça que liberta mediante a fé. Os textos destacam libertação como aceitação, valorização, compromisso, convicção, paixão.
Em seu prefácio a essa carta, Lutero disse: Essa carta é verdadeiramente a mais importante peça do Novo Testamento. É o evangelho mais puro. É de grande valor para um cristão não somente para memorizar palavra por palavra, mas também para ocupar-se com ela diariamente, como se fosse o pão diário da alma, ou seja, da vida.
O texto selecionado da Carta aos Romanos apresenta a experiência de fé de um homem que acreditou na promessa que lhe foi confiada (Gn 12.1-4a). Abraão creu e por isso partiu. Deixou tudo para trás. Foi a fé que o pôs em movimento. Gênesis é a história dessa promessa. Romanos recupera a experiência de Abraão para nossa edificação. O quarto evangelho põe a fé em ação. O que importa é o ato de ter fé, ou seja, a fé como ação. Todo o que nele crê (Jo 3.16) é justificado, assim como foi Abraão.
2. Aproximação ao texto
Abraão não é apenas o pai espiritual de Israel. É pai de todos os que creem. Coube a ele nos ensinar o que significa ter fé. Não é por acaso que o pensador dinamarquês Sören Kierkegaard dedicou a ele o texto: Temor e Tremor. Em um dos capítulos – Elogio de Abraão – afirma: houve grandes homens por sua energia, sabedoria, esperança ou amor. Abraão, porém, foi o maior de todos. Grande pela energia, cuja força é a fraqueza; grande pelo saber, cujo significado é loucura. Abraão não nos deixou lamentos. Mesmo quando a esperança se tornou absurda, ele acreditou.
Por ele se viu no mundo o que é ter esperança. Ele era o eleito de Deus e herdeiro da promessa de que todas as nações seriam abençoadas em sua posteridade. Que significa ser o eleito de Deus? É ver recusado o desejo de juventude na primavera da vida, para só obter tal favor na velhice, depois de grande dificuldade. Abraão acreditou e por isso se manteve jovem, porque aquele que espera sempre o melhor envelhece na decepção e o que aguarda sempre o pior mais depressa se gasta; mas o que crê conserva a eterna juventude.
Nosso texto fala desse homem de fé chamado Abraão. O homem que alcançou graça diante de Deus, sendo justificado por sua fé. Aliás, é bom lembrar aqui o conselho de Paul Tillich, que sugere que não se diga, justificação pela (by) fé, mas justificação por meio (through) da fé. A justificação é mediada pela graça de Deus. Tillich escreveu um pequeno livro – “Dinâmica da Fé” –, em parte para corrigir as terríveis deformações do conceito de fé. Segundo esse autor, a fé é distorcida quando passa a ser concebida antropologicamente como conhecimento (intelectualismo), como ato (moralismo) ou como sentimento (emocionalismo). Para ele, a fé é um estado a ser tomado pela preocupação suprema, ou seja, a fé envolve tanto as profundezas como a totalidade do ser.
Portanto nunca devemos dizer justificação pela fé, e sim justificação pela graça por meio da fé (Ef 2.8). O poder justificador é a graça divina; o canal por meio do qual as pessoas recebem essa graça é a fé.
O texto estudado hoje se situa na parte teológica da carta e é antecipado por dois blocos temáticos:
1. Depravação humana – ira divina – pecado da humanidade (1.18-3.20). Pecado e condenação de todo ser humano (3.9-20).
2. Justificação pela graça mediante a fé (3.21-31).
Nesse contexto, Paulo destaca a pecaminosidade do ser humano, a inutilidade de leis e da autojustificação. O ser humano não consegue ser justo, ter valor,
ser aceito por Deus, mediante suas obras. Por outro lado, mediante a fé em Cristo, Deus abraça o ser humano gratuitamente. O caminho para os braços amorosos de Deus não é a lei, mas a fé em Cristo.
3. O texto
Na epístola, o capítulo 4 ocupa posição-chave. É aqui que se dá a prova escriturística da justificação pela graça por meio da fé, que é apresentada em Romanos 3.21-31. Isso só tem sentido se a fé de Abraão anteceder de algum modo a fé cristã e identificar-se com ela.
Paulo apresentou seu evangelho da justificação pela fé e, em seguida, defendeu-o contra os que o criticavam (3.27-31), enfatizando, ao fazê-lo, que esse evangelho é atestado pelas Escrituras do Antigo Testamento. Para exemplificar o que ele quer dizer, vai buscar o mais ilustre dos patriarcas de Israel: Abraão. Inicia com uma pergunta: “Que, pois, diremos ter alcançado Abraão, nosso pai segundo a carne?” (4.1). Será que ele foi sem o acréscimo da graça de Deus? Paulo rejeita com veemência a hipótese de que Abraão teria sido justificado por obras. Isso poderia fazer com que ele tivesse de se gloriar, mas logo ele corrige, quando diz que Deus credita justiça ao homem independente de obras. Outra razão para ele rejeitar essa ideia é a própria Escritura. Que diz a Escritura? Pergunta ele e responde segundo Gênesis 15.6: “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi creditado como justiça”. Depois ele vai até Davi (Sl 32.1-2).
A segunda pergunta de Paulo é se a bem-aventurança da justificação destina-se apenas aos circuncisos ou também aos gentios. Ele foi justificado antes ou depois da circuncisão? A resposta é que não foi depois, mas antes (v.10b). Sua justificação está assinalada em Gênesis 15, e sua circuncisão foi em Gênesis 17. Segundo os rabinos, um evento está distante do outro pelo menos 14 anos. Abraão recebeu a circuncisão como sinal, selo de justiça que ele tinha pela fé, quando ainda não fora circuncidado. A circuncisão era um sinal de aliança. Assim, Abraão recebeu dádivas distintas de Deus: a justificação e a circuncisão. E nessa ordem. Por isso Abraão é, de fato, o pai de todos os que creem. É pai dos gentios crentes, e para esses a circuncisão é tão desnecessária quanto foi para ele (v. 12).
Paulo volta a enfatizar (4.13) que Abraão não foi justificado por lei. A justiça de Deus chegou a Abraão e sua descendência não por causa da lei, mas me- diante a justiça que vem da fé. Abraão, de herdeiro da terra de Canaã, torna-se, no Novo Testamento, herdeiro do mundo. A promessa é herdada pela fé e não pela lei. Há três razões para isso:
Primeiro, está em Gálatas (3.17) que a lei vinda depois não anula a aliança; Segundo, é uma questão de raciocínio lógico. O que Deus disse a Abraão é: “Eu o abençoarei, creia na minha promessa”, e não: “Obedeça a essa lei, e eu o abençoarei”.
Terceiro, lei e promessa se excluem; a lei produz ira. Onde não há lei, não há transgressão. Lei, transgressão e ira pertencem à mesma categoria de pensamento e linguagem: a lei transforma pecado em transgressão, e transgressão provoca a ira de Deus.
Por isso o que Paulo afirma em relação a Abraão diz respeito à graça e não à lei. Deus é gracioso, e a salvação origina-se exclusivamente disso.
Paulo conclui esse capítulo, aplicando a nós, seus leitores, lições relativas à fé de Abraão. A expressão “lhe foi creditado” não diz respeito só a Abraão, mas também a nós. Tudo foi escrito para nossa instrução (Rm 15.4). O mesmo Deus que creditou justiça a Abraão vai creditar essa justiça a nós. É uma declaração que abrange todo o evangelho.
Paulo orienta-nos com respeito à natureza da fé. A fé pode ser fraca (v. 19) ou forte (v. 20). Mas como então ela cresce? Sobretudo através do uso de nossa mente. Fé não é enterrar a cabeça na areia, nem torrar os miolos para acreditar naquilo que sabemos não ser verdade ou então assobiar no escuro para esquecer o medo. Fé é uma confiança racional. Não se pode crer sem pensar.
Fé é agir como Abraão (v. 19), que, mesmo vendo seu corpo amortecido, envelhecido, pensou também que Sara não podia ter filhos. Quer dizer, reconheceu, enfrentou os fatos. Mas não deixou de crer em Deus. Ele é o Deus que ressuscita os mortos e chama à existência as coisas que não existem (v. 17). Por que esse Deus não poderia transformar aquela situação? E assim, à medida que sua mente foi acolhendo as promessas, os problemas foram encolhendo na mesma proporção, pois ele estava plenamente convencido de que Ele era poderoso para cumprir o que havia prometido (v. 21).
A doutrina da justificação pela graça mediante a fé é bíblica e não apenas paulina. Abraão é o modelo de crente; é o homem que creu acima de todas as circunstâncias; por isso devemos imitar o seu exemplo.
4. Meditação
No texto analisado, Paulo fala que as pessoas se refugiam na lei e não encontram consolo, mas condenação. A lei revela que toda a humanidade é culpada, que agride a presença e a face de Deus na experiência humana. O texto revela que a graça de Deus envolve o ser humano mediante a fé em Cristo, transformando a vida da pessoa, libertando-a e tornando-a agente de libertação no seu dia-a-dia.
Essa libertação é oferecida gratuitamente (v. 24) em Jesus Cristo. É um presente oferecido por Deus em Jesus Cristo.
Deus acolhe o pecador, não considerando sua culpa (v. 25), mas olhando para a ação de Jesus, o Cristo.
A ação de Deus (v. 26) que justifica não é algo futuro, destinado ao fim dos tempos. Deus perdoa e liberta a pessoa, proporcionando que ela viva em liberdade. Lutando contra o mal, promovendo libertação mediante a fé e refugiando-se nos braços de Deus.
Não existem vanglória, autoglorificação, porque não conquistamos a libertação, seja por obras, seja por tradição. A fé em Jesus Cristo oferta-nos gratuitamente a redenção. O ser humano é justificado pela fé, independentemente das obras da lei (27-28). Obras devem ser frutos da fé.
Para que tipo de libertação precisamos ser libertos?
1. das tradições e legislações humanas – cf. Colossenses 2.20-23;
2. da ânsia do ser humano de ser centro de tudo. Temos essa tendência de nos colocar como modelo, como centro. A cultura ocidental colocou-se como centro do mundo e passou a olhar o mundo a partir de seu próprio umbigo. Por isso dizemos: Oriente Médio, Oriente Próximo, Oriente Longínquo… longe de quem? Perto de quem?
3. libertar do poder do pecado, o valor em si, a compra e a venda de aceitação, que aliena e acomoda as pessoas, revelando que as injustiças, opressões e idolatrias são realidades normais da vida;
4. libertar da acomodação em que se encontra a igreja (seja nos tempos da Reforma, seja hoje). Libertar do marasmo, da indolência, da mesmice, da falta de sentido para a vida cristã. Pessoas que não sabem o que fazer, que apenas tentam manter o que têm. Não se preocupam com questões de fundo, que é a mudança de status quo (da situação existencial), de reformas estruturais que geram vida.
A libertação baseia-se…
Na ação amorosa de Deus, que acolhe o pecador, convidando-o a viver a justiça mediante a fé em Cristo. Convite gratuito e transformador.
Na presença de Cristo, na comunhão dos pecadores, dos excluídos, dos sofridos, dos que necessitam perdão, consolo e valorização.
No perdão oferecido gratuitamente como força transformadora e reformadora, mudando vidas, estruturas e relações.
5. Imagens para a prédica
Sugiro que se promova a preparação de um cartaz, uma faixa de pano, uma cartolina, para marcar essa mensagem com um recurso visual. Pode-se também usar a mídia, o data show para apresentar essa mensagem. Pode-se usar o recurso numa apresentação em power point.
Paulo afirma em 1 Coríntios 3.11: “Ninguém pode lançar outro fundamento além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo”. Somos justificados por Deus, ou seja, aceitos, perdoados, incluídos no seu reino mediante a fé. Não temos mérito. Temos, sim, culpa a confessar.
A imagem para ilustrar essa experiência libertadora de salvação é apresentada pelo profeta Habacuque. Dionísio Pape diz que ele é o primeiro profeta a pregar por meio de outdoor. A mensagem é esta: o justo viverá pela sua fé (Hc 2,4b). Aqui está o primeiro panfleto evangelístico do mundo. A pregação por meio de manchetes.
Muitas vezes, ficamos perplexos: Deus não tira o tirano do poder, não faz parar as máquinas de guerra, os tanques invasores. E, nesse momento, as dúvidas invadem a alma, assaltam o raciocínio e o homem piedoso é tentado a abandonar sua fé.
Mas a resposta de Deus é esta: “O justo viverá por usa fé”.
Fé em quem? No Senhor da História, naquele que reina hoje e sempre. Fé naquele que nos ensinou a orar “venha o teu reino” e mais ainda: “pois teu é o
reino”.
Paulo diz que o mundo aguarda a restauração (Rm 8.22-23).
Nosso otimismo deve ser gerado pela fé. O justo, vivendo num mundo de injustiça, só pode viver pela fé (2 Pe 3.13).
6. Subsídios litúrgicos
No tempo da Quaresma, a liturgia deve apresentar convites para a libertação. Sugiro a leitura do capítulo 15 de Êxodo e ler/cantar a antífona de Miriã como paradigma de libertação.
Bibliografia
KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas Paulinas. Trad. Benôni Lemos. São Paulo: Paulinas, 1980.
LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas, v. 8. Interpretação Bíblia; princípios. Trad. Adolpho Schimidt, Eduardo Gross, Elisa L. Schulz, Luís H. Dreher, Walter O. Schlupp. São Leopoldo/Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 2003.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).