Prédica: Romanos 8.14-17,22-27
Leituras: Salmo 104.24-31 e João 15.26-27;16.4b-11
Autor: Silfredo Bernardo Dalferth
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação: 30/5/2004
Proclamar Libertação – Volume: XXIX
Tema: Pentecostes
1. Introdução
Na carta aos Romanos, o apóstolo Paulo dá poucas informações sobre a comunidade de Roma. Das questões levantadas na carta podemos deduzir que se trata de uma comunidade “mista” de judeus e gentios. Esta constatação, porém, ainda não diz muito sobre a sua multicultura. O fato de esta comunidade se situar no centro político-econômico do Império Romano dá a ela uma importância particular. Naquela época, Roma era a rota comercial e multicultural da Antigüidade.
A comunidade de Roma recebeu a carta de maior diversidade de assuntos e de maior intensidade teológico-antropológica. A meu ver, a diversidade dos assuntos revela que a comunidade era multifacetária. Considerando que a comunidade vive o contexto imediato do centro nervoso da política, ela possui as maiores potencialidades. Certamente Paulo sabe de perguntas do contexto religioso e filosófico da comunidade. Por isso, a meu ver, a carta tem essa densidade e profundidade.
2. Clarificação teológico-antropólogica
Sabemos que Paulo redigiu a carta aos Romanos pouco tempo depois da segunda carta aos Coríntios. O categorial dos conceitos antropológicos do helenismo está em voga, também no judaísmo caracterizado como “judaísmo helenístico”.
O texto em questão, Rm 8.14-17,22-27, possui uma densidade teológico-antropológica significativa. O binômio “carne e espírito” perpassa todo o texto. Ambos os conceitos definem a totalidade do ser humano, vivendo a sua vida conforme a “carne” ou conforme o “espírito”. Na teologia paulina, “espírito” sempre é uma realidade relacional do Espírito Santo conosco. Na ação do Espírito Santo está “o nosso espírito” (Rm 8.16). Celebrando o Pentecoste, testificamos que o Espírito Santo trouxe uma nova realidade relacional para as pessoas, a de serem filhas e filhos do Deus, que é chamado de “pai querido” (Abba).
Devemos nos resguardar de confundir o conceito “carne” com corporalidade. “Carne” e “corpo” não são sinônimos. O corpo está integrado na unidade da criação divina e na vida segundo o espírito. Com relação à corporalidade humana, como veremos a seguir, vale a afirmação fundamental de que a pessoa humana é uma unidade indivisível.
No segundo momento, porém, vale também que “os feitos do corpo” devem ser mortificados (Rm 8. 13). Os conceitos de “carne” e “corpo” são diferentes, mas, ao mesmo tempo, estão muito próximos. Os conceitos “carne” e “espírito” têm uma longa trajetória antes de ser usados e ressignificados por Paulo.
Quanto às questões de unidade e diferenciação em relação ao trinômio “espírito, alma e corpo”, costuma-se culpar a filosofia/antropologia grega de dualismo ou dicotomia. No entanto, a própria filosofia grega, principalmente em sua fase clássica, através dos conceitos antropológicos de Platão, está preocupada com a unidade interior, incluindo o corpo e a pólis, buscando uma harmonia conforme as premissas da sabedoria. A filosofia tenta construir a unidade harmônica do ser humano e, nessa integração do todo do ser humano com o “ser humano interior”, buscar a harmonia da pólis. Sendo assim, os instintos corporais são integrados na parte mais elevada do ser humano “interior”, a frónesis ou sofía. A sabedoria interior conduz a lei do corpo para dentro das virtudes. A tragédia humana começa quando esses instintos corporais combatem as partes mais elevadas da psique, desvirtuando-a para uma vida sem sabedoria.
O dualismo é contrário à filosofia, especialmente em Platão. Isto significa que os termos que Paulo usa, naquele contexto advindos do judaísmo helenístico, estavam integrados em sua origem na unidade ontológica do ser humano com a pólis. O dualismo, por assim dizer, era justamente a quebra da unidade. Mais tarde, nos estóicos, passa a existir um categorial dualista que desvaloriza a corporalidade, onde é acentuado que somente a “libertação” da alma do corpo, depois da morte, pode conferir condições de liberdade e sabedoria para a alma.
Embora seja improvável que Paulo tenha se dedicado à filosofia grega clássica, o categorial de conceitos fazia parte da cultura helenística. A famosa passagem de Rm 7.23 – “… vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente (psiqué), me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros” – e a de Rm 8.13 lembram justamente a lei dentro do corpo que luta contra o ser humano interior. Neste caso, há uma contraposição entre “mente” (nous) e “corpo” e entre “mente” e “carne” (Rm 7.23-25).
Da mesma forma, os conceitos nous (mente), psiqué (alma) e pneuma (espírito) têm uma longa trajetória antes de ser usados e ressignificados por Paulo. Os termos gregos nous, psiqué e pneuma se confundem. Esta fusão conceitual é anterior a Paulo. Por isso, devem sempre ser definidos levando em conta o referido contexto.
Na origem da terminologia antropológica, psiqué e pneuma são sinônimos: hálito ou sopro. Paulo, porém, contrapõe às vezes os conceitos. Em 1 Co 15.44-46 fala do “corpo psíquico”, referindo-se ao corpo natural em contraposição ao “corpo pneumático”. A meu ver, podemos verificar que Paulo usa o termo psiqué para designar o “sopro” de Deus que anima a vida natural. Neste aspecto, a corporalidade e a vitalidade “espiritual” do corpo estão unidas. O termo pneuma se refere ao ser humano interior renovado, que inclui as outras dimensões da vida, alma e corpo, conforme a lei de Deus: “… e o vosso espírito (pneuma), alma (psiqué) e o vosso corpo (soma) sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vida de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Ts 5.23).
Existe uma continuidade entre Espírito de Deus, adoção/filiação e (implicitamente) liberdade. Via negativa existe também uma continuidade entre o “espírito da escravidão” e o viver atemorizado (Rm 8.15). Essa mesma realidade também se refere à continuidade de “carne” e “morte” (Rm 8.12). A verificação dessa continuidade existencial reforça a totalidade dos conceitos “carne” e “espírito”. São realidades antagônicas totais: divina/espiritual e carnal/humana. Ambas as realidades são um caminho com sua respectiva culminância, a morte ou a vida.
3. Unidade antropológico-criacional
Normalmente, o texto de Rm 8.22-27 é citado para fundamentar que a natureza perdeu sua originalidade paradisíaca, que, assim como a humanidade, também ela está marcada pelo pecado: “… toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora” (Rm 8. 22). Devemos observar que nesse gemido da natureza está também o gemido do nosso corpo, que espera a redenção (Rm 8. 23). Nesse contexto da afirmação da queda de toda a criação, a pergunta fundamental é se na expulsão do paraíso a natureza acompanhou a humanidade.
De um lado, poderíamos afirmar que o paraíso permaneceu intacto com a sua natureza, excluindo apenas a humanidade. A plasticidade do texto da queda humana para o pecado e a exclusiva denominação da humanidade reforçariam a tese de que, conforme Gênesis, somente a humanidade está do lado de fora do paraíso. Como, no entanto, poderíamos explicar a queda da natureza conforme o texto de Rm 8? Como este texto está nas Sagradas Escrituras?
A meu ver, podemos responder à queda da natureza da seguinte maneira. Em ambos os relatos da criação em Gênesis, podemos registrar um crescendo na criação. Tudo começa pelas evidências (a luz, o firmamento, os astros, a separação das águas, as diferentes espécies de plantas, as diferentes espécies de animais), até culminar na humanidade, adam. A culminância de tudo o que existe está na criação da humanidade, adam, homem e mulher.
A humanidade representa uma extremidade do todo. A meu ver, com base na estrutura lingüística do paralelismo, na estrutura da língua hebraica, a extremidade quer expressar totalidade. Essa estrutura da lógica lingüística é uma estrutura do pensamento, onde a citação de uma extremidade subentende implicitamente uma outra extremidade, perfazendo o todo. Neste sentido, a citação da culminância da criação com a humanidade implica uma ontologia, isto é, a humanidade não é uma parte à parte, mas perfaz a unidade da criação divina, o sentido de tudo em retrospectiva desde o seu início, seguindo em progressão até a sua plenificação.
A humanidade não pode, portanto, ser vista como uma parte secionável da criação, mas, como extremidade culminante da criação, representa o todo. Nesse duto argumentativo, podemos chegar à seguinte importante conclusão: na expulsão da humanidade do paraíso, a natureza vai junto. Toda a realidade está do lado de fora do paraíso. Se não fosse assim, como poderíamos explicar a queda da natureza, conforme Rm 8?
Unindo os v. 14-17 com os v. 22-27 do capítulo 8 de Romanos, certamente estamos diante de uma das constelações teológico-antropológicas mais densas das Sagradas Escrituras, pois conjuga, no espaço de poucos versículos, a unidade teológico-antropológica do ser humano em seus aspectos totais de “carne” e “espírito” com a unidade íntima da humanidade com o todo da criação.
A unidade da criação resulta no dogma da indivisibilidade. Há uma continuidade original entre Deus em comunhão com as pessoas até a natureza. Errar esse dogma tem conseqüências fatalíssimas. Na história da humanidade, vimos que a destruição da unidade antropológica e criacional levou a catástrofes sérias.
A separação conceitual de espírito, alma e corpo levou à incompreensão das pessoas por seus semelhantes. Desrespeitando o dogma da indivisibilidade, o ser humano desvalorizou e apenas tolerou a sua corporalidade, desvalorizando a sua saúde, sua sensualidade, sua relacionalidade corporal com a natureza e, finalmente, também desvalorizou a natureza como valoração divina em si. O ser humano tratou a natureza como uma grandeza separada dele mesmo. Neste sentido, a ação do Espírito Santo, colocando as pessoas na condição de filhas e filhos, congregando-as para um novo espírito, tem conseqüências para o mundo no seu todo, incluindo a natureza que sofre por causa do pecado humano.
4. Caminhos para a prédica
A prédica pode iniciar com uma sistematização simples do texto. Logo após, pode apontar para as flores do altar, que representam a natureza, e perguntar: As flores ainda continuam no paraíso? Ou as flores foram expulsas do paraíso junto com a humanidade?
Devemos lembrar na prédica que Deus criou o mundo como paraíso. Com o afastamento da humanidade do Criador, houve uma quebra entre as pessoas e das pessoas com a natureza. Um texto escrito há tantos anos parece mais atual do que nunca. Em nossa época, escutamos a reclamação dolorida e os gemidos da natureza.
Desrespeitando essa unidade indivisível, o ser humano desvalorizou a criação, iludindo-se que poderia usar e explorar a natureza. É impossível tratar a natureza como uma grandeza separada de nós mesmos.
A mudança do mundo começa com a ação do Espírito Santo sobre as pessoas. O Espírito Santo transforma pessoas para serem “co-herdeiras” com Cristo (Rm 8.17). Esta nova humanidade co-herdeira de Cristo vai dignificar o mundo por causa daquele que o criou. Muitas vezes, temos dificuldade de ter gratidão e de traduzi-la em ação. O contrário de gratidão é exploração do semelhante e da criação, mero consumo depredatório das dádivas de Deus. A ingratidão, no entanto, tem o seu preço, porque a criação está fora e dentro de nós.
Em Pentecoste, celebramos que Deus envia o Espírito Santo para nos entusiasmar com os feitos e os sonhos de Deus. A recompensa verdadeira não será colher glórias pessoais, mas ser parte dessa unidade que começa com Deus, passa pela comunhão de vida entre as pessoas e vai até a criação. Porém, é uma ilusão querer melhorar e salvar o mundo sem que as próprias pessoas melhorem. O nosso mundo interior se reproduz fora de nós. Certamente podemos ver uma relação entre “ecologia interior” e a ecologia do mundo.
A reconciliação que Cristo traz para as pessoas nos motiva para a luta de reconquista do elo perdido entre as pessoas e da humanidade com o mundo. Devemos afirmar com fé e esperança que o “nosso mundo tem salvação”.
Podemos finalizar com a seguinte dinâmica: Fazer um cartaz com a participação de confirmandas e confirmandos. Com um lápis desenhar um globo e ao seu redor pessoas de mãos dadas, de todas as culturas, meninas e meninos, adultos, diferentes raças. Depois o cartaz será colorido por crianças, eventualmente durante um evento da comunidade. A dinâmica e a interpretação do cartaz colorido podem servir como base de reflexão para um próximo culto ou estudos em grupos na comunidade.
Esta reflexão pode servir de base para uma celebração da Eucaristia: o Espírito Santo traz a comunhão de Deus com as pessoas ao redor da mesa, por todo o mundo, estendendo-se até a dignificação do mundo como um todo. No ofertório pode ser lembrado que toda atividade humana é “manipulação”, positivamente falando, da natureza. Na arrumação da mesa da Ceia, é lembrado que também os elementos do pão e do suco da videira advêm da natureza, dádiva de Deus que passa por mãos humanas.
Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia