Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Romanos 9.1-5
Leituras: Isaías 55.1-5 e Mateus 14.13-21
Autora: Ana Isa dos Reis
Data Litúrgica: 7º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 31/07/2011
1. Introdução
O presente conjunto de textos está dentro do chamado Tempo Comum, que se estende do fim do ciclo pascal (terminado no domingo de Pentecostes) até o início do Advento, somando 28 a 30 semanas. Esse tempo após Pentecostes, diz James White, “sinaliza o longo ínterim da igreja da nova aliança até a vinda de Cristo em glória”. Os textos bíblicos lembram a continuação das obras salvíficas de Deus e chamam as pessoas a ser seguidoras de Jesus Cristo através de suas palavras e ações.
No texto de Isaías, o Senhor estende gratuitamente o necessário a todas as pessoas, convidando que elas venham, comprem e comam, investindo naquilo que é essencial. O texto do Evangelho de Mateus mostra Jesus preocupado com as pessoas, com a integralidade delas, que recebem o alimento espiritual através de suas palavras e curas, mas que também precisam do alimento material, afim de manter sua saúde. Os textos de Isaías e Mateus abordam a temática do alimento, do oferecimento gratuito desse alimento e dos desafios que essa graça traz.
Tecendo algo em comum entre esses dois textos e a perícope de Romanos, poderíamos dizer que Romanos pergunta quem é esse que alimenta o povo e preocupa-se para que todos tenham acesso, gratuito, à vida abundante. O texto de Romanos fala que esse é o Cristo em que muitos, no entanto, não creram. E dentre as razões para tal está a frustração por esse homem não ser bem assim como as expectativas pintavam e diziam.
2. Exegese
2.1 – Fonte
O apóstolo Paulo foi quem escreveu a Carta aos Romanos, provavelmente entre os anos 55 e 59. Há pesquisadores que afirmam que teria sido escrita no inverno do ano de 57. Paulo nunca esteve na comunidade de Roma, mas desejava muito visitá-la (Rm 1.10).
2.2 – Estrutura da Epístola aos Romanos e da perícope
* Rm 1.1-17 – Introdução
* Rm 1.18-11.36 – Desenvolvimento do tema principal “justiça de Deus”
1.18-3.20 – A ira de Deus por causa da injustiça humana
3.21-5.21 – Deus atribui sua justiça ao ser humano
6.1-8.39 – Consequências do evangelho para a vida da pessoa
9.1-11.36 – Consequências do evangelho para a relação com Israel
a) A preocupação de Paulo com seu povo: 9.1-5
b) O chamado de Deus: 9.6-29
c) A palavra da fé: 9.30-10.21
d) A fidelidade de Deus para com seu povo: 11.1-32
e) Aclamação: 11.33-36
* Rm 12.1-15.13 – Consequências do evangelho para a vida prática da comunidade cristã/parênese
*Rm 15.14-16.27 – Conclusão
2.3 – Observações exegéticas acerca dos versículos da perícope
V. 1-3 – Paulo demonstra sua grande tristeza e a situação de seus compatriotas. Para assegurar a verdade do que escreve, demonstrando sua sinceridade, Paulo chega praticamente a fazer um juramento solene. Nesse testemunho, Paulo deixa claro o quanto se importa com seu povo de origem, os judeus, e qual o tamanho de sua dor por esses não crerem em Jesus como o Messias, o Salvador, Filho de Javé. O termo original grego ǎδιάλειπτος ơδύνη τη καρδία μου indica alguma dor profunda e consumidora. Tais são a angústia e a dor de Paulo, que ele, se pudesse e se resolvesse a questão e seus irmãos judeus cressem em Jesus, desejaria ser anátema, ou seja, separado. O v. 3 tem provocado muitos debates entre os estudiosos, especialmente porque consideram irracional que uma pessoa como Paulo realmente pudesse desejar ser separado, excluído, anátema.
V. 4-5a – A incredulidade dos judeus assombra Paulo. Ele também foi um perseguidor dos cristãos; contudo, desde que Jesus veio a seu encontro, Paulo experimentou uma mudança radical em sua vida. Essa experiência com Jesus, o Cristo, Paulo passou a testemunhar entre gentios e judeus. Especialmente entre seu povo Paulo encontra maior resistência contra a fé cristã. Paulo elenca oito particularidades, declarando as diferenciações entre Israel e as demais nações. Todas essas características dos israelitas, descendentes de Abraão, herdeiros do pacto feito entre Deus e Israel, estão descritas com o verbo no tempo presente, destacando que o povo de Israel continua sendo alvo da herança e do amor de Deus:
adoção: em Êxodo 4.22, Deuteronômio 7.6 e em outras passagens do Antigo Testamento, lemos que Deus adota o povo israelita como seus filhos e, justamente por isso, recebem os privilégios, as bênçãos que somente os filhos de Deus podem receber;
glória: trata-se da presença simbólica e visível de Deus sempre ao lado de seus filhos (Êx 16.10; 40.34);
alianças: o termo no plural significa os diversos pactos estabelecidos por Deus com os israelitas: Noé, Abraão, Moisés no Sinai, Davi;
legislação: refere-se às tábuas da lei, ou seja, os mandamentos;
culto: significam os diferentes ritos, cerimônias, sacrifícios e ordenanças religiosas que o povo prestou a Deus, rendendo-lhe culto e louvor;
promessas: provavelmente indicam as promessas esboçadas nos vários pactos feitos com Israel e também a promessa messiânica;
patriarcas: através desses antepassados dos israelitas, Deus fundamenta a história salvífica com seu povo. Estudiosos dizem que o termo usado por Paulo
poderia designar não só os antepassados antigos, como Abraão, Isaque e Jacó, mas também incluiria outros famosos líderes de Israel, a exemplo de Moisés e Davi;
o próprio Cristo: além de todos os argumentos anteriores, Paulo ressalta que o próprio Cristo, Jesus, é descendente do povo judeu. O termo segundo a carne faria alusão ao nascimento e à natureza humana de Jesus Cristo, descendente, inclusive, da linhagem davídica.
V. 5b – Em volta das palavras Deus bendito para todo o sempre têm surgido muitas controvérsias. A questão está em como pontuar essa parte do versículo,
visto que os manuscritos originais não incluíam sinais de acentuação. Assim, a controvérsia está a quem se dirige e se refere a doxologia: se a Deus ou a Cristo. Champlin baseia-se na interpretação de muitos estudiosos sobre os pais da igreja, que teriam sido unânimes em afirmar que a doxologia desse versículo se dirige à divindade de Cristo.
3. Meditação
Apesar de ser o povo escolhido por Deus, Israel não consegue crer na revelação de Deus em Jesus Cristo, tampouco aceitar que Jesus de Nazaré seja o Messias, aquele que viria libertar o povo. Auscultando o povo israelita, percebemos que a imagem que faziam do Messias pouco ou nada coincidia com sua expectativa messiânica. Diante do domínio romano, o povo esperava um líder militar, armado, forte e organizado, que libertasse o povo da dependência estrangeira. Em âmbito político, esperava um rei articulador, ousado, formador de um novo sistema governamental. Na esfera econômica, ao invés de um Messias que convidava à partilha, fazendo dela o milagre da multiplicação, esperava um rei rico ou, pelo menos, com recursos o suficiente para reorganizar o povo, privilegiando, certamente, a elite econômica, religiosa e política da época. Jesus, ao contrário das expectativas messiânicas de seu povo, frustra os israelitas: nasce humilde, cresce em ambiente pouco favorável, coloca-se ao lado dos injustiçados e excluídos, preocupa-se com a integralidade do ser humano, devolvendo sua dignidade e reintegrando-o a seu ambiente familiar, social e religioso. Ao invés de aplaudir a elite dominante, Jesus a repreende, exalta os humildes e mansos, ensina que a verdadeira obediência a Deus parte de um coração amoroso e envolvido com a causa de seu reino. Ao invés de carros e armas de guerra, Jesus se reveste de amor, de solidariedade, de mansidão. Quem poderia amar alguém assim tão ‘subversivo’? Para uma grande parte do povo israelita, Jesus nada tinha a ver com a imagem e a postura do Messias sonhado. A resposta a essa frustração vem em sua incredulidade. Apesar das iniciativas de Paulo, de sua preocupação com seu povo, a quem amava, ele via suas tentativas se esvaírem e o povo endurecer o coração, fechar os olhos para a encarnação do Verbo. Mesmo tendo podido conviver com o próprio Jesus, grande parte do povo escolhido por Deus limitou-se a ignorá-lo como o Messias esperado, crucificando-o e perseguindo muitos de seus seguidores.
Olhando para nossa vida, quantas vezes não nos assemelhamos a esse povo israelita? A partir de Jesus, as bênçãos de Deus estenderam-se a todas as nações. Não há mais privilegiados, tampouco excluídos. Deus quer alcançar todas as pessoas através de seu amor, especialmente revelado em Jesus de Nazaré. No entanto, quantas vezes rejeitamos esse amor? A partir de nosso Batismo, Deus comprometeu-se publicamente a estar ao nosso lado, e nós, inicialmente através de nossos pais e padrinhos, posteriormente confirmado em nossa confirmação e a cada dia, comprometemo-nos a ser discípulos no dia-a-dia de nossa vida. Porém quantas vezes esquecemos esse compromisso? E quantas vezes também duvidamos de Deus? Quantas vezes nossos preconceitos e nossas expectativas são maiores do que o amor de Deus? Quantas vezes esperamos que as coisas se realizem do nosso jeito, não aceitando nenhuma vírgula diferente? Muitas vezes, nosso relacionamento com Cristo é distante e vazio. Em nossas comunidades, muitas vezes pintamos Cristo de um jeito e nem nos perguntamos se esse jeito coincide com o que nos diz o evangelho. Quantas vezes rejeitamos pessoas, excluímos outras, prendemo-nos a uma única forma de celebrar, às vezes já desprovida de sentido profundo, constituindo-se muito mais em um rito vazio do que em um encontro verdadeiro e que provoque atitudes concretas de amor e solidariedade. Muitas vezes, queremos receber essa ou aquela bênção de Deus, mas rejeitamos tão logo ela venha embrulhada diferente de nossa expectativa. Quantas vezes nosso relacionamento com Deus se resume a elencar um sem-número de virtudes e boas ações nossas, achando-nos merecedores da recompensa divina, esquecendo que somos tão simultaneamente justos e pecadores. O texto será pregado na estação do inverno, que, no sul, traz consequências para a vida das pessoas e muda radicalmente a paisagem. Muitas vezes, nosso relacionamento com Cristo está tão frio quanto o inverno. Somos portadores da adoção de Deus desde nosso Batismo, da glória, das alianças, da legislação, do culto, das promessas, dos patriarcas e do Messias, e, no entanto, nada disso nos aproxima realmente de Jesus, nada cria um relacionamento verdadeiro e profundo. Igualmente se pensarmos em nosso relacionamento como membros nas comunidades. Quantas vezes nosso relacionamento é frio com as outras pessoas que participam de nossa igreja, quantas vezes nosso coração é frio quando somos chamados a ofertar com alegria e gratidão.
Apesar de toda a incredulidade, as promessas feitas por Deus a Israel não se apagaram. O povo israelita continua sendo alvo do amor de Deus. Assim também para conosco: apesar de nossa incredulidade e infidelidade, Deus continua querendo nos alcançar com sua graça, seu amor, seu perdão, sua misericórdia.
Que o Espírito Santo nos ajude a enxergar além de nossas expectativas (às vezes cheias de preconceitos) e ver a graça de Deus que se revela diariamente em nossa vida sob tantas formas diferentes. E que, assim, em gratidão e alegria, nos envolvamos com o reino de Deus, sendo testemunhas como Paulo foi, partilhando como Jesus ensinou e vivendo como discípulos fiéis.
4. Imagens para a prédica
Gosto da dinâmica que muda a embalagem, o rótulo de algo bem conheci- do, colocando dentro desse rótulo outro produto. Por exemplo: o rótulo rosa com a estampa do casal dançando logo nos lembra do chocolate “Sonho de Valsa”. Você poderia trocar o chocolate, que é preto, colocando dentro do rótulo um chocolate branco ou mesmo um biscoito. Também poderia se valer de um belo embrulho em que, dentro dele, tivesse algo sem muito valor, a exemplo de uma caixa de fósforos vazia ou de um papel de bala ou de uma pedra brita. E poderia ter outra caixa de presente bem simples, sem muitas fitas, com um papel bonito, mas simples. E dentro dessa caixa colocar algo de muito valor, inclusive de desejo do povo de seu lugar: ouro, diamante, pedras preciosas, a Bíblia, a manjedoura com Jesus…
Essa dinâmica nos convida a refletir sobre as nossas impressões e nossos julgamentos prévios. Nem sempre embalagens lindas guardam tesouros. Muitos tesouros são guardados em simples embalagens. Jesus não veio “embrulhado” como a grande maioria do povo esperava. Para muitos, essa “embalagem diferente” foi pedra de tropeço para a fé em Jesus como o Messias e Salvador. Também para nós, que, muitas vezes, julgamos a partir de aparências ou estamos separados de um relacionamento verdadeiro com Jesus, não conseguimos aceitar as revelações de Deus que fogem às nossas expectativas, frustrando-nos quando as coisas acontecem diferentes do que sonhamos e acreditamos ser a única forma possível e real.
5. Subsídios litúrgicos
Recepção:
Uma equipe pode estar à porta recebendo as pessoas que chegam para a celebração. Caso optar pela dinâmica do bombom e desejar que todos o recebam, esse poderia ser entregue nesse momento, convidando, no entanto, para que a pessoa não o abra, mas espere para o momento da reflexão.
Confissão de pecados:
(Que se tenha um momento de silêncio para confissão individual, e depois o/a liturgo/a dirige a confissão comunitária.)
L: Bondoso Deus, confessamos que somos pessoas pecadoras e que carecemos do teu perdão. Confessamos que criamos expectativas em relação a ti
e às outras pessoas e acabamos nos frustrando profundamente quando as coisas não acontecem como esperamos. Perdoa-nos quando te embrulhamos do nosso jeito e não aceitamos que sejas diferente. Perdoa-nos quando colocamos outras coisas acima de ti, Senhor, e da tua revelação humilde, mas cheia de graça e misericórdia. Perdoa-nos, Senhor, quando não somos fieis discípulos e nem nos preocupamos em ser tuas testemunhas, que falam e vivem a partir do teu amor e da tua graça. Tu nos conheces, Senhor, e sabes tudo o que pesa em nós. Livra-nos de nossos pecados. Por Jesus Cristo, o Messias, nosso Salvador. Amém.
Anúncio da graça:
L: Antes de tudo e de todos está o amor de Deus. O Deus amoroso ouve nossa confissão sincera, perdoa nossos pecados e chama para andar em novidade
de vida. Por Jesus Cristo. Amém.
Oração do dia:
Misericordioso Deus, agradecemos-te por te revelares em Jesus Cristo e estenderes tuas promessas a todos os povos, também para nós. Ajuda-nos, Senhor, a te reconhecer apesar de nossas expectativas e aumenta em nós a fé, afim de não ser incrédulos. Sopra teu Espírito Santo e faze-nos fiéis testemunhas da tua graça e misericórdia. Por Jesus Cristo, o Messias, nosso Salvador. Amém.
Bibliografia
CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Milenium, 1986.
LÜCKEMEYER, Valdemar. Meditação sobre Romanos 9.1-5, 31.10-4. In: Proclamar Libertação. V. 13. São Leopoldo, 1987.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).