Crer… até quando?
Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Romanos 4.13-25
Leituras: Marcos 8.31-38 e Gênesis 17.1-7, 15-16
Autor: Astor Albrecht
Data Litúrgica: 2º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 01/03/2015
1. Introdução
Em Rm 4, Abraão é apresentado como exemplo da justificação pela fé. A leitura em Gn 17 relata a mudança do nome de Abrão para Abraão. Deus faz isso como um sinal da promessa: “por pai de numerosas nações te constituí” (v. 5). Também muda o nome de Sarai para Sara, pois ela dará à luz um ilho (v. 16). Abraão crê na promessa de Deus, que é feita em meio à total impossibilidade humana: idade avançada do casal e a esterilidade de Sara. É possível crer em Deus em tal situação? Não seria mais do que plausível abandonar a fé? E se crer, até quando?
No texto de Mc 8, Jesus apresenta o caminho da cruz a seus discípulos. Pedro sugere que outro caminho possa ser viável, um caminho que possa prescindir da cruz. Ele é reprovado severamente por Jesus, que afirma que é nesse caminho que encontramos a vida. Portanto não devemos nos envergonhar das palavras de Jesus e das promessas que nos são feitas no evangelho. Todas as promessas de Deus são para nós como povo de Cristo Jesus e são essas promessas que sustentam a fé e a caminhada do seu povo.
2. Exegese
Em Rm 3.21-31, Paulo define e descreve a justificação pela fé em Jesus Cristo. Agora, no capítulo 4, ele ilustra a justificação e a fundamenta na Escritura com o exemplo de Abraão. Nos v. 1-8, Paulo afirma que a justificação não vem pelas obras. A questão é como Abraão foi aceito ou justificado? Foi devido às suas obras ou porque teve confiança em Deus? A resposta está clara no v. 3: “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça”. Paulo ainda cita o exemplo de Davi sobre essa verdade. Nos v. 9-12, Paulo ilustra, pela experiência de Abraão, que a justificação é separada das ordenanças da religião (circuncisão). Abraão foi justificado antes da circuncisão. Ele não foi justificado por ter sido circuncidado, mas foi circuncidado por ter sido justificado por Deus (v. 11).
Assim chegamos aos v. 13-25 indicados para a pregação. Em continuidade com a argumentação anterior, Paulo afirma que, se a circuncisão não tinha nada a ver com a justificação de Abraão por parte de Deus, a lei tinha menos ainda a ver com isso. Pois, como Paulo indicara aos gálatas, a lei foi dada 430 anos depois da promessa feita por Deus a Abraão (Gl 3.17). Se muito depois de ter sido feita a promessa se tornasse condicionada à obediência a uma lei não mencionada nos seus termos originais, toda a base da promessa seria anulada. A justificação de Abraão fundamentava-se em sua fé em Deus. Ele não a recebeu por mérito ou esforço, como seria se estivesse condicionada à guarda da lei, mas sim pela graça de Deus.
A característica que deu a Abraão uma posição peculiar na história do povo de Deus foi o fato de crer. Ele se tornou o pai de todos os crentes. Quero aqui destacar os v. 17-25: Paulo mostra Abraão como paradigma do que é a fé e o que ela significa. Qual era a situação de Abraão para que a fé pudesse se revelar e tornar- se evidente? Deus lhe havia feito uma promessa: “serás pai de numerosas nações” (Gn 17.4). Mas quando Abraão considerava a si mesmo e as possibilidades humanas, a promessa de Deus poderia lhe parecer simplesmente impossível. Ainda que a condição de Abraão e Sara fosse inviável (v. 19), ele não duvidou (v. 20).
O que é característico na fé de Abraão? Às vezes, diz-se que é crer no impossível. Será que a característica da fé de Abraão é o crer no improvável? Naquilo que parece ser inconcebível? Não é essa a natureza da fé de Abraão. O essencial é que ele tinha uma promessa de Deus para crer. Pelo fato de ter a promessa de Deus, as circunstâncias totalmente adversas não o levaram a duvidar de Deus. Abraão ateve-se às promessas de Deus, ainda que todos os cálculos humanos falassem contra o que esperava. Quando Abraão creu em Deus, não o fez porque existia alguma esperança para ele do ponto de vista humano. Pelo contrário, creu ainda que humanamente não existisse esperança alguma. Todas as circunstâncias apontavam que a sua esperança daria em nada. Ainda assim, ele se ateve a ela. E isso ele podia fazer, pois não a firmava em outra coisa senão na promessa dada por Deus. Essa dupla situação de que, por um lado, não havia esperança e, por outro lado, ainda assim esperava é essencial para a fé. Paulo escreveu: “Abraão, esperando contra a esperança, creu” (v. 18). Sem esperança, não obstante com esperança: isso é sinal da fé verdadeira. Ali onde ambas lutam entre si, existe a fé. Quando a pessoa pode valer-se dos seus próprios meios, não se trata de fé, pois a fé não é confiança em si mesmo. A fé é bem mais o oposto da confiança em si mesmo, da confiança na capacidade e nos recursos próprios.
A fé de Abraão não prescinde da realidade. Quer dizer, Abraão não foge da realidade e da manifestação de todas as dificuldades para que a promessa de Deus se cumpra. A fé não é um refugiar-se em outro mundo. A fé não é fechar os olhos diante da realidade. Não é uma espécie de autoengano. Ele via a realidade como ela era e dava-se conta de tudo quanto parecia fazer ser impossível à promessa de Deus. Como Paulo escreve, Abraão levou “em conta o seu próprio corpo amortecido, sendo já de cem anos, e a idade avançada de Sara” (v. 19). Mas isso não o fez “enfraquecer na fé” (v. 19), antes “se fortaleceu” (v. 20). Como a fé pode debilitar? Como ela se fortalece? Pode ser natural pensar que a fé enfraquece quando as dificuldades aumentam e que a fé é fortalecida quando as perspectivas melhoram. Paulo afirma o contrário: quando nossas próprias possibilidades diminuem, a fé aumenta. Isso porque ela não descansa em nós mesmos e em nossas capacidades, mas em Deus e em suas promessas. Ao não confiar em suas próprias possibilidades, Abraão pôde encarar a impossibilidade de sua situação sem debilitar sua fé, pois tinha a promessa de Deus para se firmar.
Fica claro que, para Paulo, Deus e a fé são uma unidade inseparável. Não se pode falar da fé sem referir-se a Deus. A fé é o que é por estar ligada a Deus. A fé não é uma função psíquica ou qualidade interior do ser humano. Quando se diz que a fé é fé em Deus, não se trata de uma fé indefinida e generalizada. Mas uma fé em Deus “que vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não existem” (v. 17). Quando Deus disse a Abraão que seus descendentes seriam numerosos como as estrelas, ele ainda não tinha filhos. Não só isso, mas tinha ultrapassado a idade em que um homem pode esperar vir a ser pai, e Sara, sua mulher, estava ainda mais além da fase da maternidade. Ele não fechou os olhos a essas circunstâncias desfavoráveis, mas cria que a vontade e a capacidade de Deus cumprir suas promessas sobrepujava todas essas dificuldades. Esse era o Deus em quem Abraão cria. Ele cria que Deus, por sua promessa poderosa, poderia vivificar seu corpo e dar a Sara a capacidade de conceber e fazer dele o “pai de muitas nações” (v. 17).
Por crer na promessa de Deus, Abraão deu glória ao nome de Deus (v. 20). A honra e a glória são para Deus. Paulo fala dela em Rm 1.21,23: “Porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus […] e mudaram a glória do Deus […]”. O que o pecado “tirou” de Deus, a fé “devolve”. Ela reconhece a presença e o agir salvador de Deus. Assim, somente na fé o ser humano está em reta relação com Deus. Por essa razão, Paulo fala ao mesmo tempo da fé e da justiça de Abraão: “Dando glória a Deus, estando plenamente convicto de que ele era poderoso para cumprir o que prometera. Pelo que isso lhe foi também imputado para justiça” (v. 20-22). E isso não é válido somente para Abraão, mas para todos os que são da fé como ele (v. 23-25). O “nós” do v. 24 refere-se à comunidade que crê no agir de Deus em Jesus Cristo. A palavra “por” no v. 25 traduz dia (por causa de): Cristo foi entregue para morrer a fim de expiar os pecados do seu povo e ressuscitou para garantir a justificação dele. Há uma relação entre a fé que vemos em Abraão e a fé daqueles que creem em Cristo. Quando cremos em Jesus como aquele que “foi entregue por causa de nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa justificação” (v. 25), então cremos no Deus que dá vida aos mortos. Somos filhos e filhas da ressurreição. Passamos da morte para a vida, pois Deus tratou conosco por meio de Cristo: “E estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo – pela graça sois salvos” (Ef 2.5).
3. Meditação
“Abraão, esperando contra a esperança, creu” (Rm 4.18). A idade avançada do casal, aliada à esterilidade de Sara, não era com certeza um bom indício de que dali viria uma família. Mas Abraão não se firmou naquilo que as pesquisas sobre natalidade informavam: firmou-se na promessa de Deus. Ele creu que a promessa de Deus era verdadeira e que ele iria cumpri-la.
A experiência da vida ensina-nos quão pequenos somos, quantas situações adversas se apresentam para nós. Nossa força é pequena diante das dificuldades que se levantam contra nós. Quanta preocupação e ansiedade nós experimentamos diante das exigências da vida pessoal, familiar e comunitária! Não poucas vezes sentimos medo. Nessas horas, pensamos em Deus e sobre a nossa fé: Será que ele não nos responde? Até quando vou conseguir crer? Quem sabe já conhecemos pessoas que disseram algo como “não vale a pena crer, pois nada muda”. Talvez esse pensamento seja ainda fortalecido quando a fé é hoje apresentada como um “show”. Isto é, ela tem de fazer as coisas acontecerem. E se nada acontece, é porque essa fé não está firme o suficiente. Além do mais, quem crê não vai enfrentar lutas; é logo vitorioso.
O texto esclarece sobre o caminho da fé. Há a luta da fé: quero crer, mas me parece tão difícil crer. A fé está ali cheia de vida e força quando parece que ela nada pode. Não é isso que acontece em outros momentos nas Escrituras? Quando chegou a notícia da morte da ilha de Jairo, Jesus disse: “Não temas, crê somente, e ela será salva” (Lc 8.50). Em toda a sua aflição, Jó confessou a sua fé: “Porque eu sei que o meu Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra” (Jó 18.25). A luta da fé é, com certeza, muito bem externada pelo pai de um jovem possesso. Diante da impossibilidade de ajuda dos discípulos e, ao mesmo tempo, esperando que Jesus fizesse algo, ele confessa: “Eu creio! Ajuda-me na minha falta de fé” (Mc 9.24). Creio que essa palavra é de grande consolo para as pessoas que enfrentam longas e duras provas em sua vida. É preciso afirmar que essas dificuldades não atestam a ausência ou fraqueza de fé; são antes um testemunho de que a fé está presente quando a pessoa espera no Senhor.
Aqui aprendemos com Abraão a acolher a palavra de Deus com fé no coração. Apesar de toda uma situação desfavorável, ele confiou que Deus é fiel em cumprir a sua promessa. Assim também a nossa fé deve ser firmada na palavra de Deus. Nós podemos ser instáveis, mas a palavra de Deus não é. Se segurarmos nela firmes, vamos permanecer. Podemos lembrar que a Escritura está repleta das boas promessas de Deus, e elas não estão ali para que tenhamos uma informação a respeito de Deus, mas sim para que creiamos e sejamos fortalecidos nessa mesma fé.
Importante lembrar que a fé não nos leva a viver num “mundo fechado e isolado”. É justamente no mundo que a fé deve ser vivida e testemunhada. É diante das dificuldades e dos sinais de morte no mundo que a fé se revela como sinal de vida. É assim porque é tão somente pela fé que temos relação certa com o Deus que enviou seu Filho, que morreu e ressuscitou para nossa salvação. Nessa fé, somos filhos e filhas de Deus. Somos testemunhas da ressurreição. Aqui é possível apresentar situações concretas em que o nosso testemunho de fé se faz necessário. E não é o caso de pensar que esse testemunho é pequeno, pois o que conta é a promessa de Deus que conosco está. Não devemos nos envergonhar de Jesus e de suas palavras; antes a fé sempre as terá em grande consideração (conforme a leitura de Mc 8).
Ainda que dificuldades da vida persistam, na fé o nome de Deus é glorificado. É glorificado, pois ele está presente, está ao lado. Assim como caminhou com Abraão, caminha com cada crente em Cristo hoje. Isso nós não conseguimos por iniciativa própria. Só faz isso quem é vencido pela palavra de Deus, que atua no poder do Espírito Santo. É assim que experimentamos que as promessas de Deus são para o nosso benefício.
4. Imagens para a prédica
Crer é como entrar na água do mar: entrar só um pouquinho não faz muita diferença. A água só torna o corpo leve quando entramos para valer, quando nadamos com todo o corpo imerso. A nossa grande tentação é crer fazendo de conta, crer de mentirinha. É tentar fazer o caminho da fé como quem testa a temperatura da água, mas só entrando nela para molhar os dedos dos pés. Não admira que assim não experimentemos a força e a alegria de uma vida de comunhão com Deus. As promessas que Deus fez a Abraão são renovadas e consumadas no povo de Cristo. O Deus que andou com Abraão anda conosco. O Deus que sustentou Abraão nos sustenta hoje. Como experimentar essa água que nos carrega? Vamos ouvir seu convite e aceitar Jesus como Senhor. Vamos nos abrir à ação do Espírito Santo, que testifica dentro de nós que estamos no caminho certo e que estamos vivendo na graça de Deus (WEINGÄRTNER, 1998).
5. Subsídios litúrgicos
Sugestão de hinos: Creia sempre, sem cessar – HPD 1, 159; Firme nas promessas do meu Salvador – Cantarei ao Senhor, v. 2, 119; Senhor, porque me guarda a tua mão, confio em ti – HPD 1, 221.
Motivação para a confissão da fé: Poderiam ser citadas situações adversas que se têm levantado para a comunidade, famílias ou na vida pessoal. Nesse caso, é bom conversar antes com envolvidos para que consintam com o compartilhar. Os membros podem ainda ser desafiados a compartilhar situações difíceis. Citar que são situações que nos fazem sentir pequenos. Mas, ainda que a luta se apresente, podemos crer. Pois crer não é “crer que”, mas é “crer em”: a saber, em Deus mesmo, no Deus do evangelho, que é Pai, Filho e Espírito Santo. Essa confissão de fé é também honra e glória ao nome do Trino Deus.
Bibliografia
BRUCE, F. F. Romanos: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2004. NYGREN, Anders. La Epistola a Los Romanos. Buenos Aires: Editorial La Aurora, 1969.
WEINGÄRTNER, Lindolfo. Parábolas da vida – meditações. Curitiba: Encontrão; São Leopoldo: Sinodal, 1998.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).