Este é meu corpo, este é meu sangue – dado e derramado por ti!
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Salmo 116.1-2,12-19
Leituras: Marcos 14.12-26 e Apocalipse 19.6-10
Autoria: Klaus A. Stange
Data Litúrgica: Quinta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 29/03/2018
1. Introdução
Culto de Quinta-Feira da Paixão: somos lembrados que no crepúsculo desse dia Jesus se reuniu com seus discípulos e instituiu a Santa Ceia. Nessa noite, Jesus come e bebe com seus discípulos e, na medida em que reparte o pão e distribui o fruto da videira, aponta para a sua vida que será entregue e derramada numa cruz. Não somente os discípulos, mas também nós somos convidados a nos envolver com Jesus, a participar da sua ceia, a comungar com ele e uns com os outros, a lembrar que o evento da paixão foi realizado por nós.
O culto de Quinta-Feira da Paixão conecta com o texto da instituição da Santa Ceia. Por isso foi sugerido para esse domingo o texto do Evangelho de Marcos 14.12-26 como texto de leitura bíblica, que narra a instituição da Santa Ceia. Semelhantemente, o texto de Apocalipse 19.6-10 é uma doxologia que convida a comunidade cristã ao louvor e à adoração, porque se aproxima o dia em que o “Cordeiro”, Jesus Cristo, celebrará a ceia defi nitiva com sua igreja. O texto convida a comunidade a crer e esperar, a viver na expectativa do grande dia do “casamento do Cordeiro”, ou seja, o dia em que a igreja de Jesus Cristo haverá de celebrar de forma plena a comunhão com ele. Pessoalmente, percebo como muito significativo que a consumação da história é descrita na Bíblia através da metáfora de uma grande festa de casamento.
2. Exegese
a) Primeiras impressões
Lendo o Salmo 116, percebe-se que o salmista expressa seu amor, louvor e gratidão a Deus porque ele se inclinou para o salmista, ouviu o seu clamor e o livrou da morte. A menção de um cálice da salvação imediatamente traz à memória o cálice da ceia de Jesus com seus discípulos, o cálice da nova aliança, do qual nós bebemos quando celebramos a Ceia do Senhor.
O texto também fala de votos a serem cumpridos de forma pública. Pergunto-me como entender esses votos: como uma ação / obra humana ou como uma resposta do ser humano à intervenção salvadora de Deus?
Também o v. 15 causa estranheza na primeira leitura. Como pode a morte dos fiéis ser vista como algo precioso para Deus? (Assim traduz a Bíblia de Jerusalém). Seria o versículo uma referência à ressurreição? A Bíblia na Nova Versão Internacional procura amenizar esse estranhamento e traduz como: O Senhor vê com pesar a morte de seus fiéis.
b) Estrutura, contexto histórico e gênero literário
A estrutura do Salmo me parece ser bem evidente:
v. 1-2: Abertura do Salmo na forma de uma declaração de amor a Deus, pelo fato dele ter inclinado o seu ouvido e atendido a súplica do salmista.
v. 3-4: O salmista olha para trás e relata a calamidade pela qual passou e testemunha a salvação do Senhor.
v. 5-7: Insere um testemunho que pode ser o testemunho da comunidade (coletivo). Os atributos de Deus são louvados.
v. 8-9: Relato da graça e do livramento recebido e a promessa de andar diante do Senhor.
v. 10-11: Novamente um relato da calamidade e o testemunho da salvação do Senhor.
v. 12-15: Votos e promessas de cumprimento dos votos.
v. 16: Novo testemunho do livramento e da salvação do Senhor.
v. 17-19: Novo voto e promessa de cumprimento.
O Salmo encontra paralelos expressivos (estrutura e conteúdo) no Salmo 30.
Os Salmos podem ser classificados, de maneira geral, em: a) súplicas ou agradecimentos individuais do salvo; b) súplicas ou agradecimentos coletivos; c) hinos festivos de diversas festas públicas; d) poemas espirituais, de ensinamento, meditação. No nosso caso, a perícope em estudo se classifi ca como um agradecimento individual. A oração é intensamente pessoal, no entanto, o louvor e a gratidão do salmista serão manifestados de forma ritual e comunitária. Assim, o Salmo mistura elementos individuais e pessoais com elementos comunitários e coletivos.
Não é mais possível situar com precisão o contexto histórico, o lugar vivencial original desse Salmo. Mas podemos perceber que o salmista recorda as desgraças que o afligiram e testemunha de forma vibrante como Deus o livrou. O salmista pediu por socorro e seu clamor foi ouvido. Agora ele traz a sua gratidão e o seu louvor a Deus, acompanhados de um rito litúrgico e cumprindo um voto que fez quando se encontrava em perigo. De que perigos ou desgraças foi libertado? O Salmo aponta para, pelo menos, quatro aspectos: um grave perigo de morte (v. 3,8), uma aflição interior (v. 3b,8b,10), uma situação de segregação social (v. 6,11,14) e a escravidão (v. 16). Não fica claro se o salmista vivenciou literalmente todas essas situações. Se esse for o caso, ele nos lembra a narrativa de Jó, que também vivenciou uma sequência de calamidades. Mas também é possível imaginar que os sofrimentos do salmista são metáforas usadas para descrever uma situação real de ameaça à vida. É possível que o salmista tenha experimentado o perigo da morte, pois ele fala de morte e abismo (v. 3), de morte e lágrimas (v. 8), de vida (v. 9) e de novo de morte (v. 15). A afl ção profunda (v. 3b) e a segregação social (v. 6) são elementos que, muitas vezes, acompanham a pessoa que vivencia o perigo de morte. A escravidão também é uma metáfora usada para falar da própria morte.
O salmista explicita seus sentimentos de forma muito intensa. Internamente ele estabelece uma conversa mental com sua própria alma, ou seja, consigo mesmo. Ele recorda o que passou, quais foram seus pensamentos e suas palavras quando experimentou o perigo da morte. Ele conversa consigo mesmo antes de propor algo.
c) Observações exegéticas
v. 1-2: O salmo abre com uma declaração de amor, uma declaração de afeto. Chama a atenção que o verbo se encontra na primeira pessoa do singular, denotando um sentido absoluto. Esse uso é raro no Antigo Testamento. O verbo aparece 10 vezes no Salmo 119, mas ali o objeto do amor é a lei. Também no Salmo 26.8 encontramos o verbo, mas o objeto do amor é a “casa onde o Senhor habita”. O Salmo 31 faz um convite para que “os leais” amem o Senhor. Finalmente, o Salmo 18 inicia com a expressão “amo o Senhor”, mas nesse salmo é usada uma palavra sinônima, portanto diferente do Salmo 116. Fora do saltério, o verbo ainda aparece no texto clássico de Deuteronômio 6.5 e 11.1 como um mandamento. Por isso o Salmo 116 se destaca, porque é a única ocasião em que o amor a Deus é expresso de uma forma singular, espontânea, como um agradecimento. Penso que esse versículo é chave para entendermos todo o salmo. Tudo o que é dito no salmo é envolvido por essa atmosfera do amor a Deus. É o amor que brota da gratidão. Paralelamente, no v. 10 o salmista expressa a sua fé, a sua confiança nesse mesmo Deus. É em Deus que ele confia, não em algum ser humano. Portanto o amor e a fé perfazem a postura do salmista e se dirigem a Deus. O salmista revela com suas palavras uma relação direta e de confiança para com seu Deus, cujo nome e atributos não se cansa de repetir.
v. 12: O salmista pergunta pela forma como pode retribuir a Deus o bem que recebeu. Quando ele faz a pergunta, já está reconhecendo sua gratidão e seu desejo de retribuir e, ao mesmo tempo, reconhecendo a impossibilidade de cumprir seu desejo. Deus não dá para que o ser humano lhe retribua; nem o ser humano tem que dar para que Deus lhe retribua. A ética ou a espiritualidade do do ut des falha em ambas as direções. O verbo “retribuir” significa devolver, restituir em espécie ou em dinheiro. No livro dos Salmos, o sujeito desse verbo normalmente é o próprio Deus (21 de 28 vezes). O ser humano não pode restituir a Deus. O que ele pode fazer é reconhecer o agir gracioso de Deus e expressar sua gratidão na forma de louvor ou de uma oferta.
v. 13-14: O salmista decide que expressará a sua gratidão na forma de um rito público, com invocação do nome do Senhor e cumprimento de votos. O rito consiste em elevar o cálice, invocando o nome de Deus. É o cálice da libação, do vinho aspergido ou derramado em honra a Deus. Mas também pode indicar o cálice da comunhão, que vai passando de mão em mão entre aqueles que participam do momento solene e festivo (Sl 23.5). Fazer votos em momentos de angústia era algo comum no Antigo Testamento (cf. Sl 66.13-14). Havia inclusive uma legislação que regulamentava o cumprimento dos votos (Lv 7.16-17; 22.17-25). Os textos de sabedoria previnem contra votos precipitados (Pv 20.25) e aconselham cautela na hora de fazer os votos (Ec 5.3-5).
v. 15: Conhecemos a expressão “custou o olho da cara”. Há quem diga que ela tenha se originado quando o conquistador espanhol Diego de Almagro perdeu um de seus olhos durante certo conflito em uma fortaleza inca. Após retornar à sua pátria, diante do imperador Carlos I, o espanhol teria soltado a máxima: “Defender os interesses da Coroa espanhola me custou um olho da cara”. Depois desse episódio, foi apenas uma questão de tempo para que a expressão se espalhasse entre o povo. A mesma lógica é usada pelo salmista. Nós conhecemos a instituição do “seguro de vida”, que paga uma soma de dinheiro em caso de morte. Quanto vale a morte, ou seja, quanto vale a vida de uma pessoa? O salmista testemunha que Deus fixou um preço muito alto pela sua vida. Deus é aquele que vende por um preço muito alto a vida de um fiel, faz pagar muito caro a sua morte.
Na legislação da aliança, encontramos um paralelo no seguinte caso: Trata–se de um boi que já costumava chifrar e nada foi feito. Se, todavia, o boi costumava chifrar, e o dono, ainda que alertado, não o manteve preso, e o boi matar um homem ou uma mulher, o boi será apedrejado e o dono também terá que ser morto. Caso, porém, lhe peçam um pagamento, poderá resgatar a sua vida pagando o que for exigido (Êx. 21.29-30). A lei não quantifica quanto deverá ser pago. O Salmo 49.7-9 dirá que a vida não pode ser comprada por dinheiro algum. No Salmo 72.1-14 o rei taxa muito alto a vida do pobre e do indigente. No Salmo 30.9 o salmista pergunta: Senhor, o que ganhas com a minha morte? Em outras palavras: Senhor, quanto pagarias para salvar a vida de alguém que é fiel a ti? No Salmo 116.15 o salmista afirma que o preço seria muito alto.
v. 16: O salmista se compreende como alguém que é fiel a Deus. Mas não somente isso: ele também se vê como um servo. Não é apenas uma expressão poética. A expressão é derivada do mundo jurídico. O que o salmista está testificando é que quem nasce de uma escrava é escravo de nascimento (Êx 21.4). O dono do escravo podia alforriar, libertar o escravo. O salmista testemunha que Deus o alforriou, o libertou da escravidão da morte.
v. 17-18: Esses versículos repetem os versículos 13-14, substituindo o cálice por um sacrifício de louvor.
v. 19: O último versículo do salmo menciona o templo e a cidade de Jerusalém. Isso é muito comum nas celebrações litúrgicas. No entanto, o que é estranho nesse versículo é que o salmista se refere a Jerusalém na segunda pessoa do singular, demonstrando seu profundo afeto pela cidade. O afeto do salmista pela cidade de Jerusalém contrasta com o episódio do profeta Ezequiel, que perdeu sua esposa e não pode pranteá-la, e o povo, que perde o templo e a cidade de Jerusalém e não poderá pranteá-la (Ez 24). Talvez os dois últimos versículos do salmo lancem uma luz sobre o momento histórico em que o salmo foi escrito. Podemos imaginar um israelita desterrado em país estrangeiro ou um repatriado que encontra o templo reconstruído. Talvez o israelita represente todo o povo. Assim, o salmista ou a comunidade é salva da morte. Ela estava longe, mas agora retorna à pátria. Já não é mais escrava, já não está mais no cativeiro, foi alforriada pela ação de seu dono. O Senhor taxa muito alto a vida de sua comunidade e esta não sabe como agradecer a Deus. A comunidade retorna para seu lugar de repouso, enxugadas as lágrimas, porque o Senhor foi bom para com ela.
3. Reflexão teológica com vistas à prédica
Creio que a intenção da equipe de teólogos que escolheu este texto como texto de prédica para a Quinta-Feira da Paixão foi de que o texto fosse interpretado numa perspectiva cristológica. A experiência do salmista no Salmo 116 possui muitos paralelos com o evento da Paixão, especifi camente, a última ceia que Jesus celebra com seus discípulos.
Da mesma forma como o salmista, Jesus expressa sua relação de obediência (lealdade), afeto e de amor para com o Pai. Um aspecto que chama a atenção, não mencionado anteriormente, é o fato que no Salmo 116 se encontra uma lacuna. Normalmente, na estrutura de um salmo de gratidão encontra-se um tópico de arrependimento da culpa e confissão de pecados (cf. Sl 30, 32 e 38). O salmista do Salmo 116 não se confessa réu de delitos ou pecados que pudessem eventualmente ter provocado a ira de Deus e a situação de calamidade pessoal. O salmista considera-se leal, fiel a Deus, sem que com isso julgasse obter méritos junto a Deus. Em todas as coisas Jesus foi tentado, mas sem pecar. Ele é o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
Diferentemente do salmista, Jesus não foi poupado da morte, mas entregue a ela. Aliás, o próprio Jesus entrega a sua vida de forma voluntária. No entanto, o evento da morte de Jesus (que aos olhos do mundo foi um retumbante fracasso), é revertido em absoluta vitória com a ressurreição de Jesus. Para Jesus, o cálice oferecido na noite da Quinta-Feira da Paixão é o cálice de libação: a sua própria vida é derramada, oferecida para perdão dos pecados. Lembramos da narrativa de Maria que unge Jesus e antecipa simbolicamente o evento da paixão e morte de Jesus (Jo 12). Para a comunidade dos discípulos, e também para nós, o cálice é o da comunhão, do convite que Deus estende a todos para que recebam a dádiva do perdão.
Que vida Deus Pai estimou mais preciosa do que a vida de seu Filho Jesus? No entanto, Deus Pai entregou seu Filho. A nossa vida custou um alto preço para Deus. Do “lado de cá” a salvação é gratuita, mas do “lado de lá” custou muito caro! É a troca maravilhosa que Deus faz conosco e a qual Lutero se referia quando escreveu: “Cristo é Deus e homem, mas jamais cometeu pecado. Sua justiça é invencível, eterna e onipotente. Ao apropriar-se Cristo do pecado da alma crente em virtude do anel de bodas, isto é, por sua fé, é como se Cristo mesmo houvesse cometido o pecado; resulta dar que os pecados são absorvidos por Cristo e permanecem nele, pois não há pecado capaz de resistir à invencível justiça de Cristo. Deste modo, a alma se vê limpa de todos os pecados, em virtude da aliança de bodas, ou seja, a alma é libertada pela fé e dotada com a justiça eterna de seu esposo, Jesus Cristo. Não é acaso um lar feliz, que Jesus Cristo, o noivo rico, nobre e justo, se case com uma insignificante rameira, pobre, desprezada e má, tirando-a desta forma de todo o mal e adornando-a com toda espécie de bens?” (Da liberdade Cristã, p. 20).
Graças à morte e ressurreição de Jesus, a comunidade cristã é alforriada, liberta da escravidão do pecado e da morte (Rm 8.20, 1Co 10.16). Toda vez que celebramos a Ceia do Senhor, somos lembrados disso. Quem é livre pode verdadeiramente colocar-se a serviço do próximo.
Toda vez que a comunidade celebra a Ceia do Senhor, ela antecipa, em fé, o grande dia das bodas do Cordeiro, quando definitivamente serão enxugadas todas as lágrimas, quando retornaremos ao nosso defi nitivo descanso. Nesse dia, a comunidade dos crentes dará graças, louvor e adoração a Deus na Jerusalém celeste.
4. Imagens para a prédica
A unção de Jesus por Maria (Jo 12) pode ser lembrada como imagem para o Salmo 116.
Bibliografia
SCHÖECKEL & CARNITI. Salmos II. São Paulo: Paulus, 1998. (Grande Comentário Bíblico).
GERSTENBERGER, Erhard. Como estudar os salmos? São Leopoldo: Sinodal, 2015.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).