Diante do espelho: desafio à coerência e ao cuidado
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Tiago 1.17-27
Leituras: Deuteronômio 4.1-2,6-9 e Marcos 7.1-8,14-15,21-23
Autoria: Ramona Weissheimer
Data Litúrgica: 15º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 02/09/2018
“Assim como o fogo sempre produz calor e fumaça, também a fé sempre vem acompanhada do amor” – (Martim Lutero)
1. Introdução
Como ser igreja de Jesus Cristo num mundo pós-moderno, carente de valores ou desiludido dos velhos valores? Como enfrentar o vazio, tão recheado de banalidades que pretendem preenchê-lo? Como olhar no espelho e não esquecer, no próximo minuto, a imagem alivista, confundida entre as milhares que bombardeiam o celular, o notebook que, enfim, tornaram-se nosso HD externo, substituindo o cérebro? Como ser coerente, como ser cuidadoso? Como não perder a alma? Seriam essas perguntas semelhantes às feitas pelo autor da Carta de Tiago em sua época? Mas, quem sabe, diante dos desafios, da solidão, da superficialidade ou do vazio de um mundo pós-moderno, carente de graça, a “epístola de palha” nos ajude a enxergar o menino Jesus deitado na manjedoura, a encontrar o evangelho que une as duas traves da cruz: a graça que vem de Deus e que se doa horizontalmente aos irmãos e irmãs.
O texto de Tiago 1.17-27 já foi trabalhado uma vez no PL, por Arteno I. Spellmeier, para o 16º Domingo após Pentecostes (01º.10.2000), mas acompanhado de outras leituras (Is 35.3-7 e Mc 7.31-37).
Marcos 7.1-8,14-15,21-23 – Fariseus e mestres da Lei questionam Jesus pelo fato de seus discípulos não seguirem as regras dos antigos, que mandam lavar as mãos antes de comer. Fazem de tradições humanas a lei de Deus. Porém, não é o que vem de fora que contamina, mas o que está dentro, pois é do coração que brotam as impurezas e maldades.
Deuteronômio 4.1-2,6-9 – Traz a admoestação para que os israelitas sigam a lei que recebem de Deus, pois não há nenhum outro povo que tenha um Deus tão próximo e que lhes dá leis tão boas. E que não acrescentem nem tirem nada!
Tiago 1.17-27 – Tudo de bom que existe foi criado por Deus. Inclusive nós mesmos (v. 17-18). Devemos estar prontos para ouvir, lentos para falar e ficar com raiva. Porque a raiva só leva a coisas que Deus não gosta. Aceitar a Palavra com humildade, pois ela é para a salvação. Colocar em prática a mensagem recebida. Quem não coloca em prática não exercita e esquece. Olha-se no espelho e já não lembra mais. Deus abençoa quem não esquece sua palavra, quem a põe em prática. Não adianta se dizer religioso se não souber controlar a língua. O que Deus quer é ajudar as viúvas e os órfãos e não se deixar levar pelas coisas do mundo. Portanto os textos falam da lei de Deus, da boa lei com que Deus nos presenteia, de justiça e misericórdia, e da mensagem do Evangelho de justiça e misericórdia, que não podem ser transformadas conforme nossa vontade nem esquecidas.
2. Exegese
Foram comparadas as versões da Bíblia de Jerusalém (BJ), Almeida, Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH), Nova Versão Internacional (NVI) e Nestlé-Alland. Não há grandes diferenças que produzam graves discordâncias, mas sim mudança de linguagem ou vocabulário e alguns acréscimos. Assim, no v. 17, nele não há mudança nem sombra de variação (BJ e demais), a NTLH acrescenta o que causaria escuridão; no v. 18, a BJ traz “gerados”, e as demais versões “nascidos”; v. 22, Almeida acrescenta ao não se enganem as palavras com falsos discursos. Nos v. 25 e 27 há uma mudança um pouco maior na NTLH em relação às demais, trazendo o evangelho é a lei perfeita que dá liberdade às pessoas, no lugar de a lei perfeita dá liberdade (v. 25); e para Deus, o Pai, a religião pura no lugar de religião pura para com Deus. Desta forma, vemos que Almeida faz uma acréscimo, no v. 22, enquanto NTLH acrescenta no texto expressões que constam na explicação dos versículos de BJ, fazendo uma interpretação. Porém, nada que traga dificuldades para o presente estudo.
Conforme E. Lohse, a Carta de Tiago não foi aceita por todos os pais da igreja e nem tão pacificamente; alguns não a conheciam, outros não aceitavam. Lutero a considerou “epístola de palha” por valorizar muito as obras; o critério de Lutero era “o que promove a Cristo”. Porém, mesmo assim, Lutero decidiu deixar a Carta de Tiago no cânon por ocasião da tradução.
Por volta de 200 d.C., para Irineu, entre as cartas católicas não figura ainda Tiago; nem em Tertuliano, Clemente de Alexandria ou no cânon Muratoriano. “Se também II Pedro, II e III João, Judas e Tiago devem ser incluídas no cânon, é um problema que foi profundamente tratado nos séculos III e IV, sendo finalmente decidido afirmativamente” (Lohse, 1985, p. 17).
Orígenes, na igreja grega, classificou Tiago entre os livros “controvertidos”, junto com 2 Pedro, 2 e 3 João, Hebreus e Judas. Eusébio, no século IV, classificou Tiago entre os livros que encontram contestação, mas que são reconhecidos pela maioria dos cristãos. O bispo Atanásio de Alexandria, em pastoral comemorativa da Páscoa de 367 d.C., enumerou 27 livros no Novo Testamento, aí incluída a Carta de Tiago. No final do século IV, com a aproximação das igrejas latina e grega, a aceitação do cânon foi confi rmada nos Concílios de Hipona (393) e Cartago (397). Aí estava incluída a Carta de Tiago. A igreja síria aceitou logo Tiago entre as cartas católicas.
A igreja medieval e os Reformadores aceitaram os 27 livros. Alguns humanistas, porém, punham em dúvida a autoria apostólica de alguns escritos, em especial, das cartas católicas. Lutero, no prólogo da Carta de Tiago, em 1522, coloca como “pedra de toque” o que promove a Cristo. Daí sua desconfiança com a chamada “epístola de palha”, por ressaltar demais as obras.
A designação “católicas” teria sido empregada no final do século II pelo apologeta Apolônio. O título se deriva do fato de não serem dirigidas a pessoas ou comunidades específicas, mas aos cristãos em geral. Desta forma, carta “católica” designa bem a Carta de Tiago, dirigida a todo o povo de Deus espalhado pelo mundo inteiro (v. 1) (NTLH) ou às doze tribos da dispersão (BJ).
Lohse traz um breve esquema do conteúdo da carta. De forma solta, ela contém sabedoria proverbial e parênese: saudação inicial (1.1), sobre tentações (1.2-18 – os dois primeiros versículos de nosso texto estão aqui), sobre o ouvir e o fazer (1.19-27 – nosso texto em si), da acepção de pessoas (2.1-13), sobre a fé e as obras (2.14-26), sobre o perigo do cargo de ensinar e o poder da língua (3.1-12), contra a disposição de brigar (3.13-4.12), contra comerciantes de orientação mundana e contra os ricos (4.13-5.6), palavras de consolo e exortação (5.7-12), normas para diferentes situações da vida (5.13-20).
A carta começa com uma saudação, mas não tem conclusão. Não se enquadra facilmente nos moldes tradicionais de epístola, parecendo mais ser uma homilia, conforme a introdução em BJ. Nas instruções para o comportamento dos cristãos no mundo, há muito material de tradição (sabedoria veterotestamentária, provérbios, filosofia popular helenista, “lógica”). Muito material de tradição judaica.
Chama a atenção várias aproximações a ditos do Senhor nos evangelhos sinóticos. Mas não citados como sendo palavras do evangelho, porém inseridos junto com uma série de exortações. “O Sermão do Monte finaliza com um apelo insistente de praticar as palavras de Jesus (Mt 7.24-27), e em Tg 1.22 lê-se: Sede praticantes da palavra, e não somente ouvintes” (Lohse, 1985, p. 222). A explicação de Lohse e da BJ é que não há uma relação de dependência literária. Mas tradições transmitidas oralmente teriam sido compiladas em complexos semelhantes a catecismos, por um lado no sermão do monte, respectivamente, do campo, por outro lado, em Tiago.
Na questão sobre fé e obras, é provável que Tiago não tenha querido combater Paulo, mas certos cristãos que tiravam consequências nefastas de sua doutrina (fé x obras). Para Lohse, não se argumenta à base de um conhecimento exato da teologia paulina, porém se realiza um distanciamento de citações mal entendidas de Paulo, a fim de realçar a cooperação de fé e obras, que deve levar ao alvo da perfeição.
Sobre a autoria, conforme a tradição da igreja antiga, seria Tiago, irmão do Senhor. Tiago, filho de Zebedeu não pode ser, pois foi mandado matar por Herodes, em 44 d.C. (At 12.2). Porém, entre outras coisas, se fosse o irmão do Senhor o autor, a carta não teria tido tanta dificuldade para se impor. Além disso, foi escrita diretamente em grego, elegante, com vocabulário rico e boa retórica. Pensou-se num secretário helenista, mas isso também não se manteve. A provável composição fica no fim do século I ou início do II, quando a atuação de Paulo já ficava para trás há algum tempo. Apresenta regras de vida permanentemente válidas, não determinadas por local ou situação, o que não permite deduzir local de redação.
3. Meditação
“Epístola de palha!” Que falar sobre ela, tão pouco conhecida, nem sempre ouvida? Ao longo da história, esta carta foi ora vista com reservas, ora deixada de lado e rejeitada. Mas por quê? O que a faz assim tão diferente, que alguém chega a dizer que não é evangélica? Os antigos a excluíram dos cultos ao longo do século II, e só em 367 d.C. passou a integrar o cânon. A Idade Média a relegou ao esquecimento, não quis ouvi-la. Talvez porque à igreja medieval, rica e poderosa, não agradassem as marteladas de Tiago contra os que dormem tranquilos sobre seu luxo e riqueza, conquistados às custas do trabalho mal pago e do sofrimento alheio. Lutero a chamou “epístola de palha”, vendo em seu chamado às obras e na necessidade dessas para a salvação uma teologia diametralmente oposta àquela de Paulo, que diz que o justo viverá por fé – se bem que na segunda versão do Novo Testamento a tenha reabilitado, lembrando o que de bom e belo havia em seu texto.
Há os que dizem nem tratar-se de uma carta cristã, mas de uma circular judaica, apenas maquiada. E há ainda os que buscam nela as palavras de alguém que vendo o sofrimento do seu povo, curvado diante de miséria e injustiça, toma de empréstimo a radicalidade dos profetas e do próprio Jesus Cristo para clamar por justiça e coerência. Alguém que, em fins do primeiro século ou início do segundo, entende por “lei perfeita” não as obras para “contar pontinhos no céu”, mas a união entre o ouvir atento e o praticar amoroso, enfim, da fé com seus frutos: visitar o órfão e a viúva em suas tribulações, guardar-se dos males do mundo. Ao contrário do que muitos pensam, talvez o autor da Carta de Tiago não estivesse polemizando com Paulo e sua teologia, mas tendo em vista um cristianismo frouxo que invoca a fórmula paulina apenas para servir de pretexto para sua acomodação. A mensagem de Tiago põe a descoberto todo o cristianismo que se esconde sob aparências, e vive de palavras bonitas, mas vazias. Deixava entrever Eusébio de Cesareia, em sua História Eclesiástica (século IV), que o martírio era necessário para manter a igreja viva e fervorosa, para que não se acomodasse. Tiago é ainda hoje uma correção salutar para toda fé que degenerou em teoria, em puro “saber de Deus”, descarnado e desencarnado.
Talvez as expressões mais moralistas e as exigências mais complicadas nos afastem de Tiago. Mas o que dizer de seu apelo para se cumprir aquilo que se ouve? Atualidade tremenda! Maior até do que gostaríamos. Tiago escreve para uma comunidade ou para uma cristandade em que há pobres explorados e ricos exploradores e pede coerência. Para Tiago, a denúncia do hoje e o anúncio da esperança para o amanhã não são suficientes. Não bastam belas palavras e boas intenções. É preciso cumprir a “lei perfeita”, lei que não prende nem amarra, mas liberta: a lei do amor.
Vivemos em uma “sociedade do efêmero”. Agita-se durante algum tempo, também sob o embalo da mídia, mas passado o bonde logo perde o trilho. “Assim é que o ouvinte da palavra e não cumpridor olha-se no espelho…”: vê uma ruga, um cabelo branco, olheiras, uma barriguinha. Promete a si mesmo seguir os conselhos do médico, dormir mais, alimentar-se melhor. Sai de diante do espelho, arma-se de uma Coca-Cola e de uma barra de chocolate e vara mais uma noite diante do computador, enquanto lá fora a noite cai, está frio, e muitos vão dormir com fome.
É preciso prestar mais atenção, ouvir mais, falar menos, dedicar-se mais, antes que a vontade passe e os detalhes sejam esquecidos. O desafio de Tiago nada mais é que a coerência, desafio de Cristo também: ouvir e pôr em prática.
4. Imagens para a prédica
Além da pessoa diante do espelho com suas rugas e cabelos brancos, que logo esquece de suas intenções de mudança, poderíamos iniciar a meditação tendo por “gancho” uma historinha.
“João e Maria vão ao culto, pois já estava na hora. Ali ouvem a prédica envolvente que, expondo as dores do mundo, convida a agir diferente, a cuidar e amar. As imagens do powerpoint apertam seus corações, e eles ficam encantados com as palavras da ministra, prometendo a si mesmos que, ao sair dali, vão ajudar a quem precisa, seja o velhinho a atravessar a rua ou o mendigo que pede um pão. Saem enlevados, mas, atravessado o pátio da igreja, vem o primeiro som do celular e, então, as belas imagens de borboletas voando ou fofos gatinhos brincando os impede de ver o velhinho que não consegue atravessar a rua movimentada, e de ouvir a criança esfarrapada que pede um pão. Chegando em casa, alguém pergunta: ‘Como foi o culto?’ ‘O culto? Nem lembro… mas olha aqui que lindos gatinhos eu recebi!’.”
Bibliografia
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. 4. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1985.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).