Proclamar Libertação – Volume 41
Prédica: Salmo 31.1-5,15-16
Leituras: João 14.1-14 e 1 Pedro 2.2-10
Autoria: Manoel Bernardino de Santana Filho
Data Litúrgica: 2º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 14/05/2017
1. Introdução
A primeira impressão sobre esse salmo é algo confuso. É como se o autor houvesse expressado todos os seus angustiantes sentimentos em forma de oração: tudo o que ele sofre e espera, tudo o que experimentou e conhece do Senhor, a atividade de seus inimigos e das pessoas más de modo geral. O salmista fala de fatos individuais em termos convencionais, mas trata também de questões genéricas, como se fossem máximas. Recorda o passado e procura tranquilizar-se no presente. Dirige-se ao Senhor usando a segunda pessoa, mas fala dele na terceira. Cita-se a si mesmo e interpela um grupo de amigos.
Os salmos foram usados para moldar a adoração pessoal e a oração dos judeus piedosos. O salmo faz uma viagem da angústia para a certeza. A crise da angústia transparece nos primeiros versos e no final é relembrada. Por isso o salmista se fortalece nessa recordação que mostra suas desventuras e ao mesmo tempo se revigora com sua atitude de tomar a iniciativa acertada de procurar refúgio naquele que pode restaurar a paz interior.
A ligação entre os textos propostos para leitura dá-se pelo caráter do cuidado e proteção de Deus. O texto do Evangelho de João (14.1-14) expressa o conforto que Jesus Cristo oferece a seus discípulos. É uma conversa íntima entre Jesus e aqueles que confiam nele, ainda que vacilantes em sua fé. No entanto, é confortante saber que temos um Senhor que olha para nós, tanto no presente como no futuro. Seu cuidado é para todo o tempo. O texto da Primeira Carta de Pedro (2.1-10) expressa essa relação amorosa do Senhor no âmbito da comunidade.
2. Exegese
Um grande número de estudiosos dos textos sagrados acredita que algumas coleções menores de salmos incluídos no saltério canônico foram organizadas durante as eras pré-exílica e exílica. Durante a primeira parte do período do Segundo Templo, 516 a.C. em diante, os salmos foram compostos e organizados em coleções, e as coleções de salmos pré-exílicos e exílicos foram reunidas com elas para formar o livro de Salmos que temos agora.
Os salmos são considerados por muitos estudiosos como o “hinário do Segundo Templo”. A associação tradicional entre Davi e os salmos foi expandida nesse período. O número de salmos que traz o nome de Davi cresceu de 73 no saltério hebraico para 85 na Septuaginta (LXX). Segundo indicações dos manuscritos de Qumran, Davi teria escrito 3.600 salmos. Essa atribuição de tantos salmos a Davi pode significar a busca de uma Escritura autorizada, tendo como modelo similar a prática bem atestada de citar “Moisés” quando houvesse referência à Torá.
No Segundo Templo, houve uma apropriação gradual dos salmos no sentido de uma orientação futurista. As mortes dos profetas pós-exílicos Ageu, Zacarias e Malaquias sinalizaram o fim da voz profética em Israel. Os cantores levíticos compensaram esse silêncio ao trazer para o templo uma mensagem escatologicamente orientada de esperança e consolação para a comunidade pós-exílica.
Há um aspecto incomum no salmo: duas vezes faz a viagem da angústia para a certeza: 1-8 e 9-24, o que pode significar tanto que “as nuvens voltam depois da chuva” como também pode significar uma atitude de recordação, para ser desenvolvida uma segunda vez, com maior profundidade.
Na perícope selecionada para exegese (1-5; 15-16), Davi fortalece-se ao lembrar suas antigas aventuras e escapadas. Em sua oração de fé, mostra que sabe também que a força defensiva não basta. As iniciativas certas são tão vitais quanto o refúgio certo (3b e 4a). Seu apelo concentra-se não em sua capacidade persuasiva, e sim na justiça de Deus. Sabe que o Senhor é zeloso em ver feita a justiça. Há duas palavras no hebraico – mishpat e tzedakah – que significam justiça e direito. É preciso praticar a justiça para fazer valer o direito.
Um modo de encontrar ordem no salmo é aplicar-lhe o esquema gunkeliano (Hermann Gunkel) do gênero “súplica”. Aparece imediatamente uma revela- ção de motivos básicos com uma tríplice motivação: do autor, que sofre e faz e espera; dos inimigos, a perseguição e a maldade; de Deus, sua justiça, fidelidade, lealdade, bondade. Daí passa à confiança presente e segura e à promessa de uma festa de ação de graças com um convite aos companheiros.
O autor não pensa em seu próprio bom nome envergonhado (1), mas no de Deus; não pensa meramente que ele é inocente, mas que é redimido (5) e que confia no Deus único e verdadeiro. É interessante notar que Jesus cita a primeira parte do verso 5 em sua paixão no Calvário (Lc 23.46). No Antigo Testamento, a palavra “redimir”, encontrada no verso 5, raras vezes foi empregada no sentido de expiação. O sentido mais comum é salvar ou resgatar de dificuldades, livrar dos atropelos da vida. Somente no Salmo 130.8 tem o significado de “pagar o preço do pecado”. O significado de “redimir” no verso 5 é: ou a libertação é tão certa como se já tivesse acontecido, ou libertações do passado impulsionam Davi a esse ato de dedicação nessa ocasião.
Nos versos 15 e 16, aparece mais uma vez a oração de fé do salmista. Ele toma a iniciativa, sai de uma atitude defensiva e volta-se numa nova direção. Sua oração é mais sólida por fazer declarações antes de fazer petições, pois atribui a Deus seu lugar verdadeiro como soberano. Seu relacionamento de intimidade com Deus é de dependência absoluta. A expressão “nas tuas mãos estão os meus dias” mostra que ele enfrenta o fato necessário da transição e da mudança, tanto de si mesmo como do ambiente, e torna mais aceitável a adversidade. As mudanças não vêm pelo acaso, mas pela ação direta de Deus, que age e estabelece os acontecimentos do mundo. Desse modo, a oração de entrega do verso 5 (“nas tuas mãos entrego o meu espírito…”) revela agora as implicações práticas.
Essa dependência de Deus promoverá estabilidade e confiança para aque- les que nele confiam. Isso nos faz lembrar o dito de Isaías em 33.6: “Haverá, ó Sião, estabilidade nos teus tempos, abundância de salvação, sabedoria e conheci- mento; o temor do Senhor será o teu tesouro”.
3. Meditação
Os Salmos constituem parte da literatura sapiencial do Antigo Testamento. O livro distingue-se de todos os demais por conter apenas orações. São canções de pessoas orantes.
Salmo 31 carrega em si um conceito de tempo como uma referência sobre a qual dependuramos nossa história: “nas tuas mãos estão os meus dias”. Tudo que há está sob a noção de localização no tempo. A ideia de passado, presente e futuro é universal, e por meio dela habitamos a realidade. Entre os semitas, por exemplo, passado e futuro são menos importantes do que as noções de completo e incompleto. Não se trata de saber se o acontecimento está atrás ou à frente no tempo, mas discernir se a ação está pronta ou inacabada. Na língua grega existe um tempo chamado aoristo, que não existe para as línguas modernas. O aoristo é um tempo indefinido. É uma ação verbal que não indica tempo de duração. É como na expressão usada por Jesus em Mateus (12.28): “é chegado o reino de Deus sobre vós”.
De todo modo, não há dúvidas: o tempo é mais do que mera convenção; é, nas palavras do poeta argentino Martín Fierro, “a tardança daquilo que está por vir”. Algo que vem do futuro – daquilo que ainda não está – e emprenha o presente e ressignifica-o por completo. Nossa percepção da realidade passa pelo conceito de tempo. Vemos a realidade por meio do tempo e do espaço. O espaço é uma forma de percepção externa; o tempo é a forma de percepção interna, dizia Kant. Quando a Bíblia diz: “ensina-nos a contar os nossos dias…”, a oração pede que Deus nos dê sabedoria para lidar com o tempo de que dispomos.
O Salmo 31 é uma poesia de ação de graças, mas também nos apresenta uma ação, uma circunstância histórica genuína: é a oração de Davi, cansado por tantas desventuras e perseguições. Por isso esse salmo se estabeleceu como uma oração para tempos difíceis, para tempos de crise. Tem sido leitura obrigatória para aqueles que estão dispostos a refletir sobre o sentido da vida. É aqui que o autor retrata a majestade e a glória de Deus. Ele é o Eterno, o refúgio seguro contra as tempestades da vida. Os cuidados de Deus estendem-se a todas as gerações e vêm desde a eternidade. E isso é uma garantia de que não estamos entregues apenas à brevidade da vida. Aqui nos deparamos com a fragilidade do ser humano. Aqui nos vemos descobertos, fracos, um nada diante de Deus. Nada somos diante do Eterno, e no entanto ele se volta para nós com olhar de misericórdia.
Por outro lado, alguns têm encontrado na leitura desse salmo razões para frustração e abatimento. Afinal, para que serve a vida se no final é tudo um vale de lágrimas? Porém tristeza e sofrimento são a vida do ser humano sem Deus, pois aquele homem e aquela mulher que servirem ao Senhor encontrarão alegria em todas as fases da vida.
O Senhor nos fará construtores de um novo amanhã. “No qual também vós juntamente estais sendo edificados para habitação de Deus no Espírito” (Ef 2.22). Toda a nossa vida move-se no tempo. Há um passado com suas gratas memórias, que nos fazem bem à lembrança, cuja acumulação de experiências constrói o nosso ser e nos edifica; e há memórias ingratas, que é melhor esquecer, especialmente as memórias das nossas falhas e das falhas dos outros em relação a nós. Quanto ao passado – aos anos velhos –, vivemos entre as memórias da graça e a memória das desgraças.
Nosso tempo de hoje é o resultado desse tempo de ontem, mas o tempo de hoje é uma breve passagem em direção ao tempo do amanhã com seus sonhos e seus temores, seus alvos e suas dúvidas, suas aspirações e suas inseguranças. Se não podemos fazer mais nada em relação ao passado, apesar do seu caráter imponderável e da soberania de Deus, podemos fazer algo pelo futuro: pensar, planejar, decidir, comprometer. Como cidadãos do reino de Deus, nossa presença no reino pode contribuir para um mundo novo, menos violento, menos injusto, menos desonesto, menos mentiroso, menos hipócrita, menos opressor, menos discriminador.
Mas para isso precisamos estar bem. O salmo dá-nos a consciência da finitude e do pecado, pela necessidade do arrependimento, pela busca da santificação, pela forma com que devemos depender do Senhor. A vida com Deus é uma vida de recomeços, porque ele é o Deus da nova oportunidade. É o Deus que chama de volta o aflito, que anima o abatido. É aquele que diante dos discípulos à beira da desistência total afirma: “Lançai a redes à direita do barco e achareis” (Jo 21.6). É Deus presente, que não desiste de nós, que ouve, age e desarma as armadilhas redimindo-nos para a salvação.
Mas como se reanimar em uma igreja tão marcada pelo velho: o divisionismo, o isolacionismo, o caciquismo, o sectarismo, o moralismo, o legalismo, os cismas, as heresias? Um tempo novo e sadio a partir de uma igreja enferma?
Entre a pessoa nova e o mundo novo há a igreja nova, a família nova, a comunidade nova, o trabalho novo, o país novo, os hábitos novos e, tantas vezes, pessoas novas ou relacionamentos renovados. Eduardo Galeano dizia: “Somos o que fazemos. Mas somos, principalmente, o que fazemos para mudar o que somos”.
O salmo começa com um lamento, mas termina com um cântico de louvor. O Senhor é bom, por isso devemos orar a ele, não desistir e confiar que ele fará resplandecer o seu rosto sobre cada um de nós.
O verso 16 termina em tom solene. Davi evoca a bênção aarônica de Números 6.25. No Salmo 4.6, ele busca essa bênção para ele e seus companheiros: “Senhor, levanta sobre nós a luz do teu rosto”. Aqui ele a busca para si mesmo: “Faze resplandecer o teu rosto sobre o teu servo: me salva por tua misericórdia”.
4. Imagens para a prédica
Podemos usar algumas imagens para exemplificar o cuidado do Senhor para com cada um de nós. Podemos pensar num pequeno ninho, feito com palha ou mesmo com papel em tiras para formar um espaço aconchegante. Acima desse ninho um laço quase imperceptível e contar para as pessoas dos laços de morte que às ocultas armam contra nós.
Lembro, quando era menino, das armadilhas que os caçadores de passarinhos faziam para capturar suas presas. Localizavam seus ninhos, e enquanto a ave saía para buscar o que comer, essas pessoas armavam laços invisíveis sobre os ninhos. Eram feitos de pelos de rabo de cavalo, o que fazia com que se tornassem invisíveis num primeiro instante. Quando o passarinho pousava para descansar do calor do dia ou no final do dia para passar a noite, era capturado pelo laço que lhe armaram. Quando mais se debatia, mais forte apertava o nó invisível.
Pessoas armam laços invisíveis sobre nós. Gente que parece amiga e até sorri vem ao nosso encontro, estabelece relações, mas tem planos ruins para nos atingir, ferir e causar dano. Por isso outro salmista diz: “Quão amáveis são os teus tabernáculos. Nesse lugar o pardal encontrou casa e a andorinha, ninho para si” (Sl 84.1 e 3). Na presença do Senhor, o laço do passarinheiro é quebrado, como diz Davi no Salmo 124. Ele, o Senhor, quebra o laço e põe-nos em liberdade.
Essa imagem do pássaro preso no laço invisível é muito forte para mim. Nunca me esqueci do sofrimento daqueles pequenos pássaros sufocados até a morte. O caçador nem sempre queria a morte do pássaro. Queria capturá-lo vivo para uma gaiola. Mas, não raras vezes, o laço prendia o pescoço e nesse caso levava à morte. Somente Deus nos livra desses laços de morte.
5. Subsídios litúrgicos
Sugiro que, nas celebrações do dia, haja espaço para a partilha das experiências do cotidiano, para que as pessoas possam expressar as situações de perigo, os dramas pessoais, familiares e da comunidade, os apertos da vida, as situações que primeiramente parecem para nós completamente fora de controle, e que Deus, em sua graça e amor, vem a nós com sua misericórdia e livra-nos das situações mais imprevistas. Os cânticos comunitários, as orações do povo de Deus devem expressar esse sentimento de grande tensão e conflito, ao mesmo tempo em que somos confortados e redimidos dos abismos da vida para um ambiente de paz e sossego.
Oração do dia
Amado Pai Celestial! Queremos agradecer-te por permitires e ordenares que nos reunamos nesta hora para orar a ti, para proclamar, ouvir e guardar tua palavra em nossos corações.
Mas não somos pessoas que podem fazer isso de modo que seja do teu agrado e salutar para nós. Pedimos-te, assim, de coração e humildemente: fica entre nós, Senhor, e toma tudo em tuas mãos! Purifica nosso falar e ouvir! Abre e ilumina nossos corações e nossa compreensão! Acorda e fortalece nossa vontade de conhecer-te e nossa disposição para dar-te razão! Permite que possamos respirar fundo o ar puro de teu Espírito, para que amanhã, com renovada modéstia, afeição e alegria, possamos voltar ao nosso trabalho!
À tua presença e à tua orientação queremos confiar a nós e todas as pessoas ao nosso redor nesta cidade, neste país, em todos os lugares. Tu tens meios e maneiras para falar a todos, consolar todos e admoestá-los. Não nos abandones, nem a eles, para que haja claridade onde agora está escuro – para que haja paz onde agora existe desavença – para que a coragem e a confiança nasçam onde agora imperam a aflição e o medo. Ouve nossa prece – não porque tenhamos merecido, mas em nome de Jesus Cristo, por intermédio de quem, em tua inconcebível graça, desde a eternidade nos consideraste dignos de ser teus filhos! Amém! (BARTH, 2013, p. 64-65).
Bibliografia
BARTH, Karl. Senhor! Ouve a nossa oração! Tradução Paul Tornquist. São Leopoldo: Sinodal, 2103.
KIDNER, Derek. Salmo 1-72; introdução e comentário. Tradução Gordon Chown. São Paulo: Mundo Cristão, 1980.
WALTKE, Bruce K. et al. Os Salmos como Adoração Cristã; um comentário histórico. Tradução Angelino Júnior do Carmo. São Paulo: Shedd Publicações, 2015.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).