Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Romanos 8.14-17
Leituras: Gênesis 11.1-9 e Atos 2.1-21
Autor: Martin Volkmann
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação: 19/05/2013
1. Introdução
Depois de Natal e Páscoa, Pentecostes é a terceira grande festa cristã. Ela é tão importante quanto as outras duas, porque lembra a terceira pessoa da Trindade: Deus Espírito Santo. No entanto, totalmente diferente de Natal e Páscoa, em torno de Pentecostes não há alarde nenhum. Não há propaganda alguma nos meios de comunicação; as lojas não oferecem objetos específicos, em diversas formatações, como sugestão para presentes.
Talvez a tradição cristã, assim como fez com o Papai Noel e seus presentes ou com o coelho e os ovos de chocolate, não conseguiu criar um produto de fácil colocação no mercado. Afinal, línguas de fogo, pomba ou vento impetuoso dificilmente conseguem ser transformados em objetos a ser comercializados nessa época pentecostal.
É de lamentar? Pelo contrário! Não lamentamos muitas vezes o fato de que o espírito do Natal é deturpado pela total comercialização da data? Não sentimos como prejudicial para a mensagem pascal o fato de tudo girar em torno do coelho e dos ovos de chocolate? Por isso… que bom que Pentecostes ainda não foi descoberto pelo comércio!
Isso nos possibilita fazer dessa data uma verdadeira e exclusiva festa da comunidade de fé. Aproveitemos isso, fazendo do culto de Pentecostes e das demais atividades comunitárias nesses dias um motivo de reflexão e de alegria pela dádiva do Espírito Santo.
2. Exegese
Uma olhada rápida sobre esse texto de Romanos 8.14-17 já leva a perceber um dado interessante: cinco vezes aparece o termo pneuma. E se considerarmos todos os versículos iniciais do capítulo 8, isso já é assunto em todo o capítulo. Nos versículos iniciais, Paulo argumenta com a contraposição entre pneum’ – a realidade divina e sarks – a realidade humana, marcada por pecado e morte, respectivamente o “viver segundo a carne/segundo o Espírito”. Assim, os v. 11 e 12, que poderiam fazer parte da perícope para a pregação, trazem a conclusão da unidade e fazem a ponte para o que segue: Não somos comprometidos com a carne para viver segundo a carne, porque isso significa morte. Ao contrário, rejeitando, no poder do Espírito, as forças da carne, temos vida. Por isso a conclusão no v. 14: “Pois aqueles que são guiados pelo Espírito de Deus, estes são filhos de Deus”. Portanto receber o Espírito Santo, ser guiado por esse Espírito significa estar sob a esfera divina; é estar sob a área de influência divina. Mais ainda – e este é o enfoque novo –, essas pessoas são galgadas à posição de filhos e filhas de Deus. Logo, ser filho e filha de Deus não é fruto de decisão da pessoa nem mérito dela, mas é ação exclusiva de Deus. Porque – invertendo a afirmação do versículo– quem é filho/filha de Deus é guiado, dirigido, conduzido pelo Espírito de Deus.
Nova fundamentação – gar/pois – explica essa situação diante de Deus com outra contraposição (v.15): espírito de servidão versus espírito de filiação. Porque o “viver segundo a carne”, como Paulo desenvolvera nos versículos iniciais do capítulo 8, é escravidão, é dominação sob a lei do pecado e da morte, da qual nós fomos libertados por Cristo Jesus (v. 2). Assim, em lugar de espírito de servidão, “vós recebestes espírito de filiação”. O que caracteriza os filhos e as filhas não são mais escravidão e dominação por um poder do mal, mas é a liberdade dada com a filiação divina. Essa liberdade, essa nova situação dada por Deus mesmo, evidencia-se na atitude de se dirigir a Deus como pai. A palavra aramaica abba, aqui transliterada para o grego, expressa uma relação muito íntima entre um filho e seu pai, assim como uma criança pequena chama seu pai de “paizinho”. Essa relação íntima Jesus teve com seu Pai e dirige-se a ele como abba (Mc 14.36). Essa mesma relação íntima de poder chamar Deus de “paizinho” têm aqueles que são movidos pelo Espírito de Deus. Esse dirigir-se a Deus nessa intimidade reporta à oração, de maneira que o recebimento do dom do Espírito e a possibilidade de se dirigir a Deus em oração complementam-se mutuamente. Dom do Espírito e liberdade de dirigir-se a Deus em oração caracterizam filhos e filhas de Deus.
E novamente é trazida a fundamentação para tal afirmação: é o próprio Espírito divino que testemunha, juntamente com o nosso espírito, que somos filhos e filhas de Deus (v. 16). Vale observar que agora Paulo troca o termo para a filiação divina. Nos v.14 e 15, ele usa huioi, respectivamente huiothesia; agora passa a usar o termo tekna = crianças. Assim, cada crente, pela dádiva do próprio Espírito Santo, conscientiza-se de que é filho/filha de Deus. O plural “somos filhos de Deus” destaca, ao mesmo tempo, a dimensão comunitária: nós não o somos apenas sozinhos, individualmente, mas na comunhão dos santos. Isso, ligado ao verbo composto em grego – symartyrein, possibilita ainda outra interpretação: o Espírito de Deus testemunha junto com o Espírito dado à comunidade de fé que nós/a comunidade de fé somos filhos e filhas de Deus. Portanto o Espírito de Deus não é algo abstrato, totalmente irracional, mas é um espírito compreensível. Ele nos possibilita o acesso a Deus em oração e, ao mesmo tempo, certifica a comunidade de sua filiação divina.
O v. 17 apresenta as consequências da filiação divina: como filhos e filhas somos também herdeiros. E essa herança não tem outro fundamento a não ser o fato de sermos coerdeiros com Cristo, como diz o termo grego (synkleronomoi). Portanto a nossa filiação divina está baseada na ação salvífica do Filho Unigênito. Mesmo já sendo realidade agora, o que é destacado nos versículos anteriores (“somos filhos de Deus” – v. 14; “recebestes o espírito de filiação” – v. 15), simultaneamente a herança é objeto de esperança, ainda não é realidade plena. O ser possuído pelo Espírito Santo certifica-nos da pertença, da filiação a Deus. Ao mesmo tempo, ele nos remete para a esperança da consumação: “seremos juntamente glorificados”. E o fato de sermos coerdeiros com Cristo torna-nos também participantes de seu sofrimento. Portanto ter recebido o Espírito Santo, ser movido pelo Espírito de Deus não exclui participação na cruz. Ter recebido o Espírito Santo, ser integrado à filiação divina, é também carregar a cruz para participar da glória eterna. Chama a atenção que, nesse versículo, Paulo usa três vezes a preposição syn = junto com. Somos herdeiros junto com Cristo; sofremos junto com Cristo; junto com ele seremos glorificados. Isso destaca a vinculação íntima da realidade presente e da esperança futura com o evento de Cristo. Outro aspecto interessante é que Paulo alterna a conjugação verbal entre “nós” (v. 12, 16, 17), “eles” (v. 14) e “vós” (v. 13,15). Com isso, especialmente no v. 15, ele consegue dar destaque ao fato de que o que é dito aqui é alocução direta para os ouvintes: isso vale para vocês!
Conclusão: O dom do Espírito Santo assegura-nos a filiação divina. Ela é dádiva, não conquista nossa. Ela nos une com o Filho Unigênito e torna-nos herdeiros junto com ele. Com ele seguimos os passos da cruz na esperança do reino eterno.
3. Meditação
Na introdução, apontamos para o fato de que a festa de Pentecostes, diferentemente de Natal e Páscoa, corre o risco de passar despercebida pela comunidade. Por outro lado, sem vinculação com a data em si, diariamente somos confrontados em programas de rádio e de televisão com mensagens e depoimentos de pessoas que dizem possuir o Espírito Santo e ser movidas pelo Espírito Santo. E demonstram-no de formas variadas por glossolalia, expulsão de demônios, curas milagrosas. Se, por um lado, corremos o risco de nos esquecer do dia de Pentecostes, por outro lado, o mundo ao nosso redor, a cada dia, está cheio de manifestações do espírito. E aí, para muitas pessoas, surge uma dúvida crucial: Será que eu tenho o Espírito Santo? Será que o Espírito Santo também age através de mim? O culto de Pentecostes e todas as atividades comunitárias nesse período pentecostal são uma ótima oportunidade para ajudar os membros tradicionais de nossas comunidades a ver a importância do Espírito Santo, o Deus-conosco hoje, e como ele, por sua livre iniciativa, age em nós e onde ele quer.
Um primeiro aspecto fundamental que está presente também no texto de prédica é que o Espírito Santo nunca é conquista ou posse nossa. No texto, isso transparece no v. 14 na expressão passiva “aquelas pessoas que são movidas pelo Espírito de Deus” ou no v. 15 na expressão “recebestes espírito de filiação”. Portanto o Espírito Santo é sempre dádiva de Deus. Ter o Espírito Santo é sempre presente por iniciativa de Deus. Assim como Lutero expressa na explicação do terceiro artigo do Credo: “Creio que por minha própria razão ou força não posso crer em Jesus Cristo, meu Senhor, nem vir a ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo evangelho…” E para fazer novamente a relação com Natal e Páscoa, que aparentemente são tão evidentes para as pessoas, também essas datas no seu significado só são acessíveis para nós por dádiva do Espírito Santo. Portanto quem crê em Deus e sabe-se participante da salvação em Jesus Cristo, porque foi batizado em seu nome, essa pessoa está sendo guiada pelo Espírito Santo. Mas por ele nunca ser posse nossa e sempre permanecer Espírito de Deus, importa orarmos pela dádiva do Espírito.
E por falar em oração, como diz no próprio texto (v. 15), é o próprio Espírito que nos ensina e nos dá a liberdade de nos dirigir a Deus. Poder falar com Deus, assim como uma criancinha diz a seu pai: “paizinho querido”, isso só é possível porque é o próprio Espírito Santo que nos move para tal. Mais ainda: é o Espírito Santo que nos dá esse sentimento, essa sensação de aconchego: eu sou o filhinho amado de meu paizinho. E nessa certeza, toda oração ao Deus Pai será uma oração no Espírito Santo. Não só aquela oração espetacular, cheia de fervor e de entusiasmo, que só alguns poucos parecem poder fazer, é uma oração sob o domínio do Espírito. Não, também aquela breve oração decorada, aprendida da mãe na infância, aquele velha oração de mesa, aquela breve oração ao acordar ou antes de adormecer – também essas orações podem ser cheias do Espírito. Anunciar isso para a comunidade certamente será confortador e animador.
Servidão – filiação – herança: três termos ao redor dos quais o apóstolo constrói uma parte da argumentação. Na estrutura social da época, o servo ou escravo fazia parte da família e prestava serviço a ela. Sua obrigação era servir, desempenhar suas tarefas para fazer jus à recompensa: o seu simples sustento. Não tinha direito à herança, exclusividade do filho. E agora o texto destaca que as pessoas guiadas pelo Espírito não se encontram em nenhuma forma de servidão, mas foram colocadas na situação de filhos. E como filhos são também herdeiros. Servo trabalha para receber a recompensa. Filho tem parte na herança por ser filho. Nós somos filhos e filhas por ter sido agraciados com a dádiva do Espírito Santo no Batismo. Por isso participamos da herança na salvação eterna. Que significa isso para a vivência cristã? Nosso serviço será sempre resposta, a segunda palavra. Em primeiro lugar, vem o dom do Espírito, que nos habilita e nos orienta em nosso serviço. Nós não somos escravos que devem produzir uma multidão de boas obras para então fazer por merecer a dádiva do Espírito Santo, a participação na salvação. Mas por termos sido agraciados com a salvação, que nos assegura a dádiva do Espírito Santo, servimos e fazemos boas obras sob a orientação do Espírito Santo.
Outro elemento que faz parte da argumentação de Paulo e que para muitos é motivo de incerteza é a questão do sofrimento, da cruz. Ter o Espírito Santo não é sinônimo de ausência de dúvida, de alegria completa, de perfeição? Não se diz seguidamente que quem crê – e logicamente tem o Espírito Santo – não pode ter dúvida? E por que pessoas crentes sofrem, têm que carregar sua cruz? Enquanto vivemos na esperança da salvação eterna, continuamos inseridos neste mundo que, como o apóstolo Paulo desenvolve nos versículos iniciais do capítulo 8, está marcado pelas forças da sarks. Forças do mal, poderes de morte continuam presentes e dominando nossa realidade terrena. E assim como o Cristo foi morto por essas forças que se opunham ao espírito de vida que ele demonstrava em palavra e ação, da mesma forma nós continuamos expostos às forças do mal. Por isso ser guiado pelo Espírito de Deus não significa estar livre de qualquer sofrimento, de ter que carregar sua cruz. Pelo contrário, ser movido pelo Espírito de Deus é ter a
orientação e a força para enfrentar as forças do mal e carregar a sua cruz.
4. Encaminhando a pregação
Ao longo da análise do texto e da meditação a partir do mesmo, quatro aspectos foram se destacando: a) o Espírito Santo como dádiva, não conquista ou posse nossa; b) o Espírito que nos ensina e nos incentiva a orar; c) o Espírito que nos dá a filiação divina e a herança eterna e nos orienta para o serviço sob sua condução; d) essa filiação e serviço não excluem a cruz. Em torno desses tópicos poderá girar a pregação. Será, assim, anúncio, resposta positiva a dúvidas e incertezas das pessoas, respectivamente instrução na fé sobre essa data tão importante, como Natal e Páscoa. Por isso a prédica poderá iniciar com a referência ao risco de a festa de Pentecostes passar totalmente despercebida, respectivamente às dúvidas se eu “tenho” o Espírito Santo, considerando que não percebo manifestações especiais do Espírito em mim.
5. Subsídios litúrgicos
– Cada culto dá-se sob a orientação do Espírito Santo, e seguidamente se inicia o culto com a invocação do Espírito. Já para marcar esse dia especial de Pentecostes, não deveria faltar um hino de invocação do Espírito Santo no início da celebração. Sugestão: “Vem, Espírito de Deus” (HPD, 318).
– Nas três séries de textos para Pentecostes, o Salmo do dia é sempre o Salmo 104.24-34,35b. Como é um dia festivo especial, sugiro fazer a leitura do Salmo, convidando a comunidade a responder, após cada unidade, com o v. 35b: “Bendize, ó minha alma, ao Senhor! Aleluia!” As unidades podem ser: v. 24-26; v. 27-28; v. 29-30; v. 31-32; v. 33-34.
– Na oração do dia, dois aspectos deveriam ser considerados: o pedido para que o Espírito Santo guie e oriente a cada um/uma em sua vida pessoal; por ser Pentecostes o “aniversário” da igreja, pedir pela condução do Espírito para que a igreja em todo o mundo possa ser testemunha da salvação e que possa, em seu agir, colocar sinais da presença do Reino no seu ambiente de vida.
Bibliografia
KÄSEMANN, Ernst. An die Römer. In: Handbuch zum Neuen Testament. 3. ed. Tübingen: J.C.B.Mohr, 1974.
WILCKENS, Ulrich. La carta a los Romanos. V. II. Rm 6-16. In: Biblioteca de Estudios Biblicos. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1992.
O texto também já foi analisado em PL 25, 29 e 36.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).