Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: Tiago 3.1-12
Leituras: Isaías 50.4-9a e Marcos 8.27-38
Autora: Günter Adolf Wolff
Data Litúrgica: 16º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 16/09/2012
1. Introdução
O que o texto de prédica (Tg 3.1-12) e os dois textos de leitura (Is 50.4-9a e Mc 8.27-38) têm em comum? Eles têm em comum a questão da palavra, da fala, do discurso. A fala revela a nossa prática de fé. O que eu digo é o que eu penso, e o que eu penso eu faço.
Isaías diz uma boa palavra ao cansado. Como o profeta não se retraiu em dizer uma boa palavra ao cansado, colocou-se ao lado do oprimido e por isso foi perseguido e torturado. Ser fiel à proclamação da palavra de Deus traz a perseguição por parte dos opressores.
Marcos fala da confissão de Pedro, quando esse confessa que Jesus é o Cristo. Marcos desafia-nos com a pergunta de Jesus: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?”. Jesus lembra que, por causa do anúncio e da prática da palavra de Deus, ele vai ser preso e morto. Significa que falar de Jesus e de seu Reino é algo perigoso. Se você fizer uma opção clara como Jesus fez, ao colocar-se ao lado dos cansados, fracos e oprimidos, você estará ameaçando o poder estabelecido, como Jesus o ameaçou, conforme diz em Lucas 23.1-5. Por isso ele foi morto na cruz.
Tiago faz lembrar uma palavra de Jesus em Mateus 12.34: “Raça de víboras, como podeis falar coisas boas, sendo maus? Porque a boca fala do que está cheio o coração”. Por isso Tiago levanta a questão do falar. O cristão deve falar do que está cheio o coração: a mensagem esperançosa do evangelho do reino de Deus, que aponta para uma nova sociedade não capitalista hoje. Não reproduzir a fala da classe dominante, que legitima a opressão sobre a classe trabalhadora. Isso evidentemente trará a cruz, como também nos apontam Isaías e Marcos.
2. Exegese
Podemos fazer uma divisão do texto de Tiago 3.1-12 com base em assuntos interligados à questão da língua:
v. 1-2 – só quem é um verdadeiro mestre não tropeça no falar;
v. 3-5 – exemplificações sobre pequenas coisas que se tornam grandes catástrofes ou grandes bens;
v. 6-8 – a língua é fogo;
v. 9-10 – com a língua bendizemos e amaldiçoamos;
v. 11-12 – a língua como contradição entre fé e vida.
Tiago já havia levantado a questão do falar e do controle da língua em 1.19 e 26, e isso tem a ver com a prática da fé, ou seja, com a coerência entre ensinar, falar e agir. O falar deve ajudar na construção do reino de Deus.
Tiago 1.22-25 faz a relação entre palavra e prática: “Tornai-vos, pois, praticantes da palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos”. O nosso falar deve materializar-se em nossa vida prática. Para Tiago, a palavra tem a ver com a lei perfeita da liberdade. A palavra dita deve trazer e apontar para a liberdade. Paulo diz em Gálatas 5.1: “Para a liberdade foi que Cristo nos libertou”. A fala deve sempre preservar a liberdade que Cristo conquistou para nós na cruz. Tiago 3.13 lembra: “Quem entre vós é sábio e inteligente? Mostre em mansidão de sabedoria, mediante condigno proceder, as suas obras”.
Na comunidade de Tiago, muitos querem ser mestres. Tiago adverte que, para os mestres, o julgamento será mais rígido. Isso lembra a palavra de Jesus em Lucas 12.48: “Àquele a quem muito foi dado, muito lhe será exigido; e àquele a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão”. Tiago exige daqueles que querem ser mestres que mostrem sua sabedoria por meio das boas obras e da coerência entre fé e prática de vida. Ser mestre e sábio não condiz com palavrório indigno, que só destrói o trabalho da comunidade. Tiago lembra no v. 3: “Ora, se pomos freio na boca dos cavalos, para nos obedecerem, também lhes dirigimos o corpo inteiro”. O falar tem a ver com o fazer e a direção a tomar. Jesus lembra disso em Lucas 6.45: “O homem bom do bom tesouro do coração tira o bem, e o mau do mau tesouro tira o mal; porque a boca fala do que está cheio o coração”. Como mestres, nossa tarefa é bendizer, e por isso não podemos, como diz no v. 10, bendizer e maldizer ao mesmo tempo: “De uma só boca procedem bênção e maldição”. Coerência no falar e no fazer é exigida para que haja credibilidade no projeto do qual a comunidade fala: o reino de Deus.
Tiago dá vários exemplos de como coisas pequenas conduzem a catástrofes, como no v. 6 e no exemplo do navio, no qual um pequeno leme mantém a sua rota (v. 4). O v. 3 fala da prática de guiar o cavalo, colocando um freio na boca, para dirigi-lo ao lugar certo. Tiago exorta a comunidade para que dentro dela não se fale mal de um irmão, pois isso é incoerência em relação à fé (v. 9-10). Deve haver uma coerência entre fé e prática. Coerência entre o falar e o fazer significa o viver dentro da comunidade e fora dela. O nosso testemunho a respeito de Jesus Cristo e de seu Reino dá-se pelo falar e pelo fazer, e ali deve haver coerência.
Elza Tamez diz em seu livro sobre Tiago: “Se as comunidades às quais Tiago se dirige são discriminadas e oprimidas por fora, devem, pois, fortalecer-se interiormente e não se deixar minar por divisões internas e mal-entendidos entre si. O melhor é serem transparentes e sinceras entre si. … Como se pode perceber, para Tiago, a integridade no sentido de ser consistente com ele próprio, com os demais e com Deus é fator vital na práxis”.
Tiago 2.21-23 acentua a questão da coerência entre fé e obras: “Não foi por obras que Abraão, o nosso pai, foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque? Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou e se cumpriu a Escritura, a qual diz: Ora, Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça”. O falar comunica nossa fé pelas palavras, e o fazer comunica nossa fé pela prática. As duas devem interligar-se e ser coerentes. Conversa fútil, conversa mole, intrigas, fofocas e luta pelo poder na comunidade não ajudam na construção dessa nova sociedade que Jesus chama de reino de Deus, que aponta para uma nova sociedade, fraterna e justa.
Quem controla as suas palavras, sua fala, controla também toda a sua vida e a mantém na direção que o evangelho propõe e não se deixa desviar do objetivo, que é o reino de Deus. No exemplo do freio na boca do cavalo e do leme do navio, Tiago coloca de forma positiva o assunto da fala na vida comunitária e fora dela (v. 3-4). A fofoca na vida comunitária não constrói nada, mas reforça o projeto do mundo. Tiago finaliza com o exemplo da própria natureza nos v. 11-12, onde não há contradições, mas coerência: a figueira não produz azeitonas. Aponta-se para a coerência entre o falar e o fazer. Conversa fiada e fofoca não ajudam em nada na proclamação do evangelho do reino de Deus. Em nossa fala, não podemos perder o foco: Jesus Cristo proclama o reino de Deus; o resto é conversa fiada. Só que o evangelho do reino de Deus sempre entra em confronto com as propostas do reino deste mundo. Daí vem a cruz, como nos apontam os textos de Isaías e Marcos.
3. Meditação
O tema da língua como motor de uma nova sociedade já nos é levantado em Gênesis 11.1-9. Deus usa a língua com o sentido de linguagem (ideologia e teologia) para propor uma nova forma do povo organizar-se, a partir da fé em Deus, numa sociedade livre, descentralizada e pluricultural, não dominada pelo Estado (cidade com uma torre onde mora o rei que quer ser deus). Na sociedade romana em que Tiago vive, onde o imperador quer ser deus, a comunidade continua lutando por uma nova sociedade, que Jesus Cristo chama de reino de Deus. Esse reino se opõe à sociedade vigente por uma nova prática de fé e de fala. Por isso é preciso cuidar da língua para não se ter a mesma linguagem e prática dos opressores. A prática dos opressores é falar uma coisa e fazer outra. Tiago luta pela coerência na fé. Fé e prática (obras) têm que combinar, como ele diz em Tiago 2.14-26.
Cuidado para não entrar no moralismo dos costumes, pois o capítulo 3 continua o tema do capítulo 2, que fala sobre a fé e a prática: coerência entre fé e prática; falar e viver o que se fala. Todo o livro de Tiago é um desafio frente à realidade opressiva, que não deve ser reproduzida pela comunidade. A fé em Jesus Cristo não legitima uma sociedade corrupta e amoral como a romana e como a nossa hoje, que usa a fé para oprimir e reproduzir a opressão vigente. A fé das religiões romanas era usada para legitimar as ações do Estado, nas quais o Estado era endeusado, divinizado na pessoa do imperador. O Estado é a instituição que está a serviço de uma classe social ontem e hoje. O Estado usa a língua e a linguagem (ideologia) como mecanismo de repressão e persuasão para perpetuar essa sociedade desigual, em que uma classe vive à custa de outra, tanto a romana como a de hoje. Em Tiago 4 e 5, continua-se o tema do mundo, nosso inimigo, que usa a linguagem para nos afastar do projeto do reino de Deus, iniciado por Jesus Cristo, que propõe uma nova sociedade, hoje não capitalista, pois no reino de Deus não existem exploração nem opressão.
Na sociedade de hoje, a fé em Jesus Cristo é usada para legitimar o capital, que tem sua teoria, sua fala, na teologia da prosperidade, que usa a fé em Deus para viabilizar a ganância de evocar a riqueza como bênção de Deus. Jesus deixa claro em Mateus 19.16-30 e Lucas 6.24-25 que riqueza não é bênção de Deus. Sabemos que ninguém fica rico apenas com seu próprio trabalho. Só se fica rico explorando o trabalho alheio. É disso que Tiago fala no capítulo 5.1-6, que mostra como se fica rico, e no capítulo 2, que fala que deferência frente aos ricos é um insulto a Deus, visto que esse escolheu os pobres para ser ricos em fé e herdeiros do reino (Tg 2.5-7). Sabemos hoje que a exploração ocorre no pagamento do salário, que compreende apenas o trabalho necessário (que serve apenas para alimentar o trabalhador e sua família), e não o trabalho excedente, que é o tempo em que se trabalha de graça para o patrão, que gera a mais-valia, o lucro. O capital surge dessa parte que não se paga ao trabalhador. Portanto a origem do capital está no roubo de parte do trabalho feito, mas não pago. É disso que Tiago 5 fala.
O nosso falar deve pautar-se pela proposta do reino de Deus, que se contrapõe ao mundo. A comunidade não pode entrar no jogo do mundo (Tg 4.4), que usa a fé em Jesus Cristo para manter o sistema de opressão montado em nossa sociedade, que tem o Estado como aparelho legítimo da classe dominante, que o usa para seus próprios fins e contra a classe oprimida.
Conversa fiada e fofocas na comunidade desviam o foco da existência da própria comunidade, que é a participação na construção do reino de Deus, que hoje aponta sempre para uma nova sociedade. Para nossa credibilidade como comunidade, é fundamental a coerência entre o falar e o viver em direção a essa proposta do reino de Deus, que inevitavelmente entrará em choque com o projeto capitalista, que usa a fé em Jesus Cristo para se legitimar, dizendo que riqueza é bênção de Deus. Por isso, cuidado com a língua. Se queres ser mestre, deves ter clareza teológica, e para ter clareza teológica, precisas estudar a palavra de Deus com as demais pessoas da comunidade; para isso nosso povo não se dispõe por comodismo.
4. Imagens para a prédica
Para falar da língua (do falar) como linguagem, sugiro usar Gênesis 11.1-9. Esse texto serve de exemplo para mostrar o que a linguagem é capaz de fazer para brecar um projeto opressor do Estado e viabilizar o projeto de Deus de uma sociedade descentralizada, livre e pluricultural, sem o Estado como instrumento de opressão de uma classe sobre a outra. Para recontar a história da cidade e da torre de Gênesis 11, tem que se usar a tradução do Almeida, que usa o termo “linguagem” e não língua, o que muda o sentido. O conflito central desse texto é a construção da cidade (significa: Estado), que tinha uma torre (quartel onde moram o rei e seu exército), que foi brecado por Deus ao mudar a linguagem dos camponeses palestinos, que haviam assumido a linguagem do Estado controlado pela classe dominante. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje usa o termo língua. O termo linguagem é mais amplo, pois pressupõe a ideologia, a cultura, os costumes, o jeito de pensar e compreender o mundo e a sociedade como um todo.
Sugiro recontar o texto de Gênesis 11.1-9 no início da pregação, como exemplo para falar da língua (linguagem) que os mestres usam, segundo Tiago, para propagar o evangelho do reino de Deus, que propõe uma nova sociedade hoje, e para não propagar a linguagem teológica falsa que separa a fé em Jesus Cristo, que anunciou o reino de Deus, da prática da vida. A linguagem do evangelho do reino de Deus é revolucionária e não divisionária, como era a prática da comunidade de Tiago.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
Confessamos que falamos muito na comunidade sobre muitos assuntos, sem conhecimento de causa. Confessamos que gostamos de fazer fofocas na comunidade para chamar a atenção sobre nós mesmos. Confessamos que não estamos dispostos a nos reunir para estudar em conjunto o evangelho do reino de Deus por preguiça e comodismo. Confessamos que procuramos viabilizar dentro da comunidade as propostas de nosso mundo. Confessamos que temos medo para falar sobre o evangelho do reino de Deus, que propõe uma nova sociedade para as outras pessoas e para os nossos familiares.
Absolvição:
Eu os livrarei de todas as suas maneiras de pecar e de me trair. Eu os purificarei, e eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus (Ez 37.23).
Kyrie eleison:
Pelos trabalhadores/as que são explorados e não recebem um salário digno; pelos trabalhadores/as que ficam doentes por causa do ambiente insalubre em que trabalham; pelos agricultores/as que ficam doentes por causa do veneno que aplicam nas lavouras.
Gloria in excelsis:
Glorificamos a Deus por sua Palavra, que proclama o reino de Deus como proposta de uma nova sociedade, fraterna e justa. Pelas pessoas que, a partir da fé, vivem e lutam pelo reino de Deus, que pressupõe uma nova sociedade.
Oração geral da igreja:
Interceder pelos doentes e pelos que cuidam de doentes; pelas autoridades do município, estado e país, para que se empenhem conosco na construção do reino de Deus, que aponta para uma nova sociedade; interceder pelas pessoas de nossa comunidade para que falem do evangelho do reino de Deus aos outros e vivam essa proposta em coerência no dia a dia de suas vidas.
Bibliografia
SCHRAGE, Wolfgang. Die Katolischen Briefe, in: Das Neue Testament Deutsch, v. 4. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1976.
TAMEZ, Elsa. A Carta de Tiago. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).