Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: Romanos 8.12-17
Leituras: Isaías 6.1-8 e João 3.1-17
Autor: Erni Drehmer
Data Litúrgica: 1º Domingo após Pentecostes (Trindade)
Data da Pregação: 03/06/2012
1. Introdução
Relação com os demais textos:
– Todos falam de transformação: em Isaías, o processo dá-se pelo gesto simbólico da brasa, que purifica os lábios do profeta e prepara-o para a missão; em João, a transformação dá-se por intermédio do ensino a respeito da ação do Espírito Santo na vida de Nicodemos; em Romanos, a transformação dá-se pela ação do Espírito;
– Os três falam de ação, não de passividade. Em Isaías, a resposta do profeta é a disposição à ação (“eis-me aqui, envia-me a mim”); em João, a ação vem antes, já que Nicodemos se coloca a caminho e busca Jesus para dirimir suas dúvidas; em Romanos, há o imperativo que leva a atitudes que são consequência da ação do Espírito Santo, que transforma vidas de pessoas que deixam de orientar suas ações pelos desejos humanos e permitem ser orientados pela vontade de Deus.
O texto atualiza-se por excelência quando chama à ação no mundo, movida pela fé, e somente por ela, não por desejos e inspirações humanas, marcadas pelo egoísmo, pela necessidade do aplauso e do holofote.
2. O texto
O apóstolo Paulo fala da dualidade da vida. Em Romanos 6, ele aborda a questão de morrermos para o pecado com a morte de Cristo; assim também vivermos com ele a sua ressurreição. Aqui a dualidade se dá entre o viver a partir da natureza humana, a carne, e o viver a partir da espiritualidade, a partir do Espírito.
O cristão é colocado na luta pela decisão entre a carne e o Espírito pelo fato de ter sido transformado em pessoa do Espírito pela ação redentora de Deus. Pela ação de Deus, tornou-se praticamente impossível viver a partir da carne. Mas, na prática, isso ainda é possível. Assim, na prática, pela ação, é necessário reconhecer-se ao impossível. A carne, o pecado, foram aniquilados pela morte e ressurreição de Jesus Cristo. Agora, portanto, trata-se de lidar com eles como realmente destronados e não mais reconhecer e admitir sua ação sobre nós. Paulo lembra novamente que se trata de morte ou vida. A negação das obras da carne e o andar no espírito significam vida. Disso dá conta o v. 14.
Por Cristo, o cristão foi realmente “libertado da morte”. Isso não significa que a morte não tenha mais poder de ameaçá-lo. Ainda não se alcançou a realidade de que fala o texto de Apocalipse 21.4: “… não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor. As coisas antigas já passaram”.
Portanto, há duas formas de viver: podemos viver “conforme a carne” ou “conforme o Espírito”. Quanto à primeira forma, podemos, entrementes, afirmar: não é vida verdadeira, mas o contrário disso. Por isso o apóstolo Paulo diz: “Se viverdes segundo a carne, caminhais para a morte …” Ao falarmos de uma vida que, na verdade, é morta, lembramos a conhecida palavra de Agostinho: “Assim era minha vida – era uma vida?”.
Vive-se de verdade quando se vive a partir do Espírito. Mas isso significa ao mesmo tempo “mortificar os feitos do corpo”, isto é, as ações que têm sua origem e inspiração na natureza humana, na carne.
O corpo (a carne) está em oposição ao espírito. O corpo está submisso à morte por causa do pecado, mesmo sendo o espírito significado de vida por causa da justiça. Com o corpo mortal, o cristão encontra-se num contexto onde a morte domina. E é nesse mundo – o do corpo mortal – que ele precisa travar a batalha contra a carne e a morte. A partir dessa passagem vem uma nova luz sobre Romanos 7.23, onde Paulo aponta para uma lei que está em seu corpo, em conflito com a lei que está em sua mente, seu espírito. E talvez essa interpretação ajude a entender melhor as palavras de Paulo em 7.24: “Quem me livrará desse corpo que me leva para a morte?”. Não se trata de uma tendência suicida ou uma atitude depressiva, mas um desejo de ver finalmente vencida pela vida a batalha contra a morte.
O cristão recebeu o Espírito. Portanto, anima o apóstolo, ele deve andar no Espírito. Deixar que sua vida seja totalmente permeada pelo Espírito. É verdade que corpo e Espírito vivem em luta na vida do cristão, mas não precisa ser mais assim que a carne ainda tenha por muito tempo domínio sobre sua vida. O cristão está sob o domínio do Espírito, portanto vive o processo de “matar as obras da carne”. Aqui há um pensamento semelhante ao expresso em Gálatas 5.16: “Deixem que o Espírito de Deus dirija a vida de vocês e não obedeçam aos desejos da natureza humana”.
O cristão pode travar essa luta, pois não a trava com suas mãos e com forças próprias. Quando a morte é destituída do trono, esse não fica vazio. Ele passa a ser ocupado pelo Espírito de Deus, o “Senhor e doador da vida” (Credo Niceno), pois “ o espírito é o que vivifica” (Jo 6.63). Com isso o cristão chegou à verdadeira vida. Assim fica bem claro o que o apóstolo quer dizer com 8.13: “… se, pelo espírito, mortificardes os feitos do corpo, certamente vivereis”.
Quem crê em Cristo foi resgatado da velha era (da carne) para dentro da nova era, do Espírito. Não vive mais sob o domínio da morte, mas sob o domínio do Espírito, onde domina a vida. Ele luta a favor do Espírito contra a carne. Ele “vive no Espírito”, “anda no Espírito” e “mata as obras da carne”– e tem durante esse tempo a promessa da vida eterna, a “vida no tempo futuro”.
Cristo recebeu a herança como o primeiro e entrou para o tempo da res¬surreição. Mas isso significa também um ganho para nós. Tudo o que vale para Cristo vale também para nós. Somos herdeiros de Deus e coerdeiros em Cristo.
Somos filhos – somos herdeiros e herdeiras, presente e futuro. A herança nos está assegurada, mesmo que ainda não tenhamos tomado conta dela.
No versículo 17, aparece três vezes a partícula syn. Primeiro, somos “coerdeiros” (syn kleronomoi), somos “cossofredores” (synpaschomen) e seremos “glorificados com ele” (syndoksasthomen). Aqui se destacam tanto o presente como o futuro na relação com Cristo. Nessa vida, trata-se de termos parte em seu sofrimento, mas na vida futura nos será presenteada a participação em sua glória; somente então tomaremos posse da herança que já agora nos é garantida.
A meta é a glória, não o sofrimento. Mas para o cristão, assim como para Cristo, o caminho para a glorificação passa pelo sofrimento. Pelo fato de o sofrimento ser um sofrimento com Cristo, ele está inserido na vida cristã.
Na filiação estão expressas toda a dignidade e toda a redenção da pessoa que crê. Essa filiação não se expressa apenas em atitudes éticas, mas também na vida em oração. Dirigir-se a Deus com a expressão aramaica Abba é expressar a profundidade e a intimidade da relação de crentes para com o seu pai. Os judeus usavam a expressão para referir-se ao pai terreno, mas muito raramente para referir-se a Deus. Isso era uma novidade em Jesus. Ao usar o termo (Mc 14.6), ele mostra que fala com seu Pai, exatamente como um filho fala com seu pai terreno. A comunidade de Jesus sabia que por intermédio de Cristo ela se tornara filha de Deus; por isso também se apropriou do termo. A palavra aramaica manteve-se no culto da comunidade grega, assim como o termo Maranata (1 Co 16.22). Cristãos “chamam” Abba. Talvez Paulo esteja querendo contrapor a oração de cristãos ao jeito judeu de orar – movido pelo murmurar –, o que também é um sinal do espírito de servidão. Os cristãos oram alto, confiantes, alegremente, libertos. Movidos pelo Espírito, têm coragem de expressar sua fé em alto e bom tom.
A paixão de Cristo não é somente o fundamento, mas também o formato da vida cristã. Todo o sofrimento trazido com a condição de ser cristão, a dor por pecados próprios e de outros, a angústia na tentação e na luta, sob a oposição do mundo, na perseguição e no martírio: tudo isso é um sofrer com Cristo. Isso lhe confere o caráter de seriedade, mas ao mesmo tempo, em meio a toda a dor, também a profunda alegria e grande esperança que a comunhão com Cristo traz consigo.
3. Meditação
O texto, bem como as demais leituras previstas, oferecem um embarque interessante no desafio da ação no mundo a partir da fé. No mercado religioso, múltiplo e confuso, até mesmo as boas ações despertam desconfiança: “O que ele ou ela estão querendo com essa ajuda?”. A moderna linguagem da rede mundial parece incompatibilizar-nos com o que o apóstolo Paulo destaca quando desafia a vivermos com os pensamentos e as ações guiadas pelo Espírito de Deus. A sociedade que estabelece redes mundiais de comunicação escancara ao mesmo tempo as portas para o hedonismo. Ou seja, acesso à internet em primeiro lugar para tirar o proveito que ela pode trazer para mim. Com um clique descarto o que pode me trazer qualquer tipo de sofrimento ou dor. Cria-se, assim, a falsa impressão de que temos nosso destino nas mãos, ao alcance de uma tecla.
A vida guiada pelo Espírito de Deus tem outros critérios. Entende que o sofrimento com Cristo é a caminhada em direção à glorificação. A vida em Cristo, assim entende o cristão, é uma constante batalha entre aquilo que me proporciona apenas as coisas boas ou agradáveis da vida e aquilo que me leva a uma nova postura, a um jeito diferente de viver. Sabendo que essa nova postura me leva pelo caminho do sofrimento, não por masoquismo ou desvio de conduta, mas por sermos em Cristo coerdeiros do reino de Deus. Deixar-se guiar pelo Espírito de Deus é viver defendendo a vida contra os sinais de morte. Os sinais de morte precisam ser denunciados e tipificados. Eles estão presentes na sociedade mundial e brasileira. Escrevo numa época em que aumenta a crítica das vozes assim chamadas formadoras de opinião contra os gastos astronômicos previstos para obras para a Copa do Mundo de 2014, enquanto que ainda sobram pacientes morrendo em filas de atendimento à saúde. Ainda repercute mundialmente a exagerada comemoração da morte de Osama Bin Laden, promovida pelo país que se atribui a função de paladino da democracia e da justiça no mundo, mas que não consegue revelar atrocidades cometidas em guerras espalhadas pelo mundo. Ou que acaba de revelar que conseguiu informações por meio de tortura. Deixar-se guiar pelo Espírito é combater a própria omissão, como indivíduos e igreja, como obra da carne. A omissão que nos convida a silenciar, ser conivente, para “não trazer inquietação à nossa tranquilidade”. Deixar que o Espírito de Deus guie nossas ações e pensamentos é escancarar ao mundo que nos rodeia o que cremos, por que cremos e como a fé marca nossas atitudes na vida diária. A fé que marca nosso jeito de ser igreja desde a convivência interna – entre os grupos e setores da comunidade, entre lideranças, entre ministros e ministras – até o testemunho que damos diante das políticas públicas, especialmente quando elas não cumprem sua tarefa: lutar pelo bem comum.
4. Imagens para a prédica
Isso nem sempre é viável diante do tempo de que dispomos para preparar o culto e a pregação (sempre menos tempo do que gostaríamos de investir). Mesmo assim, sugiro que, durante a semana, nos contatos com setores de atividade ou até mesmo individualmente, busquemos opiniões a respeito das seguintes perguntas:
– O que você acha que está desafiando mais nosso testemunho de fé em nosso lugar?
– Como podemos reagir ao desafio?
As respostas podem alimentar o início da pregação, trazendo a realidade o mais perto possível da comunidade (ou a comunidade da realidade).
Identificar o que nos pode impedir de viver segundo o Espírito, segundo a novidade de vida (nossas limitações, nossa insegurança, nossa falta de entusiasmo).
Viver segundo o Espírito não é nenhum mérito, fruto de conquistas pessoais, mas ação de Deus em minha direção por meio de Cristo. Assim como Isaías foi purificado pela brasa, e a partir daí seu falar e agir passaram a ter outra dimensão/compromisso, Nicodemos foi procurar Jesus na necessidade de mudança, e o ensino, o novo nascer pela fé, trouxe-lhe essa novidade de vida.
Essa novidade já aconteceu em nossa vida. Não precisamos ficar olhando para o céu, de boca aberta, esperando o grande momento transformador. Em Cristo, a mudança ocorreu: somos filhos e filhas de Deus, nosso Batismo é a maior garantia de mudança. Temos possibilidades de viver conforme novos parâmetros; ainda vivemos na tensão entre os “desejos humanos” e a “condução pelo Espírito”, mas já temos os elementos para lutar contra o que nos quer aprisionar.
– A luta é diária, difícil, as possibilidades são diversas e variadas, além de tentadoras. O apelo ao egoísmo, à satisfação dos desejos pessoais em detrimento da luta pela paz e justiça estão presentes em nossa vida (pode-se exemplificar com exemplos da propaganda, que é um apelo ao consumo individual ou coletivo, mas consumo).
– Vencer essa luta não está em nossas limitadas forças, mas na graça e na misericórdia de Deus.
– Buscar a resposta na prática da fé individual e, principalmente, na vida comunitária: eis o princípio para entender a dimensão da graça e da misericórdia de Deus e permitir que o Espírito passe a direcionar nossas palavras e ações.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
Deus gracioso. Por ação do Espírito Santo, por meio da vida, paixão e morte de Jesus Cristo nos tornas pessoas novas. Perdoa quando repelimos essa novidade de vida. Confessamo-nos teus filhos e tuas filhas, mas nossas ações nem de longe refletem nossa confissão. Ainda preferimos viver de acordo com nossos interesses pessoais, conforme aquilo que nos traz prazer e vantagens. Perdoa-nos, misericordioso Pai, e não te canses de insistir para que um dia, finalmente, digamos sim à novidade de vida, em palavras e ações. Por Jesus Cristo, tem misericórdia de nós!
Canto: Tem misericórdia de mim (HPD 2 )
Oração geral da igreja:
– agradecer pela ação do Espírito Santo em nós, que nos permite ter esperança de que atitudes e pensamentos podem ser diferentes;
– agradecer pelas incontáveis ações de pessoas no mundo, que se deixam desacomodar para fazer valer a vontade de Deus e que infelizmente pouco são divulgadas;
– agradecer pela existência da igreja, onde nos reunimos para permitir que nossas vidas sejam tocadas e transformadas pela ação do Espírito.
Canto: Graças, Senhor, graças, Senhor, por tua bondade, teu poder, teu amor. Graças, Senhor.
– interceder pelo mundo ao alcance de nossos pés e mãos, onde muita dor poderia ser aliviada por nossa ação transformadora a partir da compreensão da ação de Cristo em nosso favor;
– interceder pela igreja cristã no mundo, para que seu testemunho aponte sempre para o Cristo, jamais para sua própria honra e glória;
– interceder por pessoas doentes, enlutadas, solitárias, deprimidas, para que saibam que sua dor não é apenas sua dor, mas a dor que o próprio Cristo, por intermédio de nós, quer compartilhar e ajudar a carregar.
Canto: Inclina, Senhor, teu ouvido. Escuta o nosso clamor.
Bibliografia
ALTHAUS, Paul. Der Brief an die Römer. Das Neue Testament Deutsch. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1953. p. 79-81.
NYGREN, Anders. Der Roemerbrief. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1951.
VICEDOM, Georg; KLESSMANN, Ernst; BECKER, Horst (Ed). 8. Sonntag nach Trinitatis: Römer 8,12-17. Gepredigt den Völkern. Breklum: Christian Jensen, 1967. p. 147-148.
WINGREN, Gustaf. Die Predigt. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1959.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).