Prédica: Romanos 8.(31-34) 35-39
Leituras: Gênesis 22.1-14 (15-18) e Marcos 1.12-15
Autor: Clemente João Freitag
Data Litúrgica: 1º. Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 17/02/1991
Proclamar Libertação – Volume: XVI
1. Considerações iniciais e delimitação
O texto indicado 8.(31-34)35-39 é como o arremate de uma lavoura fiscalizada, uma produção eletrônica sob encomenda ou uma produção teológica para exportação. É um produto a ser exportado, com colocação em qualquer parque de exposição nacional e internacional. Neste caso específico, vai para o parque em Roma, onde o fervilhar da exposição religiosa também cedeu um espaço às propostas cristãs. O contexto maior desta produção teológica lapidada inicia-se no cap. 5 e vai até o cap. 8.39. Tem como cerne histórico a tese de Habacuque 2.4, numa versão mais universalizada. Tanto assim que, ao ser exposta, ela compete com as religiões gnósticas, dos mistérios e das leis, ultrapassando-as. Observada de qualquer ângulo, ela faz refletir a opressão legalista, a impotência, a incapacidade do poder salvífico destas outras religiões. Em detalhe, a produção teológica de Paulo (caps. 5 a 8) nos mostra a liberdade dos filhos de Deus em relação ao poder do pecado, da carne, da morte e da lei. Esta liberdade nasce do amor gratuito e incondicional de Deus em Cristo Jesus. Assim, a salvação é dom de Deus; aos pagãos a salvação chega sem a intermediação da lei. Mediante a morte e ressurreição de Cristo, o Espírito nos torna livres e aptos à salvação. Isto o apóstolo confessa em forma de hino.
No tocante à delimitação da perícope 8.(31-34)35-39, não há consenso. É um hino litúrgico com quatro estrofes, assim ordenadas: vv. 31-32; 33-34; 35-37 e 38-39, que seguem o estilo da época: pergunta — resposta pergunta com termos antagônicos. Onde vale menos o sentido e mais o peso no contraste (morte x vida, presente x futuro). Sua composição e formulação soam como um hino litúrgico que está em harmonia com o clima escatológico da época. Igualmente reflete um artigo de fé que desperta leitores e ouvintes de seu tempo de um possível desvirtuamento ou acomodação cristã. Respeitando a riqueza e a abrangência temática das quatro estrofes, opto pela delimitação indicada. Ainda mais que, aparentemente, no v. 35 inicia-se uma nova tese conclusiva. Onde consta um dos tripés da vida cristã: fé — amor esperança. Elemento este, o amor, que é a grande revelação de Deus em Cristo. Este hino, como um todo ou só uma parte, reflete e contém a linha histórica da fé em Deus, relatada e vivida no AT. Paulo universaliza esta fé da tradição bíblica de¬monstrando e vivendo que o Deus de Abraão — de Jesus — de Paulo e dos cristãos de Roma é o mesmo. Desta forma, a perícope reflete material histórico trabalhado e inserido por Paulo neste contexto. Esta mesma perícope já consta em PL IX c XI em sua versão maior 8.31-39. Neste n° está sendo pensado para o início da Quaresma.
2. Análise reflexiva da perícope
V. 35 — Não é aconselhável entender o texto deste versículo apenas como uma fórmula retórica da época. Quer também ser ouvido e crido na perspectiva da parúsia. O clima escatológico reinante na vida de Paulo e da comunidade cristã é fundamental para a compreensão do todo.
O conteúdo deste versículo nos confronta com um ideal que tenta superar o estado de morte que nos cerca. As realidades espirituais e materiais como são cridas e confessadas pelo gnósticos, apocalípticos e judeus são confusas e opressoras. Esta estrofe relata a própria vida missionária do apóstolo, fornecendo-nos um catálogo de sofrimentos. Sofrimentos que expressam a luta do cristão contra o poder do mal. O sucesso do poder do mundo representa a tribulação e perseguição à vida do Cristo. Isto como algo passageiro. Pois a perseguição e a resistência a Deus são escândalos. Escândalo este que passa a ser idolatria. Paulo exorta os fiéis a seguirem seu exemplo. Apresenta-se assim à comunidade de Roma como o espelho de Cristo. Revela à comunidade sua grande descoberta feita em Damasco: Nada nos pode separar do ‘ágape’ de Cristo. Nada! Esta convicção leva à crença de que em Jesus, assim também em Paulo, a ação destruidora dos homens não apagou o plano salvífico de Deus. O amor e a eleição da criação de Deus alcança o auge no plano histórico-salvífico, quando a última pergunta constante no hino, e que inicia nossa perícope, é confirmada pela citação do AT (SI 44.23). Dependendo da situação, a tribulação escatológica faz parte da vida de missão.
V. 36 — Paulo focaliza seu problema existencial, recorrendo ao SI 44.23. Ele, Paulo, e a comunidade cristã são igualmente o verdadeiro Israel. Tomaram para tanto um credo bíblico que os confirmou como realizadores da promessa do AT. Conforme Paulo, apesar da força, do poder questionante do mundo, Cristo executou o plano de Deus. Desta forma ele, Paulo, e a comunidade cristã vivem o tempo escatológico que Cristo ensaiou e consumou na morte e ressurreição. A vida da comunidade passa a ser uma vida de oferendas, em obediência e esperança no amor de Deus. Reconhecendo Deus como Senhor de tudo e todos. Não há poder maior no mundo do que o amor de Deus.
V. 37 — Este versículo formaliza a resposta do v. 35. Faz uso da terminologia esportiva para expressar um dogma fundamental de sua teologia no aguardo da parúsia. Apesar de tudo… somos mais que vencedores… No âmago desta formulação está sua experiência pessoal, mas também comunitária, que denota o amor gratuito de Deus. Amor este manifesto e colocado à nossa disposição também em meio à multidão de problemas. Pois o amor de Deus reclama o mundo como propriedade sua. Aquele que é Deus se humilha e assume a natureza humana, sacrificando-se a si, expressando seu amor pelo ser humano. Ser humano este que na religiosidade manifesta sua perversão, colocando ídolos no lugar de Deus.
Apesar de Paulo saber que sobre o pecado de todos é que paira a ira de Deus, crê, confessa e anuncia a superioridade do amor de Cristo. Tudo aquilo que é mais real do que o ideal crido e vivido por Paulo em Cristo já foi vencido na cruz e ressurreição.
V. 38 — A perseguição e as ameaças constantes de morte antes da parúsia levaram-no a listar preocupações reais e presentes em sua vida. Usando antíteses gregas (vida x morte, presente x futuro), aproxima-se mais ainda dos anseios e preocupações da comunidade. Projeta anseios e dúvidas individuais sobre a coletividade da comunidade. Tenta desta forma levá-la a experimentar o Cristo morto e ressurreto, como ele em Damasco.
Ao fazer esta listagem de antagonismo, dá a conhecer à comunidade que Cristo não suprimiu os pecados da humanidade. Estes constituem a atual condição humana desgarrada de Deus. Dá-se início com este versículo à moldura final desta obra teológica de exportação. Apesar de reconhecer o peso, a opressão do poder político, econômico e social que o mundo romano exercia sobre as criaturas, diz que isto já foi vencido por Cristo.
V. 39 — Diante de toda esta listagem de perigos e poderes reais, Paulo proclama a vitória de Deus. Não se intimida diante dos poderes das outras religiões e forças opressoras. Critica-as. Passa a participar com isto do rol profético, conservando a esperança mística de dias melhores. Segundo ele, nem as forças cósmicas usadas por gnósticos, apocalípticos e místicos, para enganar a fé da humanidade, escapam do poder e da ação do amor em Cristo. Lembra, enquanto a parúsia não ocorre, a grande tribulação messiânica segue envolvendo a vida cristã. A vida do crente segue rodeada pelo inferno. Mas, como em sua vida, experimentou que Deus o amou em pecado. Assim vive na absoluta certeza de que as acusações da morte, do pecado, da lei são menores que o poder de Cristo. Desta forma, não só ele, mas a humanidade toda passa a ser o objetivo do agir de Deus. Vê neste agir de Deus o futuro aberto, além da morte, para todos. A nova vida.
O amor de Deus em Cristo para com a humanidade é o perfeito. O outro, o amor da humanidade, ainda não ocorreu na plenitude. Assim, o apóstolo encerra o hino com uma expressão cunhada por ele: Cristo Jesus Nosso Senhor, que é o exaltado de Deus; Jesus o terreno; Cristo associado a morte e ressurreição. São o desfecho do produto teológico de exportação.
3. Subsídios e sugestão para o culto quaresmal
A viga histórica que ampara nossa vida neste período da Quaresma, Rm 8.35-39, está assessorada por Gn 22.1-14 e Mc 1.12-15. Textos auxiliares que fornecem a linha histórica da salvação construída por Deus em Cristo Jesus. Vai da obediência de Abraão ao não-sacrifício de Isaque; passando pela tentação de Jesus e a vitória cio Espírito que atuou em Cristo. Conduzindo-o até a ressurreição, para que Paulo, nocauteado em Damasco, confessasse também aos romanos a supremacia de Cristo sobre tudo e todos. Mediante o agir amoroso de Deus.
Início da Quaresma de 1991 — aparentemente este fato de fé não traz nada de importante para nossa vida do dia-a-dia. Um ano com presidente eleito pelo voto. Voto este conquistado com a promessa de organizar a pátria combatendo uma série de poderes, considerados lesivos à soberania e à dignidade dos espoliados. As sim ao menos foi decantado na campanha e na escolha dos auxiliares diretos. Hoje, já podemos sentir algo mais em nossa pátria.
No seio da fé, ainda estamos distantes da Páscoa. Contudo, acredito que é tempo ideal para chorar os dissabores, o orgulho e os desamores perante Deus. Tempo adequado para se refletir e viver a caminhada de Jesus. Descobrindo que o amor de Deus pode e deve ser exercitado e aprendido. Abraão caminhou em obediência até o local indicado para o sacrifício; Jesus permaneceu no deserto sem comer; Paulo foi auxiliado pelo seus perseguidores em Damasco. Líderes religiosos e civis são perseguidos e mortos, mas a causa da vida segue adiante. Assim o amor de Deus e a paixão de Cristo estão intimamente comprometidos com a dor e o anseio de libertacão da humanidade. Anseio este, como dom de Deus. A história de um é a prática do outro. Neste alvorecer da Quaresma, o amor de Deus manifesto na obediência de Cristo condena nossa omissão e o nosso descaso para com a vida que é vivida na família, na comunidade, na pátria e no mundo. Assim, a perícope proposta para esta época dentro de sua riqueza também quer corrigir nosso exercício de amor pessoal e comunitário. Um amor que Abraão não praticou para ele; um amor que Cristo não usou para fim próprio; um amor que Paulo semeou para todas as comunidades, universalizando a salvação gratuita de Deus. O ágape de Deus é a nossa grande liberdade. Liberdade sem fronteira, sem dominação e sem poder de nos afastar de Deus.
Após esta reflexão convido para a formulação de um ato cúltico, nos seguintes teores. Isto como sugestão:
a) Transformar este texto em confissão de culpa. Citando os mesmos poderes e atualizando outros que são imediatos em nossa vida. Ex.: Senhor, confessamos-te que o poder da angústia; o medo da perseguição; o poder das promessas eleitorais calaram o teu amor em nós. Confessamos-te que temos medo dos pobres, dos doentes, dos marginalizados e, assim, omitimo-nos em auxiliá-los… etc.
b) Copiar a perícope em forma de oração e distribuí-la para ser orada como confissão de fé. Ex.: Creio que nada nos separará do amor de Cristo. Nem tribulação, nem angústia ou perseguição. Creio que por amor de ti somos entregues. Creio que por amor de ti Gandhi, Mandela, igrejas, líderes, movimentos religiosos e populares são entregues o dia todo, não como sacrifício pessoal ou promocional. Recuperar e ampliar a linha histórica da salvação contida no v. 36. Com a inclusão de movimentos e pessoas que lutam por vida digna nos dias de hoje.
c) A reflexão da Quaresma pode ser preparada assim: o/a encarregado/a do culto providencia juntamente com interessados material concernente ao nosso viver e os poderes que o cercam. Por exemplo: textos, cartazes, encenações que falam sobre Seicho-no-iê, morte, pena de morte, acidente, doença, novela, trabalho, pobreza, governo, esporte, contribuição para a Igreja, saúde, loteria, dinheiro, impunidade, música, perseguição, assassinato, sequestro, corrupção, educação e outros acontecimentos palpitantes e de interesse da coletividade. Ou ainda os que estão escritos na perícope. Cada peça destas pode ser intercalada com uma estrofe de um hino.
d) Dividir os itens em bloco e, aí, contracenar cada bloco com o texto proposto, desta perícope de Rm 8.35-39. Lembrando a ação do amor de Deus em Abraão, profetas, João Batista, Cristo, Paulo, Luther King, inocentes mortos e perseguidos por regimes políticos, econômicos opressores. Poder-se-ia inclusive incluir os desgarrados econômicos das comunidades. Nada nos poderá separar do amor de Deus.
e) Oração final: orar com a comunidade, ou com um grupo, o hino 97 (1-4) de HPD, Salmos hoje ou ainda algum poema deste século que abarque parte ou o todo desta problemática que envolve o poder do caos e a superioridade do amor de Deus. Amém.
4. Bibliografia
Mesters, C. Uma entrevista com o Apóstolo Paulo. In: CEBI n° l, Petrópolis, 1988.
Denker, J. PL, vol. XI. São Leopoldo, 1985.
Cerfaux, L. Cristo na teologia de S. Paulo. Edições Paulinas, S. P., 1977.
Goppelt, L. Teologia do Novo Testamento. Vozes/Sinodal, vol. II, 1982.
Michel, O. Der Brief an die Rõmer, Göttingen, 1966.