Subsídio bíblico para a Mensagem
Mateus 15.21-28
Introdução
A novela “Viver a vida” teve o mérito de colocar em cena uma jovem tetraplégica que – com muito apoio e carinho – consegue retomar sua vida aos poucos e até mesmo voltar a viver um romance que lhe revela uma dimensão do amor que não acontece todo dia. O acompanhamento médico, os cuidados da família e das pessoas amigas, a lenta recuperação psicológica que a protagonista experimenta após a tragédia que a prendeu à cama e à cadeira de rodas, ajudaram-na a tornar-se uma nova pessoa. Luciana chora, explode de raiva, grita, mas se recupera, volta a sorrir e, ao fim, se envolve num romance com o médico que será seu futuro marido. Trata-se de novela, é verdade. E Luciana tem a sorte de ser membro de uma família de posses. Ainda assim, o fato de uma novela de TV colocar como protagonista principal uma mulher cadeirante e conseguir fazer da sua luta algo que repercute na sociedade brasileira, já demonstra que algo está mudando em nosso país. Mostra que, aos poucos, surge uma nova mentalidade.
E na igreja, como estamos? Os critérios de saúde, capacidade e beleza começam a se ampliar e a ganhar outros referenciais. Uma pessoa com evidentes limitações físicas pode recuperar-se e viver a vida! Seria o caso de escrevermos: PESSOAS COM DEFICIÊNCIA TAMBÉM PODEM SER CAPA DE REVISTA, MANCHETE DO JORNAL DAS OITO, PRIMEIRO LUGAR EM CONCURSOS DE BELEZA, ASSUMIR O MINISTÉRIO NA IGREJA, CASAR E SER FELIZES!
Até aí, apenas um gancho para nos aproximarmos de um texto bíblico que nos poderá ajudar a preparar uma instigante mensagem para esta SEMANA NACIONAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA.
Vamos estudar aqui a narrativa da mulher cananéia e seu encontro com Jesus, nas terras do norte da Palestina. Existem dois relatos sobre este encontro, o de Mateus e o de Marcos. Ambos são importantes, mas por alguns detalhes que veremos a seguir, escolhi a versão de Mateus.
Creio que este estudo bíblico pode surpreender-nos pela força de uma mulher pagã que lutou bravamente para que sua filha pequenina pudesse recuperar a saúde. Não vamos entrar na discussão sobre a enfermidade da menina, que o texto caracteriza como “endemoninhada”. Este tipo de enfermidade parece que era comum naquele tempo, pois encontramos muitos exemplos de curas em que Jesus acolhe e liberta pessoas que padecem desse mal. O que poderia significar esta doença, não é fácil de compreender hoje em dia. Pode significar algum tipo de doença mental ou padecimentos psíquicos e espirituais. O que importa é que, ao contrário do costume, Jesus não rejeita estas pessoas, se aproxima delas e as toca. Fala com elas. Escuta seus gritos, clamores, angústias. Ele acolhe e dá voz a essas pessoas. Esta atitude se revela terapêutica, libertadora. Jesus as cura e elas voltam tranqüilas para o convívio familiar e social, e louvam a Deus por isto.
Aqui vamos caminhar por dentro do texto e buscar nele aquela inspiração que marcou os discípulos que assistiram ao encontro de Jesus com a cananéia, mas principalmente pela força daquela mulher e o impacto que sua fé causou em Jesus a ponto de fazer com que ele mudasse de idéia e de comportamento. Não é por acaso, então, que esta narrativa consta do evangelho e chegou até nós.
Mateus 15.21-28 – estudo do texto
Em primeiro lugar, sugiro ler o texto de Mateus 15.21-28 de forma orante. Terminada a leitura, faça silêncio. Se você esqueceu alguma parte, leia novamente. Deixe que as palavras do texto entrem em você. Procure imaginar a cena toda, a tensão que vai aumentando a cada passo da caminhada do grupo de Jesus. Procure fixar o olhar na mulher cananéia, naquela mulher pagã que ousou crer em Jesus e insistir junto a ele pela cura de sua amada filha. Depois de feito este exercício, compartilhe com as pessoas do grupo, da comunidade, o que sentiu.
Às vezes, as narrativas bíblicas não nos dizem nada ou muito pouco. É que não chegamos a escutar bem, a compreender em profundidade. Mas esta história é muito importante. Ela é muito atual, mesmo depois de tanto tempo. Por isto, precisamos de paciência e atenção ao lidar com a história. Precisamos meditar aquelas palavras, aquele diálogo inusitado. Assim, entrando no texto com a mente e o coração abertos, vamos encontrar nele inspiração e força para nossa caminhada atual com as pessoas com deficiência. Feito isto, vamos estudar a história.
Analisando com calma este episódio da caminhada de Jesus, percebemos aqui uma mulher que clama e argumenta a partir de sua experiência cotidiana. Ela insiste até aos gritos e finalmente consegue estabelecer um tenso diálogo com Jesus, no qual ela reelabora a imagem de Jesus sobre o pão que as crianças comem e os farelinhos que sobram e são avidamente abocanhados pelos cachorros.
Um estudo da pastora Ivoni R. Reimer informa que esta mulher radicalizou a sua experiência de pobreza porque conhece muito bem o que é viver com muito pouco. Por isto, uma forma de aproximação importante desta história é a vida cotidiana, as alegrias e as dores que sentimos todos os dias, principalmente quando cuidamos e educamos pessoas com deficiência. Elas são pessoas que merecem respeito, cuidado e amor. Devem ser escutadas e estimuladas. Só assim poderão suportar com dignidade suas limitações e contribuir com sua comunidade, e até mesmo com a sociedade que normalmente as ignora e exclui.
Um professor que escreveu sobre esta história fez algumas afirmações fortes que merecem ser consideradas. Ele afirmou que a fé daquela mulher foi mais forte que os preconceitos judaicos de Jesus, que pensava em reservar o reino de Deus só para as ovelhas perdidas da casa de Israel. Aquela mulher convenceu Jesus da grandeza da misericórdia de Deus. E Jesus finalmente se dobrou diante da sua fé e fez dela um exemplo, e de sua fé uma fé exemplar. Graças a Deus que Mateus registrou esta história!
Detalhes da narrativa
Jesus e seus discípulos se retiraram para as regiões de Tiro e Sidom, ao norte da Galiléia, possivelmente para se distanciar das controvérsias com escribas e fariseus (Mateus 15.1-20). Queriam um pouco de descanso. Mas sua caminhada não foi fácil. A fama de Jesus já se espalhara pela região e o povo vinha a ter com ele, mesmo quando o grupo andava por lugares distantes. O encontro inoportuno do grupo de Jesus com aquela mulher cananéia ou siro-fenícia não estava nos planos. Isso talvez explique as reações quase desbocadas tanto dos discípulos quanto de Jesus diante do clamor e da teimosia daquela mulher. Mas o extraordinário é que ela não se deu por vencida! Ela suportou o desprezo, as respostas ríspidas e lutou como uma guerreira até ser atendida.
Quem ela era? A narrativa conta que era cananéia, mulher de origem não-judaica, como a cananéia Raabe (Josué 6.17) ou o centurião romano de Cafarnaum que também procurou Jesus com uma fé inusitada (Mateus 8.5-13). Tanto ele como ela são mencionados segundo sua origem étnica e não pelo nome. Mas uma coisa une os dois: o mesmo clamor, pois ambos pedem pela cura de seus dependentes. A mulher roga por sua filha pequena. O centurião por um jovem que lhe presta serviços. Ambos demonstram confiança em Jesus e nele depositam uma esperança sem igual no seu poder de curar doentes.
As palavras da mulher – “Senhor, Filho de Davi, tem compaixão de mim!” – são as mesmas utilizadas pelos dois homens cegos em Mateus 9.27. Estas pessoas são movidas pela fé judaica, mesmo não pertencendo ao povo de Israel. O título Filho de Davi indica que Jesus é visto como o Messias, o Libertador de Israel, há muito esperado. Ele é o enviado de Deus, que curava e libertava pessoas do poder que escraviza. Ele pode, sim, ajudar a salvar a filhinha enferma, pensa aquela pobre mulher.
Jesus, porém, reage de forma totalmente inesperada. Ontem e hoje. Suas respostas são desconcertantes, ofensivas até. A mulher clamava, corria atrás, implorava, interrompendo a caminhada do grupo de Jesus. Ele não pôde continuar. A Pastora Ivoni informa que o verbo grego usado no texto já é uma forma de proclamação. Com seus gritos a mulher acaba anunciando que o Messias está na região.
Jesus então se cala. Não responde nada. Silêncio de Deus. Que barbaridade! Esta primeira reação é tão constrangedora, que até mesmo os discípulos não agüentam e lhe pedem: “Despede-a, pois vem clamando atrás de nós” (v. 23). Aquela insistência estava se tornando demais impertinente. Era preciso tomar uma atitude. Então, Jesus se resigna a falar.
Mas sua fala não é nada agradável. É ríspida, ortodoxa: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa e Israel” (v.24). É duro ouvir essas palavras. Mas, pelo menos, é uma resposta. Melhor assim que o silêncio aterrador. Aqui o texto é diferente um pouco da versão de Marcos, pois lá ainda se menciona que depois virão os gentios. Mateus não, ele afirma que Jesus veio para Israel e ponto. Mas a mulher cananéia não aceita a resposta de Jesus e muda esta história. Nada é definitivo na perspectiva do reino de Deus.
Meio desesperada, ela se ajoelha em adoração e grita: “Senhor, socorreme!” (v.25). O pedido é tão dramático e honesto que Jesus não pode mais recuar. Mesmo assim, ele continua a responder conforme a doutrina certa: “Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-los aos cachorrinhos” (v.26).
Pão, crianças e cachorrinhos. Imagens do cotidiano de pessoas pobres, para quem a comida é pouca e os remédios, caros. Primeiro é preciso saciar a fome das crianças. Se houver sobra, então os cachorrinhos poderão comer as migalhas. Mas não é certo inverter esta ordem. Onde não há fartura, a prioridade são as crianças. Jesus está correto na sua sentença. Mas a mulher também tem suas razões e somente depois de ela articular seu último argumento é que Jesus começa a mudar de opinião. Ela afirma: “Sim, Senhor, mas […]”. Ela sabe como as crianças são importantes, mas sua luta é para que também sua criança tenha lugar na mesa de Jesus, ou pelo menos, junto aos restos da ceia principal. Do fundo de sua experiência de mulher pobre e sofrida, ela ousa dizer: “Porém, os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos” (v. 27). Quem lhe deu tamanha força e ousadia para falar
assim?
Só posso entender que aqui temos uma clara manifestação do Espírito Santo de Deus. É assim que ele age. Quando tudo parece perdido, ele ilumina a realidade e uma luzinha começa a brilhar onde tudo parecia sem saída. Os cachorrinhos comem, sim, nem que seja os farelos, os restos, as migalhas. Aqui temos uma teologia de mulheres que acreditaram na misericórdia de Deus, para além das barreiras que a sociedade impõe e que, às vezes, as crenças reafirmam. Deus pode se manifestar na luta dos pequenos, na teimosia de mulheres, a partir de migalhas e, nessa mesma linha, também hoje na luta de pessoas com deficiência. Nesses momentos acontece a fé, a renovação da fé.
Quando a mulher aceitou o argumento de Jesus sobre os cachorrinhos, ela sabia que esta era uma forma de os judeus caracterizarem os não judeus, os pagãos, os que estão fora do povo de Deus. Mas invertendo o argumento, ela começa a desmontá-lo. Ela aceita o fato de que não pertence ao povo de Deus, ela é cananéia, afinal. Não tem direitos a reclamar. Mas desde a sua exclusão, desde a sua insignificância, ela clama, grita, implora e, finalmente, se faz ouvir. Isto é muito importante hoje./Sejam familiares, sejam as próprias pessoas com deficiência, elas precisam aprender a gritar, clamar, protestar, exigir. Só assim essas pessoas serão, um dia, escutadas e – quem sabe – a realidade de sua invisibilidade poderá ser mudada.
Ao final da narrativa, temos então uma espécie de conversão de Jesus. Ele reconhece a justiça daquele clamor e a extraordinária fé daquela mãe: “Ó mulher, grande é a tua fé!” (v.28). Jesus se dobra diante da perseverança daquela mulher. Por isto sua fé se torna fé exemplar. Porque ela não desiste de invocar a Deus. Porque ela vence preconceitos e luta pelo que considera justo, mesmo quando esta luta aparentemente não está delineada na doutrina ou na lei de Deus. Jesus então afirma: “Faça-se contigo como queres”. E desde aquele momento a sua filha ficou sã.
Digno de nota é que esta fé salva outra pessoa. É fé vicária. A fé de uma mãe salva sua criança. Jesus elogia justamente este tipo de fé e não a fé egoísta que pensa exclusivamente em si mesmo. Isto nos ajuda a pensar em como trabalhar hoje a fé em prol de todas as pessoas com deficiência. Eis aí algo que pode mover uma comunidade cristã: a fé solidária e comprometida com a cura, a salvação e o bem das pessoas com deficiência.
Nessa narrativa podemos perceber muitas coisas. As palavras desnudam os interlocutores. A frieza dos discípulos, a ortodoxia de Jesus, a teimosia e garra daquela mulher que não desiste de buscar a cura para sua filha […]. As palavras são como espelhos das pessoas. O extraordinário é que nesse encontro inesperado, Jesus acaba por escutar o drama da mulher e ouvi-la com atenção. Ele a acolhe e muda de opinião. Como noutros momentos, ele descobriu a grandeza da fé de pessoas que não são de seu povo, de sua comunidade de fé. Ao desafiar Jesus, a mulher desnuda a estreiteza de uma fé que somente vale para os filhos e filhas de Israel. E Jesus concorda com ela e reconhece: “Grande é a tua fé, ó mulher!”
Também hoje precisamos aprender a gritar. Tanto na sociedade quanto diante de Deus. Principalmente considerando a situação, os dramas e as necessidades das pessoas com deficiência, suas famílias e as comunidades nas quais participam. Não se trata, porém, de buscar vantagens. Pelo contrário, aqui temos de gritar com Deus para que crianças sejam curadas, pequeninos tenham o pão de cada dia, pessoas com deficiência sejam respeitadas e acolhidas como iguais em sua diferença, idosos tenham direito a uma aposentadoria digna e os oprimidos sejam libertos de toda injustiça.
Aqui temos um exemplo do que pode ser uma igreja solidária ou igreja do cuidado, como escreveu o pastor Rodolfo Gaede. Está na hora de valorizarmos as muitas cananéias que encontramos nas vilas, nas salas dos postos de saúde, nos hospitais, nas paradas de ônibus, nas comunidades, buscando juntas com filhos e filhas com alguma deficiência o cuidado que precisam para viver melhor e com dignidade. Isto também é pão de cada dia, conforme aquela bela interpretação de Lutero no catecismo menor.
Esta é uma das marcas da evangelização que acontece nas margens da sociedade, nos lugares mais incomuns onde não se costuma falar da fé cristã. Quem sabe, ali é justamente onde a fé encontra sua mais profunda realidade porque confia totalmente na misericórdia e na compaixão do Doador da vida. E Deus não se cala. Ele age e abre caminhos de cura e libertação.
Dedico este texto a todas as pessoas que ao longo dos 18 anos do Programa Diaconia Inclusão tem colocado seu tempo e seu dom a serviço de um mundo mais justo e inclusivo. Em especial, à memória de Dorothy Marie W. Wangen (1923-2010)
P. Dr. Roberto E. Zwetsch
Professor de Teologia Prática
Faculdades EST
Referências
DOBBBERAHN, Friedrich E. Na pele como cola: a história da mulher Cananéia. Estudos Teológicos. Vol. 29, n. 1, p. 41-44. São Leopoldo: EST, 1989.
REIMER, Ivoni R. O pão na crise – alimentando a resistência criativa. Estudos Bíblicos. N. 42, p. 71-77. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1994.
ZWETSCH, Roberto E. Auxílio homilético sobre Mateus 15.21-28. In: HOEFELMANN, Verner: SILVA, João Artur M. da (Coords.). Proclamar libertação. Vol. 27. São Leopoldo: Sinodal, IEPG, 2001, p. 208-215.
Índice do Caderno de Subsídios da Semana Nacional das Pessoas com Deficiência – 2010