|

 

Prédica em Tempo de Epifania (3o domingo) a partir do texto de Salmo 62, em conjunto com Marcos 1.32-35

Estimada Comunidade, minhas irmãs e irmãos em Cristo!
Quando você pensa num local e tempo de refúgio, qual lugar vem à tua mente? Onde e quando você busca refúgio? Recentemente em visita aos familiares no ES – uma viagem onde cuidamos ao máximo para não se contaminar ou levar o coronavírus adiante – um tempo e um espaço de refúgio para mim foram as caminhadas solitárias na natureza, rodeado por muitas árvores e montanhas. Geralmente eu carregava comigo um versículo bíblico dos Salmos para desfrutar de um tempo de oração e local de comunhão com Deus. Este foi o meu refúgio. Para outra pessoa, local e tempo de refúgio seja talvez encontrar-se com uma pessoa próxima, uma pessoa de confiança para conversar e abrir o coração. Fato é, ter um local e tempo para refugiar-se, seja sozinho ou na companhia de outra pessoa, é muito importante. É vital e necessário, fazer uma pausa na rotina, muitas vezes corrida, para se abrigar e renovar as forças.

Refúgio é o tema do salmo 62: “Confie sempre em Deus, meu povo! Abram o coração para Deus, pois ele é o nosso refúgio (v. 8). A palavra refúgio está diretamente ligada à imagem da rocha que aparece três vezes neste salmo: “Somente Deus é a rocha que me salva” (v. 2 e 6), “ele é a minha rocha poderosa e o meu abrigo” (v.7). Deus é rocha no sentido de dar abrigo, proteção, segurança – um refúgio para as pessoas que nele confiam.

Porém, antes de prosseguir com a meditação do salmo 62, gostaria de destacar algumas particularidades do livro de Salmos. Primeiro, os salmos, estas orações que fazem parte da Bíblia, são muito antigas. Estas orações foram originalmente escritas na língua hebraica, falada pelo povo judeu. Não sabemos ao certo quem escreveu e quando. Em muitos salmos aparece o nome do seu autor, como o rei Davi e Asafe, chefe dos sacerdotes durante o reinado de Davi. Em outros salmos o nome é mencionado, mas não sabemos ao certo quem é esta pessoa. E temos ainda salmos cuja autoria nos é completamente desconhecida. Fato é que provavelmente um grupo de pessoas coletou todas estas orações e deu forma ao livro de Salmos. O livro de Salmos é uma coleção de orações de diferentes pessoas e épocas. E o que sabemos com certeza é que no tempo de Jesus, o livro de Salmos era usado nos cultos, seja no grande templo na cidade de Jerusalém ou nas sinagogas, nas casas de oração do povo judeu espalhadas por todo o império romano. O livro de Salmos já existia no tempo de Jesus. Portanto, Jesus, que era judeu, conhecia os salmos – ou dizendo melhor ainda, Jesus, como muitas pessoas do povo judeu, conhecia os salmos de cor e orava a partir dos salmos. Nos evangelhos encontramos Jesus citando o livro de Salmos, como por exemplo, a oração de Jesus na cruz, “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (Mc 15.34), uma citação do Sl 22.7. Então – e isto é importante destacar – quando nós hoje usamos o livro de Salmos para nos guiar na oração, estamos em verdade juntando nossas vozes às vozes do povo do Antigo Testamento e do próprio Jesus.

Uma segunda característica é que os salmos são palavra de Deus para nós e, ao mesmo tempo, são nossas palavras humanas para Deus. Deus fala através dos salmos. E, ao mesmo tempo, usamos os salmos para falar com Deus. Os salmos não apenas falam conosco, mas falam por nós. Ou seja, quando oramos com os salmos, Deus está colocando sua Palavra em nossas bocas, nos ajudando a falar com Deus. O livro de Salmos foi compilado para ser o livro de orações da comunidade, do povo de Deus. A melhor maneira de usar os salmos é na oração. É colocar-se diante de Deus, lendo um salmo por inteiro ou meditando num só versículo dos 150 salmos que fazem parte da Bíblia. É Deus nos ensinando a orar.

E uma terceira particularidade dos salmos é que eles são poesia, linguagem poética para expressar uma multidão de sentimentos e uma gama de experiências de vida. Poesia não é para ser entendida literalmente – poesia usa imagens, comparações e metáforas para nos aproximar ao universo dos sentimentos e da experiência. Ao invés de dizer Deus é ‘onisciente’ (Deus sabe todas as coisas), ou Deus é ‘onipresente’ (Deus está presente em todos os lugares) ou Deus é ‘onipotente’ (Deus tem todo o poder e autoridade), os salmos fazem uso de palavras como “O Senhor é o meu pastor”, “Deus é a minha rocha, socorro bem presente em tempos de aflição”, Deus é o meu alto refúgio”. Estas não são afirmações literais – são imagens intensas para fortalecer nossa experiência de comunhão com Deus e com o mundo que nos rodeia.

Depois desta longa introdução para animar você a fazer uso do livro da Salmos como livro de oração, vamos usar o tempo que nos resta para meditar no Salmo 62. Como eu disse, o tema deste salmo é refúgio, Deus é refúgio em quem se pode confiar. Na primeira parte do Salmo 62, ficamos sabendo da experiência de vida que a pessoa orante está atravessando. É tempo de dificuldade, quando a pessoa orante expressa sua confiança em Deus perante pessoas que estão lhe atacando, quase derrubando-a como uma cerca prestes a ser derrubada, pendendo para o chão (v.3). Podemos imaginar uma cerca antiga e frágil, tão frágil que uma pequena rajada de vento poderia tombá-la! E assim nos colocamos no lugar desta pessoa orante, ela se sente fraca. O salmista está se sentindo fragilizado porque é vítima de uma perseguição.

Não se trata de uma perseguição com armas e carruagens de guerra. A perseguição tem a ver com palavras malditas. O salmista se refere às pessoas que “gostam de mentir, dizem coisas boas a respeito dele, mas no coração o amaldiçoam” (v. 4). São pessoas que fazem uso de palavras para perseguir e derrubar outra pessoa. É um tipo de perseguição que ainda nos é familiar. Nós chamamos este tipo de perseguição de fofoca, maledicência, mentiras contra o próximo. Palavras não são armas de fogo, mas elas têm o poder de destruir com violência os relacionamentos entre pessoas, roubar a reputação de alguém. Se no mundo antigo o mal-uso de palavras já era um problema, no tempo de comunicação virtual (whatsapp, facebook e afins), o problema aumentou exponencialmente.

O salmo 62, portanto, nos alerta para ter cuidado com as palavras que saem de nossa boca. Mas não apenas isso, o salmo também nos alerta sobre outras seduções e tentações que fazem parte da nossa experiência de vida, da nossa vivência em comunidade. Em especial o versículo 10 nos traz este alerta, “não confiem na violência, nem esperem ganhar alguma coisa com o roubo. Ainda que as suas riquezas aumentem, não confiem nelas” (v. 10). A violência, o acúmulo de riquezas, a tentativa de tirar o que pertence ao outro, muitas vezes são os caminhos que nós, pessoas, percorremos para conquistar segurança e proteção. Buscamos abrigo e refúgio na violência, na opressão, no consumismo exagerado. Por exemplo, muito comum hoje em dia quando as pessoas não têm um bom argumento numa conversa, então fazem uso da violência, achando que quem está com a razão é a pessoa que grita mais alto e que humilha a outra pessoa. Ou ainda, o exemplo do patrão inseguro que oprime os empregados para gerar medo. Ou o marido inseguro que oprime a família com palavras para ganhar autoridade. E por fim, a pessoa que vive correndo para aumentar seu patrimônio, pensando que a somente a riqueza, custe o que custar, lhe dará um chão firme e seguro. Por fim, com a saúde acabada e a família fragilizada, a pessoa se dá conta que somente a riqueza não traz segurança e proteção.

Ante estas e muitas outras tentações, seduções e ilusões que nós construímos em busca de um abrigo e uma rocha poderosa, qual o caminho que o salmista nos apresenta? “Confie sempre em Deus, meu povo! Abram o coração para Deus, pois ele é o nosso refúgio” (v.8). Confiar em Deus, abrir o coração, experimentar Deus como nosso refúgio. Poderíamos dizer estas palavras da boca para fora, mas não é este o caminho que o salmo propõe para nós. Confiança é uma relação que se constrói com o tempo. Pensem, por exemplo, numa criança recém-nascida que está aprendendo a confiar em sua mãe e seu pai. Recém-saída do útero materno, o mundo que lhe rodeia é estranho. Mas sua mãe insiste em oferecer o leite materno – uma experiência que aproxima a mãe e a criança, despertando confiança, sentimentos de cuidado e proteção. Ou o pai que, carinhosamente segura a mão da pequena criança que, no meio da noite, despertou assustada. A mão do pai, segurando a pequena mão da criança, gera confiança e ajuda a criança a retornar ao sono tranquilo, ao sentimento de que alguém está ao seu lado, cuidando e protegendo.

De modo semelhante, nós, você e eu, no batismo somos como crianças recém-nascidas, acolhidas na comunidade de Jesus. E nesta comunidade, Jesus quer nos ensinar a confiar em Deus. Nesta comunidade Jesus quer nos ensinar a abrir o coração. Nesta comunidade Jesus quer nos apresentar Deus como refúgio e rocha poderosa que salva. Nesta sua comunidade, Jesus quer nos ensinar a orar com a Palavra de Deus – o livro de Salmos – fortalecendo nossa fé e unido nossas vozes com a voz do próprio Jesus. Amém.