Amor que não abandona
Proclamar Libertação – Volume: 46
Prédica: Romanos 8.31-39
Leituras: Isaías 25.1,8-9 e João 11.1-5, 17-21
Autoria: Daniel Kreidlow
Data Litúrgica: Dia de Finados
Data da Pregação: 02/11/2022
1. Introdução
Na religiosidade cristã popular brasileira, o Dia de Finados é vivenciado como um feriado dedicado à lembrança, orações e homenagens às pessoas que já faleceram. Nós, pessoas cristãs luteranas, colocamos a ênfase desse dia no rememorar e na mensagem da ressurreição.
Para a reflexão deste Dia de Finados somos confrontados com os textos bíblicos de Romanos 8.31-39, Isaías 25.1,8-9 e João 11.1-5,17-21.
No texto de Isaías 25.1,8-9 lemos sobre uma realidade nova e uma mudança radical da nossa experiência de vida. Isso é possível não por nossas próprias capacidades, pelo contrário, é realidade instaurada por Deus. Por isso não precisamos permanecer abatidos e tristes. Pelo contrário, na sua salvação exultaremos e alegraremos (v. 9b).
O texto de João 11.1-5,17-21 relata-nos sobre a morte de Lázaro. Ao pensar nele, é quase impossível não relembrarmos de sua ressurreição. Mas aqui o texto está delimitado de tal forma que o foco permanece na realidade do adoecimento e da finitude da vida.
Os dois textos de apoio para a mensagem retratam a vida delimitada e passageira que nós como seres humanos experimentamos. Essa realidade e a promessa de uma nova existência inaugurada por Deus, como ouvimos de Isaías, são as pontes temáticas com o nosso texto da prédica.
2. Exegese
Agora queremos observar detalhes referentes ao nosso texto de Romanos 8.31-39.
V. 31 – Paulo conclui o até agora escrito e declara: Deus é por “nós”. Aqui o “nós” inclui os destinados, chamados e justificados. Fazendo uso da forma literária diatribe (diálogo, conversação), Paulo anuncia sua mensagem servindo-se de perguntas e respostas. A pergunta retórica: Se Deus é por nós, quem será contra nós? retrata Deus como o ser decisivo. Deus é mais poderoso do que todos os outros seres e poderes, e seu partidarismo por aqueles “justificados” elimina qualquer acusação contra eles (v. 34).
V. 32 – Deus aparece como aquele que se doa e defende as pessoas. Ele dá a elas o seu próprio Filho como a coisa mais preciosa. E isso não de qualquer forma nem como um presente comum, mas por meio do não poupar sua vida e na entrega dele na cruz. Romanos 8.32 assemelha-se a Gênesis 22.12,16, onde Deus afirma a Abraão frente ao sacrifício de Isaque: não me negaste teu único filho. Contudo, não é certo até que ponto essa formulação se encontra como pano de fundo do nosso versículo. Da doação do mais valioso Paulo conclui que Deus também não poupará nada que seja menos valioso e dará todas (ta panta) as coisas aos justificados. Portanto Jesus Cristo não é o único presente, tudo o mais também será dado com ele. Mas o que se entende por “tudo”? Em sentido amplo, ta panta pode incluir o mundo em que as pessoas se movem e o mundo além, pode estar relacionado com o mundo terreno ou apenas com a justificação e a glória seguinte na vida eterna. Paulo não deixa isso explícito.
V. 33 – O verbo “trazer acusação” (enkaleō) demonstra que Paulo está pensando em um julgamento, numa audiência, onde pessoas são intimadas frente a outras. Aqui Deus é o que elegeu e separou para si e, acima de tudo, é o juiz que justifica. Paulo continua fazendo uso da retórica e pergunta: quem intentará acusação?. A pergunta pode, por um lado, testemunhar a improbabilidade de um ser aparecer como acusador das pessoas cristãs em face do poder de julgamento e defesa de Deus. Por outro lado, também pode significar que o ser que ousa fazer a acusação não tem chance contra o poder de Deus de trazer sua acusação com sucesso.
V. 34 – Se Deus é defensor e juiz misericordioso, quem é aquele que condena? Paulo aponta para Cristo. No entanto, não fica claro se é Jesus aquele que condena ou se ele aparece aqui como resposta a uma pergunta retórica, mostrando ser ele quem não condena. A falta de clareza surge devido à falta de sinais de pontuação do texto. Se alguém ignora os detalhes sobre a vida e mensagem evangélica sobre Jesus Cristo, pode entender Jesus Cristo como aquele que condena. No entanto, as especificações sugerem a afirmação oposta: Cristo Jesus está morto e morreu pelos pecados dos seres humanos. Mais do que isso, ele é aquele que ressuscitou dos mortos. Como Ressuscitado, ele se senta à destra de Deus e aparece como que um assessor do juiz gracioso, sendo por “nós” por meio da sua intercessão. Jesus não é o que condena.
V. 35 – Apontar para o “amor de Cristo” também fala contra o fato de que Jesus Cristo poderia condenar; pelo contrário, ele ama! Nesse versículo Paulo continua com perguntas retóricas. Ele aponta para a pergunta existencial sobre a possibilidade ou não de que alguém ou algo possa separar as pessoas cristãs do amor de Deus e, assim, colocá-las em perigo de condenação. Essas possíveis realidades ameaçadoras Paulo enumera em sequência e relata as necessidades da vida terrena que ele experimentou em primeira mão durante as suas viagens missionárias (cf. 2Co 11.23-28).
Os termos “nudez” (gymnotēs) e “espada” (machaira) não são claros. Assim como gymnotēs pode significar nudez física, também é um termo para a falta de proteção devido a roupas e equipamentos inadequados, mas também devido a condições de vida geralmente instáveis e inseguras. O termo machaira pode ser entendido como um perigo das armas. A machaira não aparece na lista de perigos descrita em 2 Coríntios 11.23-28, mas isso não significa que Paulo não foi ameaçado com uma arma. Afinal, ele escreve de si mesmo que foi espancado com açoites e castigado com apedrejamento.
Como todos esses perigos podem separar a pessoa crente do amor de Deus? A melhor coisa a lembrar é que os perigos afetam o relacionamento da pessoa cristã com Deus por levar a dúvida da existência ou assistência dele em tempos de necessidade. Sem fé e pela falta de relacionamento com Deus, a pessoa cristã teria arriscado a participação na salvação e seria exposta a julgamento divino. Mas se as necessidades mencionadas podem separar a pessoa cristã do amor de Cristo, não podemos deduzir baseados no v. 35. Somente os v. 37-39 trazem a resolução para essa pergunta.
V. 36 – Aqui Paulo menciona o sofrimento escatológico já previsto na Bíblia Hebraica ao fazer uma citação literal de Salmo 44.22. Esse trecho do salmo foi interpretado na literatura rabínica como uma menção aos mártires macabeus. A inserção dele aqui quer mostrar que o sofrimento pode ser consequência de vivenciar e testemunhar a fé. As pessoas cristãs podem sofrer “o dia todo”, ou seja, incessantemente. A implacabilidade não afeta apenas um dia particular de juízo, mas se estende por todos os dias da vida cristã.
V. 37 – Diante dessas adversidades, as pessoas cristãs são “vitoriosas” na medida em que não são separadas do amor de Deus. O verbo hypernikaō significa “ser extremamente vitorioso”, sublinhando assim o aspecto triunfante da vitória. Embora a vitória já esteja presente, pode-se presumir que a conclusão da vitória com a justificação final e a entrada na vida eterna ainda estão pendentes.
A vitória não pode ser atribuída aos próprios esforços das pessoas cristãs, pois ela não pode ser experimentada sem aquele “que nos amou”. “Aquele que nos amou” certamente é Jesus Cristo. Esse amor aconteceu no passado e está relacionado com a morte vicária de Cristo na cruz, que perdoa o pecado e é base da justificação e vida eterna.
V. 38, 39 – Aqui Paulo deixa claro que nada pode separar as pessoas cristãs do amor de Cristo. Para sublinhar essa impossibilidade, ele enumera os poderes e seres que não conseguem efetuar essa separação. A lista é dividida em quatro pares, sendo que os dois membros do par sempre se complementam e formam um todo. Assim, fica evidente que o amor de Cristo não pode ser limitado de forma alguma e dele a pessoa cristã não pode ser separada, seja pela “morte – vida”, “anjos – principados”, “presente – futuro”, “poderes”, “altura – profundidade” ou “outra criatura”.
Por fim, Paulo fala do “amor de Deus” em vez do “amor de Cristo”. No entanto, a adição “em Cristo Jesus” mostra que o amor de Deus não pode ser separado de Jesus Cristo. O amor de Deus é demonstrado no fato de que ele deu seu Filho unigênito por nós (v. 32).
3. Impulsos para a mensagem
Deus é por nós – esse é o centro da mensagem. Toda a pregação do apóstolo se resume nessa boa notícia. A reflexão que Paulo faz não é se Deus existe ou não. Sua afirmação é categórica: Deus está a nosso favor e ao mesmo tempo conosco. Ouvir no tempo de Finados essa mensagem de fé é confortador, tendo em vista as pessoas queridas que rememoramos neste dia, e, por outro lado, desafiador, não querendo deixar-nos esmorecer e abater diante dos sinais de morte do nosso mundo. Saber que Deus é por nós quer encorajar-nos a erguer nossas cabeças diante das dificuldades, fortalecendo nosso ânimo para lutar pela vida.
Deus é por nós. Nada tem mais importância do que isso.
Para Paulo não há outra maneira de falar sobre Deus. Isso só é possível a partir deste saber: Deus é por nós! Não há outra maneira de falar sobre o início e o fim da nossa vida pessoal, sobre nossa concepção e nascimento e sobre nosso processo de morrer e a morte como acontecimento, que está logo aí à nossa frente. Tudo isso é determinado por este Deus que é por nós. Deus era por nós ontem, é por nós hoje e será por nós no futuro.
Mas como podemos afirmar isso convictamente, tendo vista a situação do nosso mundo? Percebemos suas dores, suas doenças, sua crescente miséria. Vemos seus gemidos, suas próprias catástrofes, que não podem ser interrompidas quando todos esperam que alguém faça algo, enquanto quase ninguém se desacomoda para lutar por um mundo melhor, enquanto quase ninguém mais consegue ser empático e praticar a misericórdia. Percebemos o morrer e a morte do outro/da outra sem nos sentir realmente tocados e sem ter a com-paixão que atua pela promoção da vida.
Nossa experiência neste mundo parece ser a de que Deus está ausente ou que ele é indiferente frente à morte e seus sinais. Nosso mundo parece abandonado à sua própria sorte. De qualquer forma, nós vivemos neste mundo longe de correspondermos ou sermos fiéis no amor e na justiça, características do Deus que é por nós. Os sinais de morte que lançamos no mundo são prova da nossa falta de amor e da injustiça perante as pessoas e a criação. Como Deus pode ser por nós, se nós vivemos envoltos e envolvemos outros e outras com nossos sinais de morte? Ele não deveria ser, acima de tudo, contra nós?
Paulo direciona nosso olhar para a cruz de Cristo. Aquele que ali está pendurado é um ser humano. O crucificado morre em meio à sua angústia e suplica: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? Nessa morte na cruz, a humanidade vivencia as consequências do seu desejo por uma vida independente de Deus. Na cruz, o ser humano aparece realmente abandonado por Deus.
Deus permitiu que esse abandono atingisse precisamente aquela pessoa na qual ele veio ao mundo, na qual ele se aproximou de nós e em quem nós, humanos, vemos o rosto revelado de Deus em nosso meio. Deus não poupa seu Filho na cruz, e com isso, por todos nós o entregou […] (Rm 8.32).
Nosso abandonar a Deus leva Deus ao Crucificado, leva Deus ao esvaziamento e abandono de si mesmo. E nesse abandono, num estar “contra”, ele é por nós. Em sua própria doação, naquele que Deus deu por nós, Deus é conosco e a nosso favor. Deus, diante de quem não podemos ser/fazer justiça, se faz justiça por nós. Quem não poupou o próprio Filho, mas o deu por todos nós, como não nos dará tudo nele? Tudo! Não sobra nada contra nós. Nada! Nem mesmo a morte.
Deus é por nós. Essa é a história e o resumo da vida de Cristo Jesus. Ele é chamado de Emanuel na história do Natal e é o Crucificado-Ressuscitado na história da Páscoa. Ouvimos do Deus que está conosco e é por nós quando ouvimos a história de Jesus: quando ele abençoou os pobres e lhes prometeu o reino dos céus, quando consolou os que sofriam, quando deu vista aos cegos, quando não condenou a mulher adúltera que seria apedrejada, quando anunciou o evangelho aos desprovidos, quando orou por aqueles que o crucificariam e pediu perdão divino por nós seres humanos.
Deus é por nós, pois ele é puro amor. E esse amor está encarnado no Cristo vivo. Por amor ele se fez fraco e Deus colocou-se contra si mesmo. Logo, exatamente onde ele estava tão fraco por causa do seu amor, seu amor foi mais forte do que a morte. Poderoso sobre a morte. Assim sendo, seu amor é o poder que mudou o mundo e o torna nova realidade. Seu amor está no agir em prol da vida, no agir motivado pela fé a partir do Crucificado-Ressuscitado. Seu amor é um “sim” para o nosso futuro. Nada pode nos separar de seu amor, diz o apóstolo. Nenhum poder no mundo possui essa capacidade. Os poderes e sinais de morte do nosso mundo só têm força o suficiente para nos ameaçar. Eles podem nos assustar no presente e assombrar um futuro seguro. Morte e vida, anjos e principados, presente e futuro, altura e profundidade, Paulo nomeia toda a extensão do nosso mundo, que se estende em dimensões materiais, cósmicas, mentais ou espirituais. Mas nenhum desses poderes pode nos separar do amor de Deus. Seu amor é mais alto que as alturas e mais profundo que as profundezas de nosso mundo, vem de sua eternidade e se estende por sua eternidade, abrange nossas origens e o nosso futuro.
Estou bem certo, diz o apóstolo. Ter certeza? A partir de nós mesmos, de forma alguma. Manter e viver da fé em dias tão conturbados nos coloca um desafio: perguntas nos perseguem e assediam. Dúvida: Deus está realmente lá para nós? Jesus realmente ressuscitou dos mortos? O amor de Deus por nosso mundo é realmente mais poderoso do que as forças de destruição? Por que não notamos nada disso e por que nosso mundo ameaça perecer por si mesmo? E quando se trata de minha morte, estou realmente certo do amor de Deus, que não me deixará extinguir e me chamará para a vida?
Não, por minhas próprias forças, entendimento e convicções não há certezas. Talvez quanto mais experimentamos e vivenciamos, menos seguros ficamos de nossas “certezas”. No humano não há certeza. Por isso devemos nos refugiar com o nosso pequeno eu e com nossas perguntas e dúvidas e apegar-nos ao “Eu” da grande declaração de amor de Deus pelo nosso mundo: Eu sou a ressurreição e a vida (Jo 11.25). Neste “Eu” amoroso está o Deus vivo, Cristo Jesus, ressurreição e vida. Sobre todas as coisas: Ele é por nós!
Que ao visitarmos nossos cemitérios e rememorarmos nossos queridos que nos antecederam na morte possamos lembrar e confessar isso.
Bibliografia
SCHMITHALS, Walter. Die theologische Anthropologie des Paulus. Auslegung von Röm 7,17- 8,39 . Stuttgart: Kohlhammer Taschenbücher, 1980.
WISCHMEYER, Oda. Beobachtungen zur Gedankenwelt von Römer 8,31-39. In: SCHNELLE, U. [ed.]. The Letter to the Romans. Leuven, 2009. p. 799-809.(BETL, 226).
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).