Temer e Amar a Deus e Confiar Nele Acima de Todas as Coisas
Martin. N. Dreher
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O autor das palavras que servem de tema do ano de 1983, na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), é Martim Lutero, cujo 500.° aniversário de nascimento comemoramos no presente ano. Procuro mostrar ao longo de sua vida o que significam essas palavras.
Lutero nasceu exatamente 17 anos antes do descobrimento do Brasil, a 10 de novembro de 1483, na localidade de Eisleben, na atual República Democrática Alemã. Seus pais são descendentes de camponeses, são mineiros que trabalham para sustentar uma família de sete filhos, dos quais Martim é o segundo. Inicialmente nada parece indicar que a vida de Martim venha a ser algo de excepcional. Vai à escola como todas as crianças da burguesia em ascensão. O pai planeja-lhe o futuro, determinando que venha a estudar direito para ter um futuro garantido. Como jurista, advogado, terá seu ganha-pão junto a alguma casa da nobreza. Toda sua vida desenvolve-se dentro do planejado pelo pai até que, em 1505, uma série de acontecimentos vêm a modificar a vida de Lutero. Ele faz a experiência chocante da realidade da morte. Adoece gravemente, mas consegue escapar da morte. O mesmo não acontece com um íntimo amigo seu, vítima de morte trágica. Além disso, a 2 de julho de 1505, Lutero viu-se envolto em outro acontecimento marcante. Voltando de uma visita aos pais e dirigindo-se à cidade universitária de Erfurt, viu-se envolvido em terrível tempestade. Perto dele, um raio partiu uma árvore. Desesperado, Lutero gritou: ¨Ajuda-me, Santa Ana, e eu serei monge.¨ Lutero despediu-se de seus amigos, vendeu seus livros e ingressou, a 17 de julho de 1505, no convento dos monges agostinianos eremitas, em Erfurt. Esse homem que entra no convento e que vai se submeter a toda a sorte de mortificações é um homem angustiado, um homem que pergunta por Deus, mas que no fundo não conhece a Deus, assim como Ele se nos quer revelar. A vida que leva no convento é séria, devota, dedicada, mas também cheia de angústias.
Lutero tinha sido ensinado que cada ser humano pode, por esforço próprio, alcançar a salvação. Dizia-se que cada homem pode fazer ele próprio sua salvação. Lutero procura concretizar isso dentro do convento, apresentando realmente todos os seus pecados aos confessores. Diversas vezes durante o dia ele os procura.- Mas sempre permanece a angústia: Será que realmente confessei tudo? Será que já assegurei minha salvação? Lutero tinha medo de Deus. Pois, o Deus que lhe foi apresentado é o Deus justo, o Deus que castiga os que são maus e que recompensa os que são bons. Uma pergunta fica para Lutero: Quando é que eu fiz o suficiente para ser bom diante de Deus? Quando é que eu vou ter a certeza de realmente não ser castigado, condenado por Deus? Esse Deus de Lutero é um Deus que exige, impassível, distante. E, quanto mais, em sua seriedade, Lutero procurava satisfazer a esse Deus, ser perfeito diante de Deus, quanto mais perfeito quis ser, mais nu se sentiu diante de Deus. Pouco a pouco ele vai descobrindo que pecado não são essas ou aquelas coisas que eu faço ou que eu deixo de fazer, mas que pecado é a minha situação diante de Deus; ele descobre sua total situação de imperfeição diante de Deus. Lutero sabe de Deus, ouviu falar de Jesus Cristo, mas não descobriu uma palavra, ou melhor, o significado dessa palavra: Evangelho.
Lutero era pessoa inteligente, esforçada. Seus superiores logo notaram isso e, depois de sua ordenação sacerdotal e de estudos teológicos, designaram-no para ser professor na Universidade da cidade de Wittenberg. Ali, o professor cheio de dúvidas teve que explicar a Bíblia a seus estudantes. Justamente ele que não entendia o que significa Evangelho. Lutero mesmo nos fala de quantas dores esse fato causou a ele. No ano de 1519 teve que dar aulas sobre o Livro dos Salmos. Já antes dera aulas sobre muitos outros livros da Bíblia e em todas essas aulas sempre teve que lutar com uma passagem bíblica. Trata-se da passagem de Romanos 1.17. Ali, Lutero lera: ¨A justiça de Deus se revela no Evangelho¨. Lutero diz que ¨odiava esta palavra ‘justiça de Deus’ ¨, pois fora ensinado a entendê-la como a justiça, segundo a qual ¨Deus é justo e castiga os pecadores injustos.¨ E continua: ¨Eu, porém, não conseguia amar o Deus justo, odiava-o isso sim, pois mesmo vivendo como monge irrepreensível, sentia-me como pecador diante de Deus…¨. Ele dizia a Deus: ¨Não basta que os pecadores miseráveis, perdidos para sempre por causa do pecado original sejam oprimidos por toda a espécie de calamidades através da lei do decálogo? Será que Deus tem que, além disso, acumular dor sobre dor através do Evangelho e ameaçar-nos com sua justiça e sua ira?¨ Vemos nessas palavras que Lutero entende ¨Evangelho¨ como a ¨boa¨ notícia de que Deus é justo, assim como nós seres humanos somos justos: Deus recompensa a quem é bom, castiga a quem é mau. Podemos entender que Lutero não tenha alegria nessa ¨boa nova¨, nessa ¨boa notícia¨, nesse ¨Evangelho¨. — Lutero só lera a metade do versículo. Deus teve piedade dele e permitiu que lesse também a segunda parte: ¨A justiça de Deus se revela no Evangelho, como está escrito: O justo vive por fé¨. Aí Lutem, entendeu que a justiça de Deus é uma justiça passiva: O Deus justo é o Deus que torna o homem justo, que lhe dá sua justiça de presente. O Deus justo é o Deus que assume o lugar do homem. Ele se deixa pregar à cruz, onde deveria estar o ser humano; ele assume toda a culpa do homem para que 0 homem possa ser justo. Deus se torna pecador para que o homem possa ser santo. Lutero vai chamar a isso de ¨troca maravilhosa¨. Essa ¨troca maravilhosa¨ se chama Evangelho. Lutero diz que quando descobriu isso, ¨as portas do paraíso¨ se abriram para ele.
Peço que guardemos isso: Lutero fora ensinado a se justificar perante Deus. No convento ele descobriu que é Deus quem se justifica, assumindo o lugar do homem. Ele descobre que o homem sofre justificação, ele é justificado.
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Procuro aprofundar um pouco mais aquilo que aconteceu no convento. Em 1521, Lutero escreveu um de seus mais belos livrinhos. Trata-se de uma interpretação do Cântico de Maria, de Lucas 1. 46-55. Esse livrinho leva por título ¨Magnificat¨, ¨Engrandece¨. São palavras tiradas do início do cântico de Maria. Estudando o exemplo de Maria em seu cântico, Lutero descreve dois tipos de seres humanos. Existe o ser humano auto-suficiente. Aquele que consegue a salvação por seus próprios meios. Ele sabe da existência de Deus, mas não precisa de Deus para a salvação. Ele mesmo se salva. Deus, no fim, tem que aceitá-lo, porque ele se salvou. Vejam, aqui há uma inversão: Deus tem que se curvar diante do homem. Deus tem que temer o homem. O homem esvazia a Deus e esse Deus não tem mais nada que dar ao homem. Esse homem é, então, o homem livre. Ele, que não precisa de Deus para alcançar a salvação, se considera Deus e age como se Deus fosse em relação a seus semelhantes. Ele passa por cima de cadáveres. Assim como ele é, ele imagina que seja Deus. Assim como ele exige coisas de outras pessoas, assim se imagina Deus exigindo coisas dele. Ele faz Deus a sua imagem e semelhança. Ele é o homem, do qual diz Provérbios 30.13: ¨É um povo, cujos olhos olham para cima e suas pálpebras estão dirigidas para cima.¨ Essa pessoa vive olhando para cima. Diz Lutero: ¨Todo o mundo procura honra, poder, riqueza, sabedoria, bem-estar e, principalmente, o que é grande e alto. E onde se encontram tais pessoas grandes e altas, todo o mundo se encosta: aí se acorre, aí se serve com gosto, aí todo o mundo quer estar e participar de sua grandeza. … Por outro lado, ninguém quer olhar para baixo, onde há pobreza, desonra, necessidade, calamidade e medo; aí todo o mundo afasta os olhos. E onde estão tais pessoas pobres e miseráveis, todo o mundo sai correndo, aí se foge delas, se as evita e se as abandona e ninguém pensa em auxiliá-las, ampará-las e socorrê-las para que venham a ser alguma coisa. Por isso têm que ficar em baixo, em posição baixa e desprezada.¨ Vejam, esse é o ser humano que se justifica; ele só pensa em sua salvação, seja ela espiritual ou material. Ele olha para cima e não vê mais nada.
Diz Lutero que o único que olha para baixo é Deus. Esse Deus que olha para baixo é o Deus que dele se apiedou e a ele se revelou, quando ele descobriu Romanos 1.17. Como é que Lutero vê esse Deus que olha para baixo? Diz Lutero que Deus está no mais alto dos céus e ali não há ninguém acima dele; logo, ele não precisa olhar para cima. Também não existe ninguém que esteja na altura dele; por isso, ele não precisa olhar para os lados. Por isso, Deus olha para baixo. O Deus, que se revela em Jesus Cristo, não é um Deus que fica esperando que o homem venha até ele, altivo. Não, o Deus que se revelou em Jesus Cristo é um Deus que desce e ele só pode ser conhecido embaixo, lá onde ele se revelou. Deus se mostra a nós na cruz. Lutero reproduz essa descoberta, que é também sua certeza, no hino ¨Cristãos alegres jubilai¨.
Lutero descobriu que somente teria liberdade a partir desse Deus. Somente deixando Deus ser Deus, aquele Deus que desce, ele poderia sair daquela necessidade dolorosa e massacrante de querer estar por cima, de querer e ter que subir. Somente deixando Deus ser Deus, um Deus que desce, ele poderia aceitar-se embaixo. ‘O Deus que desce ao homem em Cristo é aquele que aceita o ser humano, o atrai para si e lhe dá vida em sentido pleno. No instante em que Deus se lhe deu a conhecer dessa maneira, a realidade de Lutero foi mudada. Antes era a realidade do homem incurvado em si, agora era a realidade do homem em confiança, e confiança é fé. Através da liberdade que veio de Deus, Lutero conseguiu sair do círculo vicioso da necessidade do ¨ter que¨ — ¨para¨; agora passou a viver a liberdade da graça, a liberdade dos filhos de Deus, a liberdade que vive da confiança.
Essa descoberta de Lutero nós chamamos de Evangelho: Deus liberta o homem da necessidade de ter que valer alguma coisa; Deus aceita-o assim como ele é. Gratuitamente. Mas, essa liberdade só continua a ser realidade enquanto Deus for Deus, enquanto nós o aceitarmos como um Deus que desce a nós em Cristo. A partir daí podemos compreender que a palavra chave da reforma luterana é o grito: Deixai Deus ser Deus! É o grito: ¨Devemos temer e amar a Deus e confiar nele acima de todas as coisas¨! É, por isso, que o primeiro mandamento é o resumo de todo o Evangelho: Deus é Deus, esse Deus que desce, tudo o mais são ídolos que nos escravizam e não nos dão vida.
O que acontece quando Deus é anunciado dessa maneira?
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A partir de sua descoberta, Lutero passou a ter uma maneira radical de falar de Deus. Essa radicalidade vem da radicalidade da descoberta. A radicalidade com que Lutero fala de Deus está expressa na palavrinha ¨somente¨. Quando lemos suas obras, sempre de novo vamos ler, radicalmente, ¨somente Deus¨, ¨somente Cristo¨, ¨somente a Escritura¨, ¨somente a palavra¨, ¨somente a fé¨. Por que esse ¨somente¨? Lutero quer que quando se fala de Deus, realmente se fale de Deus! Quando se fala de Deus tem que se eliminar tudo o que não deixa Deus ser Deus! — Essa radicalidade foi anormal nos dias de Lutero. Ninguém duvidava da existência de Deus. Deus era ¨normal¨. ¨Anormal¨ era a maneira como Lutero falava dele. Quero mostrar agora como essa maneira ¨anormal¨ de falar de Deus provocou escândalo, como ela revolucionou tudo.
1. Quando Lutero anunciou: Deus é Deus, toda uma estrutura eclesiástica ruiu por terra. Lutero não foi o único a perguntar pelo Deus misericordioso, a procurar subir até Deus. O mundo de seu tempo está cheio de Martins Luteros. A salvação que todos procuravam podia ser comprada nos mercados públicos. Há uma lei de oferta e procura que funciona também nesses dias. A Igreja é uma instituição de salvação, que vende salvação. Pode-se conseguir salvação através da compra de indulgências, pode-se conseguir salvação viajando a Roma para participar do ¨Ano Santo¨, pode-se conseguir salvação comprando relíquias (leite da virgem Maria, estrume do estábulo onde nasceu Jesus, cera dos ouvidos do Salvador, fios de barba do Salvador, pedaços da cruz, prepúcios de Jesus, fêmures de santos, água do Rio Jordão, bolinhas da terra com a qual Adão foi feito…). Os príncipes vendem salvação: Frederico o Sábio, Príncipe-eleitor da Saxônia, tinha uma bela coleção de relíquias que lhe rendia bons dividendos. Com a venda de salvação, a Igreja aumentava suas posses, construía belas catedrais, entre elas a mais bela: a Catedral de São Pedro. E, todos iam na conversa, pois fora da Igreja não havia salvação. Bastava que a Igreja negasse a alguém a Santa Ceia e ele estava perdido, para sempre. A descoberta de Lutero acaba com a conversa fiada de que libertação de pecado se consegue por meio de dinheiro. Agora vale: libertação de pecado temos porque Deus é Deus, porque ele assume o nosso lugar na cruz. Igreja não é instituição de salvação, mas a comunhão daqueles que sabem que Deus é Deus e que somente nele, `solus’, há liberdade, salvação. Todo um aparato fica sem sentido. Sobram relíquias, sobram indulgências e o aparato institucional-eclesiástico entra em crise: não há mais dinheiro. Mas existe agora muita gente louvando com louvor autêntico: ¨Cristãos, alegres jubilai, felizes exultando; com fé e com fervor cantai, a Deus glorificando. O que por nós fez o Senhor, por seu divino excelso amor, custou-lhe a própria vida…¨. Essa maneira de falar de Deus era ¨anormal¨ e, por isso, provocou reações ¨normais¨. Ouviu-se gritos como: Esse homem violenta nossa mais sagradas tradições, é irreverente! Suas atitudes são de herege, que seja excomungado! E… Lutero foi excomungado.
2. Quando Lutero anunciou: Deus é Deus, entrou em conflito com o Imperador, ele e seus seguidores passaram a ser persegui-dos. Excomungado, Lutero foi levado à presença do Imperador. Na época, todo o bom cristão tinha que ser bom cidadão e todo o bom cidadão tinha que ser bom cristão. Quem deixava de ser bom cristão, deixava de ser bom cidadão. Quem era excomungado devia ser proscrito, perder seus direitos de cidadania, e isso significava: ser morto. A pregação de Lutero transformara-se em, deixem-me usar essas palavras conhecidas de todos nós: Um caso de Segurança Nacional. A frase ¨Deus é Deus¨ passava a ser caso político. Em abril de 1521, o Imperador exigiu de Lutero que se retratasse, que voltasse a ser bom cidadão e bom filho da Igreja. Lutero pediu desculpas por impetuosidades desnecessárias, mas rejeitou a retratação e afirmou com radicalidade: Retratação somente em caso de ser suplantado pela Sagrada Escritura e pela consciência presa à certeza de que Deus é Deus. ¨Aqui estou, não posso agir de outro modo¨. A certeza de que Deus é Deus deixa de ser descoberta pessoal e passa a ter consequências políticas.
3. Quando Lutero anunciou: Deus é Deus, entrou em conflito com seus amigos e mais íntimos colaboradores. Proscrito pelo Imperador, Lutero foi ¨seqüestrado¨ por seus amigos e levado à fortaleza de Wartburg. Ali, no silêncio, Lutero colocou-se como instrumento nas mãos de Deus, traduzindo o livro, através do qual Deus se lhe revelara como Deus: O Novo Testamento. Esse livro fala da descida de Deus em direção aos homens (Fp 2. 5-11). — Estando Lutero ausente, alguns de seus amigos resolveram auxiliar Deus. Julgaram que agora que se tinha descoberto que Deus é Deus, tinha que se ajudar Deus a ser Deus, tinha que se elevar às alturas o Deus que descera aos homens, assumindo a cruz. Julgaram que destruindo-se coisas secundárias, Deus voltaria a ser Deus. Quebraram vitrais, estátuas de santos, eliminaram a missa, introduziram o cálice na Santa Ceia, forçaram leigos a receber o vinho. Baseados em forças humanas quiseram levar Deus para cima. Lutero voltou, saiu de Wartburg e dirigiu-se a Wittenberg: pregou durante uma semana que Deus é Deus, que é ele quem mostra sua glória. Essa glória é mostrada na cruz e não em quebra-quebras. O caminho para mostrar que Deus é Deus é o caminho de Jesus. Seus amigos se separaram dele.
4. Quando Lutero anunciou: Deus é Deus, teve que anunciar que o homem é homem, indispondo-se assim com o príncipe dos pensadores da época: Erasmo de Rotterdam. Nessa proclamação, os intelectuais da época se afastaram dele. Erasmo, com toda a perspicácia que lhe era peculiar, descobriu que o centro do que Lutero vinha ensinando e de toda a revolução que estava provocando vinha da afirmação ¨Deus é Deus¨. Lutero, aliás, diz que o único que em seu tempo realmente o entendeu foi Erasmo, que, justamente por isso, dele se afastou. Para Erasmo, o homem está no centro da história. No relacionamento com Deus, o homem tem a possibilidade de até certo grau realizar sua salvação. Segundo Erasmo, o homem pode participar ativamente de sua salvação. Lutero respondeu violentamente: O homem é incapaz de fazer alguma coisa para a sua salvação. A salvação depende totalmente de Deus. Mas, perguntou Erasmo, o que é da liberdade do homem? O homem é livre! Lutero respondeu: Somente Deus é livre! A vontade livre é um atributo divino. O homem é um burro que é montado ou por Deus ou pelo diabo. A Igreja não possui meio algum para libertar o homem. Somente Deus, que unicamente tudo pode, pode libertar o homem. O homem que confia em suas forças nada mais vai conseguir do que tentar impor-se aos seus semelhantes, provocando dor e sofrimento, querendo ser Deus para os outros e não deixando Deus ser Deus. Além disso, ele nega a Jesus Cristo, pois ao afirmar que ele, homem, pode fazer sua salvação, não necessita mais da salvação que Jesus conseguiu com seu santo e precioso sangue. Diante de Erasmo, Lutero teve que gritar: ¨Devemos temer e amar a Deus e confiar nele acima de todas as coisas¨. De outra maneira não há esperança para o homem. Um hino, composto por Lutero em 1524, resume essa luta com Erasmo: ¨Das profundezas clamo a ti…¨. — Erasmo se afastou de Lutero. Melanchton, seu grande colaborador e autor da Confissão de Augsburgo, considerou-o meio louco nesse aspecto.
5. Quando Lutero anunciou: Deus é Deus, os banqueiros e todos aqueles que vivem da usura tremeram. Quando se anuncia que Deus é Deus, isso é, que ele também é dono do dinheiro, aí o pregador é ¨anormal¨, aí ele está ‘se metendo em política’. A partir de sua descoberta do senhorio de Deus em todos os aspectos da vida humana, Lutero viu-se às voltas com os banqueiros de seu tempo. Em 1539, grande seca fez escassear o trigo na região de Wittenberg. Como sempre acontece, os especuladores retiveram o trigo, forçando assim a alta do preço do produto. Lutero pregou contra o fato e, em 1540, escreveu um livro: ¨Aos párocos, para que preguem contra a usura, admoestação.¨ Diz ele: ¨Peço por amor de Deus a todos os pregadores e párocos que não silenciem nem deixem de pregar contra a usura e de admoestar e prevenir o povo.¨ Quem quer se colocar no lugar de Deus e tirar o alimento que Deus dá para todos, desse Lutero diz: ¨Deixa-os morrer como cachorros. Deixa o diabo devorá-los com corpo e alma. Não os admitas ao sacramento (à Santa Ceia) nem ao batismo, nem à comunhão cristã… Avareza e usura será o principal pecado mortal. Por causa dele todos nós teremos que sofrer a ira e a vara de Deus, porque toleramos tais pessoas malditas entre nós e não os punimos nem os combatemos, e, sim, mantemos comunhão com eles. E sobretudo, príncipes e senhores têm que pagar caro por terem a espada em vão, deixando tais assassinos e ladrões (usurários e avarentos) livremente assassinar e roubar em seus territórios com usura e inflação arbitrária.¨ Está claro que os banqueiros e os financistas não ficaram muito satisfeitos…
Citei cinco aspectos, onde podemos ver em Lutero as consequências do anúncio de que Deus é Deus. Poderíamos continuar em muitos outros mais: família, propriedade privada, terra, educação, matrimônio. A descoberta de Lutero tem consequências para todos os aspectos da vida humana. Permitam-me lembrar palavras do Catecismo Menor: ¨Creio que Deus me criou a mim e a todas as criaturas; e me deu corpo e alma, olhos, ouvidos e todos os membros, razão e todos os sentidos, e ainda os conserva; além disso me dá vestes, calçado, comida e bebida, casa e lar, esposa e filhos, campos, gado e todos os bens. Supre-me abundante e diariamente de todo o necessário para o corpo e a vida; protege-me contra todos os perigos e me guarda e preserva de todo o mal.¨ Ou, na explicação da prece ¨O pão nosso de cada dia nos dá hoje¨: ¨Que significa o pão de cada dia? Resposta: Tudo o que pertence ao sustento e às necessidades da vida, como: comida, bebida, vestes, calçado, casa, lar, campos, gado, dinheiro, bens, consorte piedoso, filhos piedosos, empregados bons, superiores piedosos e fiéis, bom governo, bom tempo, paz, saúde, disciplina, honra, leais amigos, vizinhos fiéis e coisas semelhantes.¨ O falar de Deus, em Lutero, que é excludente, por não admitir outros deuses ao seu lado, é, por outro lado, envolvente, pois não existe nenhum aspecto da vida humana, do sapato ao Presidente da República, para o qual Deus não tenha algo a dizer. Deus é o Deus que quer dar verdade, justiça e vida. Fora dele há mentira, injustiça e morte. A ele tudo interessa, pois ele amou o mundo, esse nosso mundo (Jo 3.16), para o qual só há esperança nele.
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