Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Romanos 5.1-5
Leituras: Provérbios 8.1-4, 22-31 e João 16.12-15
Autor: Cláudio Kupka
Data Litúrgica: 1º Domingo após Pentecostes – Trindade
Data da Pregação: 30/05/2010
1. Primeira aproximação
Tenho por hábito preservar aquela primeira aproximação do texto, tentando perceber que impressões ele nos dá à primeira vista.
a) Pelo fato do texto começar com a palavra “Justificados” e conhecendo a “fama” dos textos paulinos, podemos esperar (e até temer) que o texto seja muito pesado e conceitual. Conhecendo nossa tendência de preparar pregações pouco leves e contextuais, precisamos tomar um cuidado com a prédica resultante do estudo de um texto como esse.
b) Por outro lado, o texto parece ser bastante “gracioso”. Justificados pela fé, paz com Deus, firmes na graça, participar da glória de Deus remetem à dimensão da vida cristã propiciada pela ação graciosa de Deus em nosso favor. Esse aspecto é bastante favorável ao elaborarmos o tom da mensagem, que não pode ser outro senão o de animar as pessoas a continuar firmes na vida cristã.
c) O texto faz referência a tribulações e à compreensão dessa tribulação na perspectiva da vida cristã. Chama a atenção aqui a dimensão poimênica do texto. Em termos de contextualização da prédica, creio que essa é a dica para elaborarmos uma prédica menos teórica e mais contextual e mais poimênica. Ouso formular títulos para essa prédica a partir dessa impressão: Por que as crises não destroem a fé? Como sair fortalecido das crises? Quando a esperança não sucumbe a crises?
2. Um segundo passo
Para não perder as ideias da primeira aproximação, é importante encaminhar a pesquisa de ideias e subsídios a partir dessas primeiras impressões. Elas podem ser úteis mais adiante.
Uma primeira sugestão é aproveitar a relevância do tema justificação no contexto luterano e pesquisar uma citação interessante de Lutero sobre o assunto. Seria ideal se ela preservasse o valor da teologia da justificação no contexto do sofrimento humano.
Seria muito útil coletar exemplos e testemunhos de pessoas que enfrentaram sofrimentos por longo tempo e, mesmo assim, cresceram na sua fé. Faltam exemplos positivos em nosso discurso de como é possível enfrentar crises de maneira afirmativa. Assim podemos contrapor o tom melancólico e negativo de muitas falas que ouvimos entre os membros.
O tema esperança é chave nesse texto. Uma boa ilustração de como a verdadeira esperança é forjada no sofrimento seria de muita valia.
3. A pesquisa do texto
Agora é hora de averiguar se as pressuposições da primeira leitura do texto conferem. O que não podemos, nessa fase, é “matar” a riqueza simbólica do texto com a exegese. A exegese precisa investigar o texto sem dissecá-lo, sem tirar-lhe a vida. Ao mesmo tempo, devo ter um olhar para a lógica do texto e para as alternativas que ele me oferece, pensando na prédica que vamos formular. É uma viagem de altos e baixos, mas que, no final, resultará num texto que seja interessante para a comunidade que tenho em mente.
V. 1 – O texto começa com uma afirmação forte no tempo presente: “Justificados pela fé, temos paz com Deus”. Ele fala da obra salvífica de Cristo em nosso favor e da nova relação com Deus que nos proporcionou. Cabe aqui ressaltar essa nova condição de paz em relação à do pecado, que nos determina como seres humanos. A inimizade, a desconfiança e até a revolta do ser humano em relação a Deus dão lugar a uma confiante entrega e paz a partir do conhecimento proporcionado pela fé de quem é Deus, do que ele fez por nós e das suas intenções para conosco.
V. 2 – Essa ação, reconhecida como movimento da graça, nos proporciona uma perspectiva escatológica de total superação de tudo o que nos afastou e afasta da vida plena que Deus desde o princípio desejou para sua criação. A sua glória é esse ideal de reconciliação de toda a criação com o Criador. A fé firma em nosso coração a certeza de um dia participarmos dessa glória. É interessante falar da graça, não só como um evento da ação salvífica de Deus, mas como um processo de vivência dessa realidade em nossa vida. Esse conceito da graça, que se manifesta e acontece em nossa vida, é um conceito interessante para o desenrolar da mensagem desse texto.
V. 3 – A referência a “gloriar-se” vem a calhar quando se fala de fé e paz com Deus. É muito comum considerar o sofrimento como uma quebra do favor de Deus. A pergunta por que sofrer vem justamente da pessoa que não consegue conciliar a miséria humana, a justiça e o amor de Deus. Cabe aqui então explicar como pela fé podemos ver o sofrimento de maneira diferente. É importante observar que o verbo “gloriar-se” tem um sentido bem paradoxal, porque em Cristo não temos nada com que nos gloriar a partir de nós mesmos. Se há o que gloriar-se é pelo que Deus fez e fará por nós. Se a fé nos proporciona já agora enxergar a salvação como realidade, ela também nos proporciona ver além do sofrimento. Gloriar-se no sofrimento é humanamente inconcebível. Somente pela fé é possível perceber a vida de uma maneira nova e libertadora.
A fé nos proporciona um novo olhar para o agir de Deus. Não somos mais precipitados em julgar o que nos acontece. Poderíamos dizer que Deus passa a “ter crédito” conosco. Sabendo do seu amor incondicional demonstrado em Jesus, o que é um sofrimento humano para alterar essa imagem de Deus? Sabendo que um dia viveremos numa condição de total superação do sofrimento, o que significa passar por crises? Se elas não mais destroem a fé e nos afastam de Deus, o que fazem por nós? A essa pergunta, Paulo desenvolve a ideia de um processo de aprendizado e crescimento através do sofrimento. Enfrentar o sofrimento gloriando-se em Deus significa inicialmente não admitir que o nosso sofrimento invalida a graça e o amor de Deus.
Além disso, a constância dessa atitude diante do sofrimento produz a paciência, ou seja, justamente aquela ideia de dar crédito a Deus de que ele não é capaz de querer nos prejudicar ao permitir-nos sofrer.
V. 4 – O texto segue encadeando conceitos, desenvolvendo uma ideia de processo. Do gloriar-se em Deus diante do sofrimento provém a paciência. Da perseverança vem a experiência, e da experiência vem a esperança. Esse encadeamento quer mostrar como surge e se fortalece a esperança cristã. Poderíamos dizer que esperança é a fé vivida e provada, que se projeta na perspectiva da glória de Deus. A esperança é forjada na luta diária da fé em busca de sentido no sofrimento. A esperança não é algo mágico e instantâneo, mas fruto de um processo diário de responder através da vivência da fé às perguntas da vida.
V. 5 – É fácil concordar que a esperança, da maneira como recém definimos, não irá decepcionar-nos nunca, mas sim confirmar em nosso coração as intenções amorosas de Deus a nosso respeito, mesmo quando permitir nosso sofrimento. Além disso, a ideia de que somos misteriosamente amados por Deus em meio às crises é confirmada através do Espírito Santo em nossa vida. Um dos grandes projetos de Deus em nossa vida é que possamos perceber a presença e a eficácia do seu amor.
4. Meditando sobre o texto
Creio que já está bastante claro em que direção esse texto quer nos conduzir.
a) O agir de Deus motivado pela graça, no sentido de nos aproximar de Deus, não se resume a um momento de glória e exultação. A graça precisa ser percebida como um processo contínuo de restauração da nossa relação com Deus. Não é de uma hora para outra que introjetamos a graça como um novo princípio estruturador de nossas relações. Normal é a lei, o mérito, a troca, ou seja, a nossa pobre perspectiva humana de justiça é que diariamente insiste em gerir nossa visão de mundo e relações. Também em nossa relação com Deus. Em Gálatas 2.21, Paulo chama a atenção dos Gálatas: “Eu me recuso a rejeitar a graça de Deus. Pois, se é por meio da lei que as pessoas são aceitas por Deus, então a morte de Cristo não adiantou nada!”
b) Como perceber o agir gracioso de Deus? Alimentando diariamente a visão de que Deus não deixa de nos amar quando sofremos. É no dia-a-dia que confirmamos em nosso coração pela fé que não mais julgamos a Deus perguntando pelo nosso merecimento. A questão do nosso mérito/demérito diante de Deus é um assunto totalmente superado quando cremos no que Deus fez para nos conquistar e nos dar a salvação. Não há palavras, justificativas nem senões. Somente há motivos de glória em Deus.
c) Nessa atitude de profunda gratidão, creditamos a Deus o mérito de nos aprofundar no aprendizado do impacto e profundidade do seu amor por nós. Estou convencido de que a tarefa do Espírito Santo de nos revelar a profundidade do amor de Deus é uma das tarefas mais importantes. É experimentando diariamente esse amor que nosso eu é curado de suas falsas e distorcidas visões da vida. Nesse processo, aprendemos a ver a vida como Deus a vê. E, se essa visão não nos é clara, a fé nos permite seguir confiantes sem temer os limites da vida, nem cobrar imediata compreensão desses.
d) Assim é forjada nossa esperança em Deus. De pequenas em pequenas experiências de fé, quando respondemos confiantemente ao chamado de Cristo. Fé e graça são vividas e assimiladas através de passos diários através daquelas experiências que nos inquietam e ao mesmo tempo nos aproximam de Deus. O que para muitos pode ser azar, abandono de Deus, para outros se torna oportunidade de crescimento. O que diferencia? A fé.
5. Ideias e ilustrações
Trago aqui uma ilustração que pode bem ajudar a demonstrar o quanto a fé é feita de mistérios e requer de nós um distanciamento proporcionado pela fé. Apresento a seguir um relato de alguém que conheci e que me ensinou muito sobre o sofrimento e a alegria. Em terceiro lugar, cito um texto de Lutero, extraído de suas pregações e publicado em português no Castelo Forte de 1983.
a) Um menino pequeno estava contando à sua avó que tudo ia mal em sua vida. Problemas na escola, problemas na família, sérios problemas de saúde etc.
Enquanto ele falava, a avó estava fazendo um bolo.
Então ela perguntou a seu neto se ele gostaria de comer um pedaço de bolo.
– Claro!, respondeu o menino.
Então ela lhe ofereceu um pouco de azeite de cozinha.
– Que horrível!, disse ele.
Logo lhe ofereceu dois ovos mexidos.
– Não, vó!, disse o menino.
– Bom, talvez queira um pouco de farinha?, perguntou a avó.
– Vó, tudo isso é horrível!, queixou-se o menino. A avó contestou:
– Sim, todas essas coisas separadas parecem horríveis. Mas quando a gente as põe juntas da forma correta, viram um bolo maravilhosamente delicioso!
b) Lembro muito bem de um episódio durante o meu estágio na Faculdade de Teologia em que, em visitas a um asilo de idosos em Blumenau, acompanhei por um período uma senhora com uma grave doença degenerativa. Seus músculos e tendões iam se atrofiando tanto, que ela cada vez mais diminuía de tamanho. Suas dores deviam ser horríveis. Tinha até dificuldade para falar. Eu, um estagiário desejoso de mostrar serviço e desempenhar o papel de conselheiro, surpreendi-me e até me emocionei ao conhecer verdadeiramente o testemunho dessa mulher. Nela eu não via uma pessoa triste, resignada diante do sofrimento. Suas palavras é que faziam bem a mim. Eu não tinha quase o que dizer. Com certeza, eu é que saía de seu quarto consolado. Ela ainda é para mim, em todos esses anos, o testemunho de alguém que compreendeu a presença e o crescimento na fé durante o sofrimento. O exemplo dela literalmente desmontou em mim todo e qualquer argumento para não aceitar de Deus como um gesto de amor qualquer situação da vida. Seu olhar sereno e alegre ainda hoje está diante de mim, falando sobre esperança e paz.
c) Quando Deus deseja fortalecer alguém em sua fé, procede de forma tal que a pessoa tem a impressão de estar perdendo a fé. Deus parece tirar tanto a fidelidade como a fé e faz o indivíduo passar por toda sorte de dificuldades e lhe tira as forças a ponto de quase desanimar. Mas, ao mesmo tempo, dá-lhe forças para acalmar-se e aguentar firme. Essa é a perseverança que produz experiência, de sorte que, no momento em que Deus se volta para a pessoa e deixa o sol brilhar outra vez, ela abre os olhos, fica admirada e diz: “Puxa vida, Deus seja louvado que me livrei desse problema! Deus está nesse lugar, e eu não podia imaginar que tudo fosse terminar tão bem assim”.
Depois de um ou dois dias, uma semana, um ano ou mesmo dentro de uma hora, aparece outra cruz, trazida pelo pecado: a desonra, perda de bens, mal físico ou qualquer outra coisa que nos incomoda. Aí começa tudo outra vez, e as nuvens negras estão de volta. Mas a pessoa se lembra de como, no passado, Deus foi gracioso e veio em seu auxílio. Sabe da boa vontade de Deus em nos castigar, para que nos lembremos de recorrer a ele pedindo ajuda. Então se consola e se gloria na tribulação, dizendo: “Aquele que no passado me ajudou tantas vezes vai ajudar-me também dessa vez”. Esse desejo íntimo (que leva a pessoa a dizer: Quisera estar livre disso! Que Deus me ajude!) é a esperança que não envergonha, pois Deus tem que ajudar essa pessoa. Dessa forma, Deus esconde a vida sob a morte, o céu sob o inferno, a sabedoria sob a loucura, a graça sob o pecado.
6. Subsídios litúrgicos
Cantos:
Uma série de cantos podem ser escolhidos fazendo uma ponte entre o(s) tema(s) do culto. Sugerimos: Oração da Igreja (Hinos do Povo de Deus – vol. 2 – n° 459), Senhor, tu tens sido nosso refúgio (Hinos do Povo de Deus – vol. 1 – n° 213), Tão longe (Hinos do Povo de Deus – vol. 2 – n° 461), Bondade e misericórdia (Hinos do Povo de Deus – vol. 1 – n° 232 ), Ontem hoje e sempre (Hinos do Povo de Deus – vol. 2 – n° 474).
Confissão de fé:
Creio que Deus pode fazer com que de tudo, mesmo do negativo, resulte algo bom. Para isso necessita de homens e mulheres que permitam e creiam que tudo lhes servirá para o bem.
Creio que Deus pode nos dar em cada situação difícil a capacidade de resistir. Mas não a dá adiantado, para que não confiemos em nossas próprias forças, e sim em seu poder. Essa confiança nos livrará do medo e do temor pelo futuro.
Creio que nossos erros e fracassos não são em vão e que para Deus não é mais difícil utilizá-los como o faz com nossos sucessos.
Creio que Deus não é um destino cego e indiferente, mas que espera nossas orações e nossos atos responsáveis.
(Dietrich Bonhoeffer)
Oração responsiva:
L: Chegamos aqui desorientados e cansados. A nossa vida é tão cheia de desafios e perguntas, que não damos conta dela.
C: Ó Deus, teu mar é tão vasto e tão pequeno meu barco.
L: Não esperamos que nos dês respostas prontas. Queremos apenas lembrar que estás perto de nós e por isso podemos seguir seguros.
C: Ó Deus, teu mar é tão vasto e tão pequeno meu barco.
L: Queremos lembrar que a vida que nos deste não está nas mãos do mal. Que manténs controle de tudo mesmo em meio ao caos.
C: Ó Deus, teu mar é tão vasto e tão pequeno meu barco.
L: Se te buscamos é porque cremos que tu tens uma intenção com tudo o que nos acontece.
C: Ó Deus, teu mar é tão vasto e tão pequeno meu barco.
L: Perdoe quando falhamos. Seja quando deixamos a solidão nos dominar, seja quando não confiamos em ti.
C: Ó Deus, teu mar é tão vasto e tão pequeno meu barco. Tem misericórdia de mim.
L: O mar segue sendo vasto e nosso barco segue sendo frágil. No entanto, nada nos afasta da misericórdia e do amor de Deus. Segue tua jornada confiante. Deus seja teu horizonte, o vento que te impulsiona e aquele que dirige teu barco.
Bênção:
Que Deus, para quem a noite é tão clara como o dia, guie teus passos no caminho.
Que Deus, que está contigo quando estás sentado e levantado, te rodeie com seu amor e te segure pela mão.
Que Deus, que conhece teu caminhar e teu descansar, esteja contigo te dando esperança, seja a boa notícia que tens para partilhar com o mundo e te guie pelo caminho eterno. Amém.
(Baseada no Salmo 139)
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).