Discipulado é loucura, como a cruz
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Tiago 5.13-20
Leituras: Números 11.4-6,10-16,24-29 e Marcos 9.38-50
Autoria: Leonídio Gaede
Data Litúrgica: 19º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 30/09/2018
1. Introdução
Quando li os textos previstos e me caiu a ficha de que precisava elaborar, a partir deles, um auxílio para a pregação, tive o sentimento de ter entrado numa fria. A começar pelo desafio de precisar encarar a controvertida Carta de Tiago, a tarefa me pareceu difícil. O que fazer com o texto de quem, segundo Martim Lutero, “quis combater os que confi avam na fé sem obras, e foi fraco demais” (PL XV). O que fazer com um documento de exortação que cita o nome de Jesus Cristo apenas duas vezes (PL XIII) e omite a teologia da graça de Paulo? Será que a Carta de Tiago teve a sua importância diminuída na teologia depois que os ricos tomaram conta da igreja e se tornaram os porta-vozes do que tem importância e do que não tem (Elsa Tamez)? Se lidar com a Carta de Tiago é complicado, o que dizer do fracassado Moisés retratado em Números 11? Depois que a ira de Javé fez o fogo consumir parte do acampamento, o “populacho” (Almeida) provocou outro tipo de incêndio, que quase consumiu a liderança de Moisés, a ponto dele pedir para morrer. E, em terceiro lugar, como se não bastasse a falta de graça nas exortações de Tiago e a desgraça no acampamento de Moisés, as cenas de terror de Marcos 9, patrocinadas pelos versículos 42 a 48. Alguém pode ser lançado ao mar com uma pedra de moinho no pescoço; alguém pode ir para o céu com mão e pé decepados e olho arrancado.
Encarando o desafio, podemos falar de uma espécie de parceria dos três textos previstos para o 19º Domingo após Pentecostes na forma de afirmar o desenvolvimento do projeto de Javé (Antigo Testamento) e do discipulado de Jesus Cristo (Novo Testamento). Assim sendo, temos diante de nós um conteúdo que é sobre o seguimento. Além disso, temos diante de nós uma maneira de ensinar sobre esse seguimento.
2. Exegese
Se na liturgia, originalmente, os 40 dias que antecedem a Páscoa preparavam neófitos para o batismo e os 40 dias que seguem a Páscoa serviam para afirmar a centralidade da ressurreição, temos agora um período posterior a Pentecostes para afirmar o seguimento do ressurreto através de uma igreja inundada pelo Espírito Santo. Esse terceiro período deve ser didaticamente, no mínimo, tão forte como os dois primeiros. E se formos radicalizar esses “três tempos” da fé cristã com o mesmo peso pedagógico, chegaremos ao seguinte: 1º) 40 dias antes da Páscoa: a loucura da cruz é poder de Deus para quem se salva (1Co 1.18); 2º) 40 dias depois da Páscoa: sem ressurreição tudo é em vão (1Co 15.14); 3º) o tempo posterior a Pentecostes: a igreja é fruto da inundação do Espírito Santo (Gl 5.22-26), e isso aplica a loucura da cruz ao discipulado. Com essa chave de leitura, encaramos o desafio de trabalhar com os textos previstos.
Era evidente que o grupo de Moisés entraria em crise. Faltava-lhe a dimensão do terceiro tempo. O grupo não tinha ideia do que era a loucura da cruz no seguimento do plano de Javé. A inundação espiritual veio depois da crise de fogo, quando foram preparados mais 70 líderes (Nm 11.16). A partir do princípio de que a Bíblia lê a Bíblia, podemos aplicar Lucas 9.57-10.3 à situação narrada em Números 11 e notar que o grupo de Jesus se antecipou ao tipo de crise sofrida pelo grupo de Moisés. Em outras palavras, evitou a crise porque tinha a dimensão do terceiro tempo, e o grupo de Moisés entrou em crise por causa da ausência desse tempo no processo que seu grupo estava vivendo.
Por causa da questão do seguimento, Marcos 9 precisava radicalizar o assunto na questão dos tropeços (v. 42). O texto anterior acabou de ensinar que o último é o primeiro, que o menor é maior e que a tolerância faz parte do processo (v. 33-41). E esse ensinamento tinha como motivação o fato de os discípulos de Jesus terem demonstrado que não estavam inundados pelo Espírito que aplica a loucura da cruz ao discipulado, mas sim pelo mesmo espírito que incendiou o acampamento do grupo de Moisés.
E, por seu lado, Tiago, às vezes visto como quem omite a dimensão da graça e da fé, está, na verdade, alinhando a fé cristã à radicalidade do seguimento de Jesus Cristo, o que é tema do tal terceiro período, que vai de Pentecostes ao Advento. Por coerência das Sagradas Escrituras, Tiago também está alinhado ao desenvolvimento do projeto de Javé no caso do grupo de Moisés. Em outras palavras, as exortações de Tiago teriam caído bem naquela situação em que estava o grupo de Moisés. Tiago diminui o volume sobre a fé confessada e aumenta o som da fé praticada. Parece que era isso que estava faltando às pessoas que se agregaram ao grupo de Moisés: queriam participar do projeto de libertação de Javé, mas não conseguiam se livrar do way of life de escravos sob jugo do faraó no Egito.
Nestor Paulo Friedrich, no PL XIII, p. 262, diz que Tiago “não está polemizando contra Paulo e sua teologia” e lembra que, segundo Goppelt (1982), “tem em vista um cristianismo frouxo que invoca a fórmula paulina apenas para lhe servir de pretexto para sua acomodação” (p. 461) e “põe a descoberto todo o cristianismo que se esconde sob aparências e vive de palavras vazias e ideias quietistas” (p. 471). Também cita Wendland (1981): “Tiago é ainda hoje uma correção salutar a toda fé que degenerou em teoria, em puro saber de Deus” (p. 130). Percebemos melhor o sentido desses comentários quando situamos a autoria da Carta de Tiago entre o fim do 1º e o início do 2º século. Trata-se de um ensino a partir da crise da inexistência de cristãos testemunhas oculares das obras de Cristo. Imagine: a fé cristã agora era defendida por quem não tinha visto tudo o que a primeira geração viu.
v. 13: A palavra kakopathei (de kakopateō) pode indicar sofrimento espiritual decorrente de doença ou outra crise pessoal. O texto não apresenta o sofrimento como motivo para conformação com o destino, mas como razão para um chamado à resistência e à ação. A pessoa sofredora torna-se protagonista. Na oração assume-se o que está havendo. Ela torna objetiva, delimita com palavras, o que está subjetivamente presente na pessoa que sofre. A nuvem pesada que paira sobre a pessoa doente é dissipada pela oração quando ela promove uma compartimentação e delimitação do sofrimento. A dor não pode inundar a alma. O Espírito Santo deve inundar a alma. A dor deve ser cercada pela consciência da razão. O Espírito deve atuar sem as fronteiras do pensamento.
v. 14: A palavra usada aqui é asthenei (de astheneō). Trata-se da mesma palavra usada para se referir à multidão de enfermos que estavam nos cinco pavilhões do tanque Betesda, dos quais Jesus curou aquele homem que estava na sua enfermidade há 38 anos e não conseguia se mover a tempo para chegar ao tanque antes dos outros, quando as águas se agitavam, e não tinha alguém que o levasse (Jo 5). Aqui no texto de Tiago, a pessoa doente tem encargos, isto é, ela exerce protagonismos. Ela deve chamar presbíteros, não são outras pessoas que o fazem. A função do presbitério aqui não se resume à verificação se a pessoa doente está em dia com a tesouraria, mas torna-se uma liderança espiritual. Talvez ao nosso ouvido soe mais comum alguém indicando uma pessoa a ser visitada. Costumamos tornar a pessoa doente demasiadamente passiva, como se a doença fizesse perder as faculdades do querer, gostar, desejar, ter opinião, preferência etc. Chamados, os presbíteros fazem oração, mas comunicam não só com palavras. Comunicam com o gesto concreto da unção com óleo que o poder da cura não falta a Deus.
v. 15: Tiago parece prevenir contra a tendência que viria depois dele de entregar o legado da cura aos procedimentos advindos do conhecimento humano. A forma de cura que viria a ser aceita como modelo padrão é aquela baseada nos conhecimentos adquiridos graças ao desenvolvimento da ciência. Ela se dá mecanicamente por procedimentos invasivos que extirpam o mal, ou através de adicionamentos que o anulam por combinações ou combates inorgânicos. Aqui, na proposta de Tiago, é preservada a integridade do ser humano, levando em conta que também o alívio de um eventual sentimento de culpa pode favorecer a cura. O sucesso da obra é atribuído ao extra nós: o Senhor o levantará. Neste sentido, a expressão salvação do enfermo também remete ao sentido da salvação expresso em Marcos 8.35: Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho salvá-la-á.
v. 16: É interessante que existe a orientação de, justamente na situação de doença, acontecer a confissão mútua de pecados. Talvez tenhamos aí uma informação sobre um costume da época e do contexto em que o texto foi concebido. Tiago parece indicar uma comunidade onde as pessoas se conhecem. A confissão mútua aponta para uma prática comunitária em que ninguém é rebaixado e tampouco alguém é exaltado. Não acontece um empoderamento extraordinário de alguém para que exerça e demonstre poderes sobre outra pessoa. Neste sentido, aqui é evocada a lembrança de Romanos 14.11 e Filipenses 2.11, onde é dito que todo joelho se dobrará e toda língua dará louvores e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor.
v. 17: A citação de Elias pode estar indicando para a origem judaico-grega da Carta de Tiago. No meio judaico, Elias costumava ser lembrado. Mateus 16.14 informa que achavam que Jesus era o Elias que tinha retornado. No texto sobre a transfiguração, em Marcos 9.4, Elias aparece com Moisés, o que indica a presença da “lei” e dos “profetas”, ou seja, o cerne da fé judaica. Também quando Jesus clama na cruz Eli, Eli… (Mc 15.34-35), alguns pensaram que Jesus chamava Elias.
v. 18: O assunto da chuva pode ser indicativo na procura por uma localização “na área palestino-siríaca” dos destinatários da Carta de Tiago, que não é uma carta, mas uma coleção de orientações e exortações com prefácio de carta (Goppelt, 1982, p. 461). Em 1 Reis 17.1ss; 18.41ss, não está dito expressamente que Elias orou para parar de chover.
v. 19-20: Aqui é preciso, em primeiro lugar, assim me parece, levar em conta as características parenéticas da Carta de Tiago. “A parênese efileira advertências éticas tradicionais sem perseguir um nexo lógico”, diz Goppelt (1982, p. 462). “Meus irmãos” parece ser a palavra-chave que aqui interliga artificialmente as partes. Temos assim um sinal das características empíricas (Goppelt, 1982, p. 471) do escrito aqui. É preciso, pois, levar em consideração que “jamais é possível descrever a existência cristã como estilo de vida” e que somente “a palavra de Cristo produzirá existência cristã” (Goppelt, 1982, p. 462).
3. Meditação
A partir de observações feitas nos lugares onde atuei e atuo, tenho a impressão de que a igreja cristã deveria agregar o ensino cristão ao calendário litúrgico ou vice-versa. A Quaresma deveria ser um período de preparação para o Batismo, para a Confirmação, para a Profissão de Fé. Deveria se constituir no período essencial da administração de conteúdos que, por assim dizer, constituem os argumentos da fé cristã. Seria o auge da atuação de uma Pastoral do Batismo. A Quaresma, por seu lado, seria um tempo de ensino que fundamenta a conversão e que leva à participação no corpo de Cristo. Em seguida, o tempo entre o Domingo de Páscoa e a Ascensão deveria firmar a diferença entre a ekklesia e as demais organizações existentes no mundo. A comunhão dos santos existe para promover o encontro com o ressurreto. Ora, isso não existe em outra organização, só existe na igreja. É, portanto, o específico.
O que se faz além disso serve apenas para melhorar essa parte. E o tempo de ensinar isso está entre a Páscoa e a Ascensão. Evidentemente, antes disso, o ciclo natalino deveria ensinar a paixão de Deus pelo mundo, com uma bela teologia da encarnação. Digamos, até aí tudo bem. Trata-se de períodos mais ou menos intensivamente demarcados pelas práticas comunitárias. Agora vem, ao meu modo de ver, a grande deficiência missionária, que é o ensino a respeito da história da salvação entre a Ascensão e o Advento, que inclui a assimilação da despedida de Jesus e a superação comunitária da dependência de Jesus, uma espécie de emancipação das pessoas que creem e que têm a sua apoteose na inauguração do período, na festa de Pentecostes, e depois segue pelo longo período da Trindade e do grande Tempo Comum, até o Advento. A partir daí Jesus Cristo não estará mais com os seus e as suas, mas ele será o que forem as pessoas que tiveram a apoteose. Aí reside a nossa fraqueza missionária. Natal, Quaresma e Páscoa são impactantes. Talvez Deus tenha escrito certo por linhas tortas através do consumismo, mantendo a importância dessas datas. O Tempo Comum é, porém, comum demais. Falta a incorporação da parênese de Tiago, das duras exigências do seguimento cristão expressas no Evangelho de Marcos 9 e do espírito que trouxe a solução da crise no acampamento de Moisés.
Os textos bíblicos previstos para este final de semana querem nos ensinar que, assim como é impactante, forte e radical o nascimento de Jesus na estrebaria, a sua morte na cruz e a sua ressurreição, assim é impactante, forte e radical a decisão de seguir o Cristo.
4. Imagem para a prédica
Preparar fitas coloridas e dois canos de PVC do mesmo comprimento, porém, de bitolas diferentes, assim que um caiba dentro do outro. O mais fino deve fi car inteiro e o mais grosso cortado em cinco pedaços, simbolizando tempos do Ano Litúrgico: 1) um pedaço – Advento, Natal e Epifania; 2) dois pedaços – Quaresma e Páscoa; 3) um pedaço – Ascenção e Pentecostes; 4) um pedaço (maior que os outros) – Após Pentecostes. Colocar os quatro primeiros pedaços sobre o cano inteiro, relembrando rapidamente, com poucas palavras, os tempos litúrgicos. Destacar o último e maior pedaço, dizendo que ele representa o tempo que Deus nos dá durante o ano para aprender a seguir Jesus Cristo. Marcar com um laço de fita colorida cada tópico desenvolvido na prédica como parte do seguimento de Cristo. Tópicos sugeridos: 1) amparar e cuidar das pessoas que sofrem; 2) amparar e cuidar das pessoas doentes; 3) praticar a confissão mútua de pecados; 4) ficar em primeiro lugar servindo; 5) ser tolerante; 6) praticar caridade; 7) partilhar a liderança.
5. Recursos litúrgicos
1) Segui-me, diz Cristo, o Senhor
Hino 177 do HPD 1. Pode ser incluído como canto, recitação ou responsório.
2) Cristo não tem mãos
“Jesus, tu não tens mãos. Tens apenas nossas mãos para construir um mundo no qual reine a justiça. Jesus, tu não tens pés. Tens apenas nossos pés para por em marcha a liberdade e o amor. Jesus, tu não tens lábios. Tens apenas nossos lábios para anunciar ao mundo a Boa-Nova aos povos. Jesus, tu não tens meios. Tens apenas nossa ação para fazer que todos sejam irmãos. Jesus, nós somos o teu evangelho, o único evangelho que as pessoas podem ler, quando nossas vidas são obras e palavras eficazes. Jesus, dá-nos teu amor e tua força para seguir teus passos e dar-te a conhecer a todas as pessoas que nos cercam”.
Bibliografia
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 1982. 575p.
NEUE CALWER PREDIGTHILFEN. Vierter Jahrgang, Band B: Exaudi bis Ende des Kirchenjahres. Calwer Verlag Stuttgart, 1982. 309s.
WENDLAND, Hans-Dietrich. Ética do Novo Testamento. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1981.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).