Deus está entre nós e na criação
Proclamar Libertação – Volume 41
Prédica: Romanos 8.12-25
Leituras: Isaías 44.6-8 e Mateus 13.24-30,36-43
Autoria: Guilherme Lieven
Data Litúrgica: 7º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 23/07/2017
1. Introdução
Num contexto de dúvidas e desconfianças sobre o poder e a salvação de Deus, que não se podem ver, os textos indicados para o 7º Domingo após Pentecostes, em destaque Romanos 8.12-25, presenteiam a revelação do Deus que nos adota como filhos e filhas. Quando quase todas e todos experimentam uma certa “tonteira”, um vazio, a falta de clareza sobre a presença de Deus e de sua ação salvadora, chega uma mensagem de confiança e esperança no Deus único, o princípio e o fim, que revela o que há de vir e cumpre suas promessas. Aquele Deus que, por intermédio do Espírito Santo, sustenta o viver na provisoriedade neste mundo, no limite da natureza humana, imperfeita. Ainda não podemos ver a plenitude, a glória que virá. Conforme a parábola do texto de Mateus 13, o “joio e o trigo” crescem juntos, e é preciso esperar com paciência a chegada da liberdade completa.
O universo e a vida humana gemem, padecem. Em nossas cidades e comunidades, convivemos com um vazio da fé, da esperança e do sentido maior da vida, a liberdade doada pelo Espírito Santo para participar na missão de Deus e em sua glória, plenitude de vida. Nesses contextos, ao mesmo tempo, subsiste a cultura religiosa desestabilizadora, despida de escatologia e da esperança na chegada da glória de Deus, a plenitude da vida que há de vir.
Os textos do 7º Domingo após Pentecostes revelam a vontade de Deus de nos acompanhar e de nos cuidar, concedendo-nos dignidade para viver neste mundo com esperança. Essa mensagem é preciosa.
2. Exegese
O apóstolo Paulo responde perguntas existenciais complexas, e seu fazer teológico edifica comunidades e aponta para o querigma do evangelho. Denuncia o limite da natureza humana, o pecado. Posiciona-se sobre o limite da lei e anuncia a nova vida com o Espírito Santo e a adoção de Deus, a ação salvadora realizada em Cristo na cruz e na ressurreição.
Com a Carta aos Romanos, Paulo dirige-se às pessoas batizadas na cidade de Roma, tanto das comunidades judaicas como gregas. Os batizados agora estão com Deus, pela presença do Espírito Santo, através da obra salvadora realizada em Jesus Cristo. Não mais no seguimento à lei (baseada na aliança, no povo eleito) e na espera de uma intervenção messiânica de Deus. A lei foi substituída pela presença do Espírito Santo nas pessoas e pela adoção do Pai, tornando todas herdeiras da glória.
Para alguns exegetas, Romanos 8 é o centro da carta de Paulo, não porque ela foi estruturada em 16 capítulos, mas por seu conteúdo teológico. O texto indicado para a mensagem (Rm 8.12-25) reúne os posicionamentos do apóstolo sobre a ação do Espírito Santo na vida das pessoas, superação da natureza humana, a consequente adoção de Deus; também a dimensão do universo, a esperança e a gloriosa liberdade que virá, ou seja, a dimensão escatológica da ação salvadora de Deus.
Os versículos 12 e 13 apresentam o Espírito Santo como uma novidade: Deus habita nas pessoas. Ele substitui a lei. Uma dádiva que supera a imperfeita e pecadora natureza humana e torna as pessoas vivas.
Essa ação do Espírito Santo cria no ser humano o compromisso de negar a natureza humana e não se submeter a ela. Antes separado de Deus, agora o Espírito Santo o une com ele (v. 14). Guia e substitui a aliança e a lei e torna-o filho de Deus (v. 15). Cria a passagem de escravo do pecado para a livre em comunhão com Deus. Certamente Paulo faz uso dessa metáfora, escravo, remetendo à escravidão do Egito e ao contexto local ligado ao mercado de escravos existente em Roma. O Espírito Santo revela para o ser humano a saída da escravidão e a paternidade carinhosa e bondosa de Deus. Essa ação de Deus torna-se real no sacramento do Batismo, que anuncia o surgimento da nova pessoa humana, agora guiada pelo Espírito Santo – a morte da velha pessoa humana e o novo nascimento dela com o Espírito Santo concretizam e revelam a adoção de Deus (v. 16). O Espírito Santo une-se ao espírito da natureza humana, sem destruí-lo, para superar a relatividade humana, a escravidão, e torná-la filha de Deus. O Espírito Santo incorporado ao ser humano é o Deus presente na criatura humana, que devolve para ele a dignidade perdida. A dimensão “espiritual” humana (natureza, mente, corpo, espírito e alma) recebe o Espírito de Deus. Deus amou sua criatura humana e veio estar com ela em sua realidade histórica e real. Essa presença do Espírito Santo não pode ser diminuída ao entendimento fantasmagórico do que é espírito nem se restringir ao sentido platônico, no qual o espírito comunica o reino das ideias ou o “mundo espiritual atingido pelo ser humano”. A presença de Deus é real e salvadora, compromete e impulsiona.
O v. 17 aprofunda a adoção de Deus, referindo a herança que decorre dessa adoção ligada à obra salvífica de Jesus. Ressalta o vínculo do filho e da filha de Deus com seu sofrimento e com sua glória, ou seja, participam da morte, ressurreição e glorificação de Cristo (Ap 21.7).
O apóstolo Paulo alerta que a glória que virá não se limita à libertação só dos sofrimentos que o ser humano conhece e vive. Ele surpreende quando, nos v. 18 a 23, vincula a salvação do ser humano com a libertação de toda a criação. Refere-se à criação como viva, também escrava, que geme, sofre e aguarda o parto, seu novo nascimento. A glória terá a proporção e manifestará a redenção de tudo, da criação e dos seres humanos.
Esperar a glória. Os v. 24 e 25 apontam para o tempo de espera. Definem a esperança. Uma esperança não controlada pelos que esperam: a plenitude do novo ser humano e de uma nova criação, ainda não revelada completamente, por isso a glória de Deus, porém vinculada ao Redentor, a seu ato salvífico, ao Espírito Santo presente no ser humano, à adoção e à herança, também à libertação da criação. Trata-se da esperança que se “espera” pela fé, com perseverança e paciência (Hb 11.1; 2Co 5.7). Esperar uma nova realidade eterna, antecipada em Cristo na história e na criação, sem as armadilhas da reduplicação da vida realizada dentro da atual história. Esperar sem conhecer o que virá, levando em conta o fim da história e de tudo e o surgimento do Eterno.
O Eterno que o ser humano não conhece está, por sua vez, antecipado em fragmentos. Deus veio morar na criação, e o Espírito Santo habita, desde o Batismo, no ser humano. O Espírito Santo antecipa a presença real de Deus no ser humano, como também a dádiva de viver a história atual na condição de filho ou filha de Deus, herdeiro ou herdeira da libertação do pecado e da morte, portanto da glória. Em Jesus Cristo e na presença do Espírito Santo, a presença real de Deus no ser humano e na criação está antecipada. O ser humano não a conhece completamente, mas participa da sua concretização histórica neste mundo e na criação.
O texto de Paulo (Rm 8.12-25) contém a mensagem do evangelho de Jesus Cristo, que leva à fé (Rm 10.17). O texto permite a leitura do Deus salvador e Pai que ama suas criaturas e vem para elas com o Espírito Santo. Ama sua criação e inclui-a na glória que virá. Ambas são abraçadas pelo ato salvador realizado na cruz e ressurreição de Jesus Cristo. E elas participarão da sua glória. Esse é o Deus da salvação. Essa é a mensagem do evangelho de Jesus Cristo, que fascina, edifica e transforma.
3. Meditação
Mais de 20 anos após a morte e ressurreição de Jesus Cristo, Paulo dá testemunho do ato salvador de Deus, que torna o ser humano filho, herdeiro da liberdade, da dignidade, da justiça e da glória, mesmo condicionado à proviso- riedade da natureza humana. Anuncia aos cristãos romanos que, com o Espírito Santo em suas vidas, eles recebem a graça de participar, já agora, do futuro que virá, quando na chegada da eternidade cairão, junto com a criação, no colo do Deus Pai/Aba.
Paulo responde perguntas e dialoga com dúvidas e suspeitas diferentes das atuais. Os judeus cristãos tinham medo de despir-se das leis. Duvidavam se conseguiriam a salvação sem o seguimento a elas. Os cristãos gregos, pressionados pelos judeus, não confiavam que a fé em Jesus e em sua ação salvadora seria suficiente para a liberdade e para herdar a eternidade. O fazer teológico de Paulo naquele contexto edificou as comunidades e comprometeu os cristãos judeus e gregos com a presença de Deus no mundo e com a esperança na glória que virá.
O fazer teológico de Paulo também hoje nos impulsiona. Somos chamados para dialogar, em nosso contexto, com a mensagem do evangelho a partir das nossas dúvidas, suspeitas, levando em conta a crise religiosa, ética, de fé, por onde circulam propostas de vida e sentido que anulam a esperança e negam a ação incondicional e salvadora de Deus.
A ação salvadora de Deus nos compromete. Não podemos fechar os olhos e ouvidos diante da busca das pessoas por dignidade, confiança, sentido, justiça e paz. Diariamente, trombamos com a sede por salvação. Lemos os efeitos escravizantes da natureza humana sem a presença do Espírito Santo, presa ao pecado, que relativiza os valores vitais e expõe todas e todos aos modelos e propostas de prazer e felicidade falsos ou transitórios. Nesse contexto, nesse momento histórico como filhos e filhas de Deus, herdeiros da sua glória, estamos comprometidos pela fé com o dom de anunciar o amor de Deus, a salvação que aconteceu em Jesus Cristo na cruz e na ressurreição. A nossa tarefa envolve o diálogo com a presença real de Deus em nós, entre nós, nos eventos humanos e na criação.
Hoje, milhões de pessoas, também em nossas comunidades de fé, vivem angustiadas e assustadas. Conhecem o vazio existencial e lidam com a ausência de horizonte e de esperança. Duvidam da presença de Deus em suas vidas, no contexto e na história. Trata-se de uma escravidão quase invisível que as afasta do bem como alvo e as anula como participantes na missão salvadora de Deus, presente nas comunidades, na história e na criação. Outros seres humanos que não se encontraram na vida comunitária de fé perderam seus referenciais, valores e tradições. Por vezes, negaram sua história, abandonaram sua identidade cultural e religiosa. Destribalizaram-se! E vagueiam entre as propostas humanas e religiosas em busca de sentido, refratários a promessas e ao futuro. Adaptam-se ao modo solitário de viver e cultuam a força e as possibilidades humanas como instância última. Outros milhões de pessoas ouvem a mensagem do evangelho e, mesmo com dúvidas constantes, creem na cruz e na ressurreição. Seguem com fé nos altos e baixos da vida em meio às contradições, na perda e no sofrimento.
A vida humana e o universo gemem, padecem. Os seres humanos e a criação, sem a presença e o rosto de Deus, caminham para a destruição completa e não para a plenitude e a glória. Em nossas cidades e comunidades, a desorientação, as multiformes maneiras e projetos humanos de salvação formam um vulto, uma espécie de dinamicidade da desgraça, que cega e surda as multidões.
Recebemos a vocação, os dons e a ordenação para anunciar a mensagem do evangelho de Jesus Cristo a partir do texto de Romanos 8.12-25. Dialogar e dar testemunho da presença real de Deus, o Pai nosso, na vida dos seres humanos e na criação.
4. Imagens para a prédica
Proponho que a prédica inicie descrevendo várias situações reais que indicam a presença de Deus na vida das pessoas, na comunidade, na vila ou na cidade e na criação. A partir da mensagem do evangelho, essa presença pode ser visitada nas situações de sofrimento, de abandono, em que acontecem reconciliação, cuidado, superação, renascimento, em que horizontes da esperança e da glória podem ser vistos e esperados. Também nas situações de alegria, de solidariedade, de construção da paz, os valores do evangelho e a dignidade humana transitam e criam a dinamicidade da vida, sinais de justiça, de cuidados e de amor.
Não é difícil! Porém é preciso contar e ouvir casos ou “causos”. Passar uma semana antes da prédica ouvindo as pessoas, lendo e interpretando a realidade do contexto das pessoas que estão em diálogo com Deus.
O outro passo da mensagem precisa, por sua vez, referir-se ao texto de Romanos 8.12-25 e anunciar a sabedoria e a mensagem da fé que autoriza a busca anterior pela presença de Deus nas pessoas, na história e na criação. É fundamental ligar a presença real de Deus com o que há de vir. O provisório, a natureza humana e a criação participarão da plenitude, da glória de Deus. Semear a esperança.
Lembrar que a mensagem da prédica certamente será anunciada para pessoas batizadas que receberam o Espírito Santo e foram adotadas por Deus. São filhas e filhos de Deus. O fazer teológico da prédica precisa considerar a dificuldade humana diante da presença incondicional de Deus na vida dos seus filhos e filhas e na criação. Responder perguntas e dúvidas próprias dessa situação e chamar todos e todas para participar das práticas comunitárias, das ações de solidariedade e de amor nos momentos e situações, lidas pela fé, que abrigam a presença de Deus, das ações e eventos em que Deus cura, cuida, cria comunhão, vence o sofrimento e salva.
5. Subsídios litúrgicos
Canção
Somos gente que espera (HPD 2 – 440):
Somos gente que espera crente na promessa de um mundo novo. Paz queremos com justiça, uma vida digna para todo o povo.
Somos Igreja, Corpo de Cristo, vida em comunhão.
Povo liberto pela sua graça, que caminha e busca plena salvação. Somos gente solidária, junto aos pequeninos que vivem na dor. Partilhando sofrimentos somos testemunhas de nosso Senhor.
Somos gente que celebra o agir de Deus, que é força e guarida. Convivendo em alegria, já participamos da festa da vida.
Oração pelas dores dos seres humanos e da criação
Kyrie, tem piedade de nós, Senhor.
Clamamos a ti, ó Deus. Vem livrar-nos da mentira, das promessas humanas de salvação e de todos os valores que nos levam à morte e destroem a criação. Rogamos em favor das crianças, adolescentes, jovens, mulheres e homens que não conseguem ver tua presença, tua ação de amor, os sinais de vida que vêm da presença do Espírito Santo e que virá, despida da morte, a sua glória. Clamamos a ti, ó Deus. Fortalece todos os eventos humanos, associações e movimentos que abrigam tua presença salvadora. Onde as pessoas são ajudadas e unem-se pela dignidade e pela paz.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).