Graças a Deus por Jesus Cristo
Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica: Romanos 7.15-25a
Leituras: Zacarias 9.9-12 e Mateus 11.16-19, 25-30
Autoria: Joel Schlemper
Data Litúrgica: 6° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 09/07/2023
1. Introdução
O texto de Romanos 7.15-25a está previsto para a pregação neste domingo. Nele, o apóstolo Paulo constata que a lei é incapaz de produzir a tão desejada santidade de vida. Segundo o testemunho do apóstolo, o ser humano pós-rebelião de Adão e Eva possui o desejo de cumprir a lei, desejo esse sincero, mas não o consegue realizar por causa da escravidão resultante da queda (Gn 3). Paulo, numa percepção um tanto subjetiva, mas também ancorada no testemunho bíblico, afirma: Porque não faço o bem que eu quero, mas o mal que não quero, esse faço (Mt 7.10). Essa constatação da dura consequência do pecado é contrastada com a confissão do último verso de Romanos 7: Graças a Deus por Jesus Cristo (Rm 7.25a).
O texto sugerido como leitura do Antigo Testamento é Zacarias 9.9-12 e está inserido no contexto do retorno do povo de Israel do cativeiro babilônico. O capítulo 9 inaugura aquilo que é chamado de “Dêutero-Zacarias”, por ser distinto da primeira parte. Na primeira parte, capítulos 1 a 8, o autor descreve datas e pessoas, além de ilustrações relacionadas ao motivo do juízo de Deus para com o povo de Israel: a desobediência. Já a segunda parte, capítulos 9 a 14, mesmo que tenha sido escrita por outra mão e em época distinta da primeira, é um texto que apresenta a graça divina. Podemos dizer que lei e evangelho estão explicitados no livro. É um texto do evangelho que aparece no Antigo Testamento, pois o profeta descreve que há esperança: o seu rei vem até você, justo e salvador (Zc 9.12a). Trata-se de uma clara referência ao Messias, e que em sua presença haverá paz. As armas de guerra serão destruídas e no sangue da aliança a paz reinará entre as nações (Zc 9.10-11). Uma poderosa mensagem contra a altivez de se impor a paz com o uso da força bruta.
O texto de leitura do Novo Testamento é Mateus 11.16-19, 25-30. Esse está dentro do contexto em que mensageiros de João Batista questionam Jesus se ele é ou não o Messias prometido. Na resposta de Jesus, temos uma descrição da Lei, onde ele descreve o coração endurecido do ser humano, que não deu atenção às leis e aos profetas. Em seguida, v. 25ss, temos a descrição feita por Jesus da graça de Deus. É a graça que revela estas coisas, a mensagem do evangelho, aos pequeninos (Mt 11.25). Novamente, na leitura sugerida, estão explicitados lei e evangelho, juízo e graça, condenação e salvação, letra e espírito. O texto desnuda o coração rebelde do ser humano, mas não o deixa no desespero da condenação, pois foi do agrado do Pai revelar sua graça por meio de seu Filho (Mt 11.26).
A perícope evangélica do dia termina com o consolador resultado do evangelho: Vinde a mim os que estão cansados e sobrecarregados (Mt 11.28). Há descanso para o manso e humilde, que é espiritualmente pobre e incapaz de servir o Pai com esforço próprio. Todo o peso da lei é colocado em Cristo, que oferta um jugo incomparavelmente melhor, que é leve e suave, e que traz descanso para a alma aflita.
2. Exegese
O texto de Romanos 7.15-25a não pode ser lido desconectado do capítulo 6, que trata da santificação, assim como do capítulo 8, que descreve a concretização dessa santidade. Também não pode ser retirado do contexto maior do livro de Romanos, que descreve, nos primeiros capítulos, que todas as pessoas, religiosas ou não, são pecadoras (Rm 3.23), para em seguida, nos capítulos 4 e 5, lembrar que a paz com Deus foi comprada em Cristo Jesus e é recebida por fé, não por obras (Rm 5.1).
Nos primeiros versos, 14-20, o apóstolo se refere à condição humana pós-rebelião (Gn 3). A humanidade está vendida à escravidão do pecado, que é o tema principal aqui. É essa escravidão que nos impede de fazer o bem, mesmo querendo fazê-lo. Uma vez que não há o bem em mim, não há razão na altivez em relação ao próximo, igualmente escravizado. Não há melhores ou piores, mas a constatação de que todos somos pecadores desesperados por graça.
Os v. 21-24 descrevem a nefasta condição dessa escravidão de uma forma, aparentemente, mais subjetiva. Paulo constata que mesmo tendo prazer na lei de Deus, ele continua a ser prisioneiro da lei do pecado. A conclusão do v. 24 é desesperadora: Miserável homem que sou! Com isso Paulo não está menosprezando o ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, mas refletindo sobre a dura realidade vivenciada pós-rebelião. A separação do ser humano de seu Criador imposta pela queda gerou escravidão e morte, com consequências catastróficas para a relação com Deus, com o próximo e com a criação.
Depois desse brado desesperador, o bálsamo do evangelho é descrito na pena do apóstolo: Graças a Deus por Jesus Cristo. Só nessas palavras caberia uma tese inteira, dada a profundidade e a libertadora consequência da redenção em Cristo. A ação de graças expressa enfaticamente aqui é resultado da constatação da falência humana em confronto com a ação de Deus para nos libertar da escravidão do pecado. A história de desgraça, de separação, de rebelião, encerrou em Cristo Jesus. Uma nova história foi inaugurada para a humanidade quando o Filho de Deus nasceu, por nós morreu e ressuscitou.
Paulo apresenta aos leitores e às leitoras o evangelho que liberta o ser humano da dura e escravizante condenação. Novamente, como teólogos e teólogas da tradição da Reforma, nos saltam aos olhos lei e evangelho nesse texto. Juízo que condena nos v. 15-24 e graça que absolve no v. 25. Juízo e graça estão contidos aqui como em todo o testemunho bíblico.
Não teria como descrever aqui toda a teologia da cruz e suas consequências para a igreja do século XXI, mas podemos apontar pelo menos uma delas. Ao nos depararmos com Romanos 12.9ss, por exemplo, percebemos que em Cristo Jesus a igreja, que vive agora a lei do Espírito (Rm 8.2), ama ao próximo de forma radicalmente nova. No ano em que é escrito esse texto, o tema da nossa igreja é “Amar a Deus e as pessoas”. Por amor a Deus, podemos amar radicalmente todas as pessoas. Esse amor não está em nós, e por isso não há por que se orgulhar dele, mas provem de Deus, que em Cristo Jesus nos resgatou da escravidão do pecado.
Cabe aqui também apresentar uma informação da exegese existente entre os biblicistas modernos. Há um debate sobre a quem Paulo se referia ao escrever o texto de Romanos 7. Seria o próprio Paulo pós-conversão, testemunhando que, mesmo em Cristo, sente o peso da escravidão do pecado? Ou um testemunho dele de antes dos eventos de Atos 9? Não é necessário entrar nesse debate, os comentários já o fazem, mas há uma tendência dos exegetas em interpretar nesse testemunho os dois Paulos, de antes e depois da conversão. É texto atemporal na vida da pessoa cristã, serve tanto para conduzir a pessoa descrente a Cristo, como para lembrar a pessoa cristã de onde veio, a fim de não se orgulhar.
3. Meditação
O texto previsto para hoje, Romanos 7.15-25a, tanto está conectado quanto é uma abreviação do tema da Carta aos Romanos sobre a justificação por graça e fé. Ousaríamos dizer que não apenas de Romanos, mas da história de Deus com a humanidade. Trata-se de uma descrição minuciosa da completa falência humana na sua condição pós-queda, vivendo pela lei e sem condições de restauração. Ao mesmo tempo em que revela o poderoso anúncio da salvação trazida para dentro da história do mundo na pessoa de Jesus Cristo, o Filho de Deus.
Lida em conjunto com os textos do profeta Zacarias e do Evangelho de Mateus, a perícope se apresenta como uma denúncia contra o orgulho que intenta a santidade por esforço e boa-fé, assim como contra o falso discurso de que o pecado se vence por esforço próprio ou com o uso da violência.
No contexto do primeiro semestre de 2022, quando este texto está sendo escrito, há guerra, pregação armamentista para vencer o mal, fome e corrupção. Também percebemos uma busca desesperada pela solução das mazelas deste mundo através de pessoas, como diante do discurso eleitoral de que “se fulano for eleito, então teremos paz e justiça”, ou, olhando para o outro lado, “caso o sicrano seja eleito, então seremos arrastados para a desgraça”.
Nesse texto, Paulo nos lembra que, tendo boas intenções ou não, o ser humano não consegue se livrar do mal, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto (Rm 7.15b). Já o v. 25 de Romanos 7 apresenta um grito de liberdade nesse contexto de desesperadora falência. É o “Proclamar Libertação” na pena do apóstolo. É um corajoso testemunho escrito há dois mil anos, mas igualmente relevante para o mundo do século XXI: Graças a Deus por Jesus Cristo. Esse é o fio vermelho da pregação, a proclamação da liberdade que temos em Cristo Jesus, diante da desesperadora situação de caos que a rebelião trouxe.
Ao olharmos para o aparente caos, guerras, injustiças, fome, pandemia, polarizações políticas, vem a pergunta: por que o Deus todo-poderoso, confessado dominicalmente com o Credo Apostólico, permite tanta dor? A resposta a essa pergunta é: Não era para ser assim.
O Deus que confessamos é Criador e Gênesis 1 e 2 descreve a criação como sendo muito boa. No contexto da boa criação não havia caos, injustiças, guerras, pandemias, fome, destruição da criação e morte. Porém a rebelião descrita em Gênesis 3 empurrou a humanidade para a escravidão do pecado, e com ele toda a criação geme por causa de nossa rebelião (Rm 8.22). Desde então, por melhores que sejam as intenções, o resultado é a morte. Como escravos do pecado, geramos esse caos voluntária ou involuntariamente.
Qualquer tentativa meramente humana de restaurar a ordem, descrita em Gênesis 1 e 2, é frustrada pela condição rebelde da humanidade. Ao percebermos essa condição de caos, caímos em desespero, à semelhança do apóstolo, que exclamou: Miserável homem que sou! (Rm 7.24). A lei, como Paulo a descreve nessa perícope, produz a morte e não a vida. Ela apenas descortina o que já estava lá, a incapacidade de solucionarmos as dores do mundo.
Mas, graças a Deus por Jesus Cristo (Rm 7.25a). Sem Cristo, estaríamos entregues ao desespero e morte, mas em Cristo temos salvação. Podemos “Proclamar Libertação” sem medo e a todo pulmão. O evangelho venceu a lei, a morte e o caos. Nele há completa liberdade e estamos livres da condenação e suas consequências. Este é o ponto central desta pregação de domingo: a lei fora escrita como guardiã, para levar a pessoa ao evangelho (Gl 4.23-25). Assim o evangelho, mesmo tendo sido escrito em uma linha com seis palavras nesse texto, sobrepuja em muito a lei. Ele carrega o poder de Deus para libertar de toda escravidão.
A condenação e suas consequências podem durar três a quatro gerações, mas a bondade de Deus vai até mil gerações (Êx 20.5-6). Comparada à força da escravidão do pecado, a graça de Cristo é incomparavelmente mais forte e poderosa. Liberta de todo pecado que causa dor. Por isso essa mensagem de graça, mesmo em poucas palavras, grita alto neste domingo: Graças a Deus por Jesus Cristo.
Lei e evangelho estão e precisam ser anunciados de forma explícita, como o fez Paulo nesse texto. Sem pregação da lei, que descreve nossa falência moral como nesse texto, não gritaríamos por Jesus Cristo. Mas igualmente sem testemunho do evangelho, estaríamos condenados ao desespero.
Independente se ainda temos guerra ou não, se as eleições foram pacíficas ou não, se nosso candidato foi eleito ou não, a esperança para o mundo está em Cristo, não em pessoas. Ele é o verdadeiro Messias, que arranca de nós o grito desesperado que clama quem me livrará, para substituí-lo por graças a Deus.
É muito bom receber essa esperança de fora, esperança que é luz em meio às trevas, paz em meio às guerras, alimento em meio à fome, ordem em meio ao caos, vida em meio à morte. O “bom perfume de Cristo” é a fragrância que dá sentido ao viver num mundo marcado pelo cheiro da morte. Em Jesus, o plano inicial de Deus é restabelecido. Nele, percebemos que não era para ser assim.
Libertos em Jesus, podemos viver neste mundo a esperança cantada pelo P. Lindolfo Weingärtner de que “este mundo ainda é de Deus”. Em Cristo Jesus somos livres para amar ao próximo com a radicalidade descrita em Romanos 12.9-21: Amem uns aos outros […]; abençoem aqueles que vos perseguem […]; Não se deixem vencer pelo mal, mas vençam o mal com o bem.
Por causa de Jesus, a igreja reflete uma poderosa luz no mundo em caos, assim como dá testemunho para dentro do mundo marcado pelo ódio. Graças a Deus por Cristo Jesus, pois nele a igreja testemunha o evangelho, vive uma comunhão não fingida com os irmãos e irmãs na fé, acode com amor altruísta a
pessoa necessitada e presta, sem orgulho, culto ao Criador.
4. Imagens para a prédica
Tanto o texto da Carta aos Romanos como os textos auxiliares apontam para a graça de Jesus ofertada a todas as pessoas. Sejam essas cultas como Paulo ou “pequeninas” como descrito por Jesus em Mateus 11.25.
Pode-se introduzir a pregação, descrevendo o contexto das dores deste mundo que guerreia, exalta a violência, prega o ódio, explora a criação e vive irresponsavelmente. Ao mesmo tempo, podemos lembrar que a graça e a bondade de Deus geram esperança e ações esperançadas, que são com luz ao mundo. Essa ação esperançada é percebida quando, em oposição ao contexto de dores, há ações diversas de amor, de tolerância, de paciência, de cuidado. Ou seja, a bondade sobrepuja em muito as dores.
Tal grandiosa obra de bondade, que resgata o ser humano e o faz ser luz no mundo, está em Cristo Jesus e se destina a todos e todas. Pois mesmo sendo diferentes, todas as pessoas têm igual valor diante do Criador. Pode-se usar como ilustração duas moedas de um real e uma nota de dois reais em papel. Mesmo sendo diferentes, tanto no material, como no formato e peso, elas têm o mesmo valor. Assim também quis Deus revelar sua graça e seu amor, tanto ao culto e religioso Paulo como aos pequeninos.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
Senhor Jesus Cristo, tu és minha justiça, eu, porém, sou teu pecado:
Levaste sobre ti o que é meu, e deste a mim o que é teu.
Tomaste sobre ti o que não eras, e deste a mim o que eu não era.
Senhor Jesus Cristo, permaneço contigo e a ti me prendo e em ti creio;
pois tu somente és o que importa.
Depois quero ir e confrontar-me com os dez mandamentos e aplicar-me a boas obras.
Mas o principal será que a ti me atenha e que por ti me seja doada a vida eterna.
(Martim Lutero, 1522)
Sugestão de hino: Há sinais de paz e de graça – LCI 582, Lindolfo Weingärtner (Disponível também em: <https://www.luteranos.com.br/textos/ha-sinais-depaz-e-de-graca>.)
Bibliografia
BRUCE, F. F. Romanos: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006. (Série Cultura Bíblica).
CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.
LUTERO, Martinho. Prefácio à Epístola de São Paulo aos Romanos. Pelo Evangelho de Cristo: Obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma. Tradução Walter O. Schlupp. Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Sinodal, 1984. p. 179-192.
POHL, Adolf. Carta aos Romanos: Curitiba: Evangélica Esperança, 1999. (Comentário Esperança).
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).