Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: 2 Samuel 11.26-12.10,13-15
Leituras: Lucas 7.36-8.3 e Gálatas 2.15-21
Autoria: Gerson Correia de Lacerda
Data Litúrgica: 4º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 12/06/2016
O texto para a prédica para este domingo já foi objeto de estudo duas vezes em Proclamar Libertação. A primeira vez ocorreu no volume 29, no ano de 2003, com texto produzido por Vera Maria Immich. A segunda vez no volume 34, do ano de 2009, com trabalho de Haroldo Reimer.
O texto de 2 Samuel narra a conhecida história do encontro de Davi com Natã, logo após haver cometido um adultério e um assassinato. Foram dois pecados que não combinavam com a biografi a da pessoa apresentada na própria Bíblia como homem segundo o coração de Deus (At 13.22). Apesar dos pecados, Davi não se sentiu arrependido imediata e espontaneamente. Ao contrário, somente depois da repreensão de Natã, o rei caiu em si, reconheceu seu erro e clamou pelo perdão divino (Sl 51). Portanto o texto gira em torno do pecado, do arrependimento e do perdão divino.
A segunda leitura, extraída de Lucas 7.36-8.3, apresenta uma história de perdão concedido por Jesus a uma mulher pecadora em plena casa de um fariseu zeloso na observação dos mandamentos, que criticara o comportamento do Senhor por permitir que aquele tipo de mulher ungisse seus pés com perfume e com suas lágrimas, enxugando-os com seus próprios cabelos. E o texto termina destacando que, de fato, do grupo que acompanha Jesus não faziam parte somente discípulos homens, mas várias mulheres, que o serviam com seus recursos.
A terceira leitura, Gálatas 2.15-21, destaca que ninguém é aceito por Deus pela observância dos mandamentos e pelas obras da lei. Ao contrário, todos os seres humanos, judeus e gentios, são pecadores que somente são salvos pelo perdão de Deus, cuja graça salvadora manifesta-se em Cristo Jesus.
Os três textos, portanto, apontam numa só direção: o ser humano é pecador, mas Deus o ama e está sempre pronto para perdoar e conceder a possibilidade de uma nova vida.
No volume 34 de Proclamar Libertação, Haroldo Reimer chama a atenção para algo extremamente importante. Diz ele: o presente texto está tecido dentro de uma trama literária maior. Trata-se da Obra Historiográfica Deuteronomista, a qual busca descrever traços da história do povo hebreu desde a entrada na terra de Canaã, passando pelas experiências do tribalismo e das monarquias, até a perda da autonomia política e da própria terra, com a destruição de Jerusalém em 586 a.C. e a subsequente experiência do exílio. O ‘autor deuteronomista’ que conta essa história situa-se numa espécie de metaponto do futuro na situação do exílio e olha para o transcurso da história e busca identificar uma lógica. Nessa lógica, o tema da transgressão do povo e o perdão de Yahveh é recorrente… Assim, pois, não se deve ver o tema da ‘conversão’ e do perdão de forma isolada nesta perícope (p. 232).
Pode parecer absurda a pergunta, mas temos de pensar no contexto histórico daquela época. O costume generalizado era que os reis tinham poderes absolutos sobre todo o seu povo. Eram considerados seres divinos ou representantes das divindades aqui na terra. Nesse contexto, os atos dos reis estavam acima de qualquer avaliação. Não podiam ser condenados por coisa alguma. Tinham direito de vida e de morte sobre todos os seus súditos. Em tal situação, nenhum monarca dos outros povos poderia ser acusado por seus abusos e pecados. Talvez por viver em tal contexto, após cometer adultério e assassinato, Davi agiu como se nada de mais grave tivesse ocorrido. Simplesmente trouxe Bate-Seba para o seu palácio, tomando-a por esposa e tendo um filho com ela (2Sm 11.27).
Acontece, porém, que a monarquia israelita tinha um caráter único. Nela, o rei não era considerado um ser divino. Nela, o rei também estava sujeito às mesmas leis divinas que todos os cidadãos tinham de obedecer. E nela ainda havia a figura do profeta, que proclamava sua mensagem em nome de Deus, sem estar submisso à vontade do rei.
Na verdade, ao assumir o poder sobre Israel e Judá, Davi fez uma espécie de pacto com os dois povos: Assim, todos os líderes de Israel foram se encontrar com Davi em Hebrom. Davi fez um acordo sagrado com eles, e eles o ungiram rei de Israel (2Sm 5.3). Em outras palavras, Davi não era um rei com todo o poder. Ao contrário, era um rei segundo um contrato, pelo qual comprometia-se a defender o povo de seus inimigos, marchando à sua frente nas batalhas, e a governar segundo a justiça e o direito (1Sm 8.20). Dentro desse contexto específico da monarquia israelita, Davi pode ser acusado de ter cometido vários erros.
Podemos afirmar que, em pouco tempo, Davi ficou inebriado com seu poder. Tanto Israel como Judá reconheciam-no como rei. Por outro lado, empreendeu diversas batalhas contra outros povos, tornando-se um imperialista bem-sucedido. Coberto de glórias, Davi deu início a seus desmandos. Enviou seus exércitos para atacar a cidade de Rabá. Como rei, sua obrigação era acompanhar seus soldados e estar à frente deles. No entanto, preferiu ficar em Jerusalém, deixando de cumprir um dos pontos do acordo sagrado que fizera com seu povo. Nesse sentido, Urias, o heteu, mostrou-se muito superior a Davi (2Sm 11.10-11).
Depois disso, Davi acrescentou dois outros desmandos: adulterou, ficando com a mulher de Urias; tornou-se um assassino, providenciando a morte do esposo de Bate-Seba, a fim de tomá-la para sua esposa.
Fica claro em tudo isso que Davi perdera toda noção a respeito de seus direitos e deveres como rei. Tornara-se um soberano semelhante aos dos outros povos que se consideravam seres divinos, com todo o poder sobre o seu povo. Pior ainda! Davi continuou a agir naturalmente, como se pecado algum houvesse cometido.
Contudo, havia algo diferente em Israel em relação aos outros povos. Referimo-nos aos profetas. Eles se apresentavam como representantes de Deus para transmitir a sua palavra sem se colocar submissos à vontade e aos caprichos dos soberanos. Foi esse o caso de Natã. Como mensageiro de Deus, Natã transmitira uma mensagem repleta de promessas divinas a Davi (2Sm 7.1-17). Isso, porém, não significou que Natã estivesse comprometido com Davi ou sujeito à sua autoridade. Como profeta, o compromisso de Natã era com Deus. Foi assim que, em nome de Deus, ele se apresentou a Davi e contou-lhe uma parábola, que serviu como armadilha para acusar o rei. E Davi caiu na armadilha.
Foi somente após ouvir a voz profética que Davi caiu em si e reconheceu o seu erro. Ele disse: Eu pequei contra Deus, o Senhor (2Sm 12.13). Diante do arrependimento de Davi, ocorrem duas consequências. Em primeiro lugar, o profeta Natã, em nome de Deus, declara que ele foi perdoado. Contudo, em segundo lugar, como afirmam Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin, o pecado de Davi deve ser julgado num contexto maior. A violação do contrato feito com o povo traz outras consequências que agora escapam à simples penitência pessoal: a autoridade do rei fica comprometida e, em consequência, desencadeia-se a luta pelo poder dentro da própria família de Davi ( p. 42).
E, de fato, apesar de ter sido perdoado, a história subsequente do reinado de Deus passou a ser uma história sangrenta de luta pelo poder com muitas tragédias e mortes.
Nos dias de hoje, é muito fácil constatar que a religiosidade do povo está em alta em nosso país. Os templos das mais diversas igrejas estão cheios. As pessoas andam em busca da ajuda de Deus a qualquer custo. Nessa situação, devemos observar com muita atenção as manifestações dessa religiosidade. Como se desenvolvem os cultos? O que está sendo proclamado nos mais diversos púlpitos? O que o povo tem cantado nas mais diversas celebrações?
Sem medo de errar, podemos destacar pelo menos duas grandes caraterísticas da religiosidade atual. Em primeiro lugar, é uma religiosidade festiva, repleta de cânticos, danças e alegria. Muitos cultos transformaram-se em espetáculos grandiosos com cantores ou grupos de cantores famosos, que exibem todo o seu talento, levando o povo a cantar, bater palmas, fazer gestos ritmados.
Em segundo lugar, o que predomina em grande parte das celebrações religiosas é a chamada Teologia da Prosperidade. Os pregadores prometem sucesso, riqueza, bem-estar e saúde em troca, principalmente, de contribuições generosas. As pessoas são atraídas por essas promessas. E, para estimulá-las e atraí-las, são utilizados inúmeros testemunhos de pessoas que eram pobres e tornaram-se ricas, estavam enfermas e recuperaram a saúde, e assim por diante.
Pois bem, nesse contexto, o que acabou deixando de fazer parte da religiosidade atual foi a denúncia de pecados bem como as manifestações de arrependimento. Nenhuma dessas duas coisas são populares ou atrativas. Assim, em muitos cultos das mais diversas igrejas, não existe espaço para a confissão de pecados.
Aliás, é interessante observar o conteúdo das orações feitas em nossos cultos: as súplicas são feitas “a varejo”, ao passo que a confissão de pecados (quando ocorre) é “por atacado”. Em outras palavras, os pedidos de bênçãos são específicos e detalhados, enquanto se roga simplesmente o perdão “pela multidão de nossos pecados”.
Podemos, pois, afirmar que o que ocorreu com Davi ao pecar, continuando a levar a vida normalmente como se nada de grave tivesse sucedido, não se trata de algo excepcional, mas de coisa corriqueira, que se repete em nossos tempos e em nossa vida.
Frente a essa realidade, devemos recuperar a importância da verdadeira voz profética. Temos de lembrar aqui o que ocorria nos tempos do Antigo Testamento. Deus enviava os seus profetas para criticar a religiosidade festiva e sem arrependimento: Autoridades de Jerusalém, escutem o que o Senhor está dizendo! Moradores da cidade, deem atenção ao ensinamento do nosso Deus! O Senhor diz: … Não adianta nada me trazerem ofertas; eu odeio o incenso que vocês queimam. Não suporto as Festas da Luz Nova, os sábados e as outras festas religiosas, pois os pecados de vocês estragam tudo isso (Is 1.10-13). No entanto, não era esse o tipo de mensagem profética que o povo desejava ouvir. Ao contrário, Eles pedem aos videntes que não tenham visões e dizem aos profetas: Não nos anunciem a verdade; inventem coisas que nos agradem (Is 30.10).
Ora, a mensagem profética do Antigo Testamento nunca foi agradável de ser ouvida. Foi o que ocorreu no caso de Davi. A mensagem de Natã era tão desagradável, que ele não chegou denunciando abertamente o pecado de Davi. Ao contrário, o profeta foi bastante precavido e cuidadoso. Contou ao rei uma parábola que nada tinha a ver com ele. No final dela, o rei Davi estava disposto a condenar a pessoa da parábola que pecara e disse: Eu juro pelo Senhor, o Deus vivo, que o homem que fez isso deve ser morto! Ele deverá pagar quatro vezes o que tirou, por ter feito uma coisa tão cruel! (2Sm 12.5-6). Foi somente nesse momento que o profeta, com toda a autoridade e firmeza, denunciou que o rei Davi fora exatamente aquele homem que pecara.
Aliás, convém lembrar que, no Novo Testamento, é nessa mesma direção que caminham as vozes proféticas de João Batista e de Jesus de Nazaré. O primeiro pregava: Arrependam-se dos seus pecados e sejam batizados, que Deus perdoará vocês (Mc 1.4). O segundo não era diferente: Chegou a hora, e o Reino de Deus está perto. Arrependam-se dos seus pecados e creiam no evangelho (Mc 1.15). É essa a voz profética que precisa se fazer ouvir nos dias de hoje: uma voz corajosa, ousada, que denuncie claramente os pecados e convide ao arrependimento.
Davi só reconheceu que pecara depois de ouvir a voz profética. Apesar dos graves pecados cometidos, antes disso nada afligia a sua consciência. Foi a voz profética que abriu os seus olhos. Foi a voz profética que o acordou para a realidade. Nesse momento, Davi sentiu profundo arrependimento em seu coração. A expressão desse arrependimento ficou conservada no Salmo 51. Em suas palavras percebe-se que o arrependimento de Davi foi intenso. Ele afirmou: Eu conheço bem os meus erros, e o meu pecado está sempre diante de mim (Sl 51.3). Reconheceu que tinha pecado contra o próprio Senhor Deus (Sl 51.4). Sentia-se esmagado e quebrado (Sl 51.8).
Apesar disso tudo, Davi não se sentia perdido nem condenado ao inferno. Ao contrário, ele continuava confiando no Deus da graça e do perdão: Por causa do teu amor, ó Deus, tem misericórdia de mim. Por causa da tua grande compaixão, apaga os meus pecados (Sl 51.1).
Na verdade, esta é a grande mensagem do evangelho: pela graça de Deus, revelada em Cristo Jesus, os nossos pecados são perdoados.
a) “Apareceu em casa do rabi Aarão Leib Primijlan um homem em cujo semblante aquele leu os sinais de adultério. Então, ele disse ao hóspede, depois de conversar um pouco com ele: Está escrito: Um salmo de Davi, quando Natã, o profeta, foi encontrá-lo após ter ele estado com Bate-Seba. O que quer dizer isso? Quer dizer que Natã escolheu o caminho certo para conseguir que Davi se arrependesse. Se o enfrentasse publicamente e como juiz, lograria apenas endurecer-lhe o coração. Mas ele admoestou Davi em segredo e com amor, da mesma maneira que esse fora ter com Bate-Seba. Então, a admoestação atingiu o coração do rei e o comoveu, e ergueu-se de seu interior o cântico de arrependimento.
Tendo o rabi Aabrão Leib dito isso, o homem confessou a sua culpa e corrigiu-se inteiramente” (BUBER, Martin. Histórias do Rabi. São Paulo: Perspectiva. p. 199).
b) Levantar-me-ei
O conhecido cantor Caetano Veloso sofreu um pequeno acidente durante um show em Brasília no dia 16 de maio de 2009, um sábado. O artista cantava no Centro de Convenções Ulysses Guimarães quando se desequilibrou e caiu no fosso (pequeno espaço entre o palco e a plateia). Há dois detalhes nesse lamentável acontecimento. O primeiro é que essa queda foi amplamente divulgada pela mídia. Antes da divulgação na imprensa, a internet expôs vídeos apresentando o momento em que o cantor foi ao chão. Cair é sempre embaraçoso, constrangedor.
O outro detalhe é que o foco da notícia limitou-se à queda. Não houve nenhum realce para o que certamente seria o mais digno de nota: o cantor não ficou prostrado. Ele se levantou e, esquecendo os pequenos ferimentos sofridos, superando a dor física e o constrangimento da queda, terminou de cantar a música.
Deus fez-nos capazes de nos levantar. Por maior que seja a queda, não há por que ficar prostrado. O filho pródigo, na parábola de Lucas, capítulo 15, é um grande exemplo de alguém que caiu e soube levantar. Se você caiu, esqueça a vergonha da queda, levante-se e prossiga. Cair causa embaraço, porém o mais vergonhoso ainda é ficar prostrado. (MORAES, Jilton. Ilustrações e poemas para diferentes ocasiões. São Paulo: Vida. p. 96).
Quando eu caio, fico bravo e procuro um culpado pelo meu tombo… Mas a ira não me coloca em pé! Quando eu caio, sinto-me abandonado e fico esperando uma mão para me erguer… Mas, às vezes, nenhuma mão é capaz de fazê-lo! Quando eu caio, fico desanimado, sem forças… Penso, então, em desistir de me erguer, mas sinto que ficar em pé é uma vocação, um chamado, um sonho que me move…
Quando eu caio, busco um olhar que me faça saber que estou sendo visto, quero um abraço que me faça sentir especial, procuro pés que caminhem na minha direção, mãos estendidas e um coração aberto que me dê amor! Quando eu caio, descubro que o chão não é o meu lugar permanente, que Deus move meus sonhos, minha esperança, minha vontade, minha decisão… Deus me levanta, me ergue e me sustenta! Louvado seja Deus! Amém!
(Baseada em texto do Rev. Ézio Martins de Lima, pastor da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil)
– Reunidos para te adorar e ouvir a tua palavra, confessamos-te, Senhor, os nossos pecados. Nós te chamamos pelo doce nome de Pai.
– Mas de ti andamos tão distantes…
– Oramos pedindo a vinda do teu reino,
– mas levamos ao poder os que esmagam o povo…
– Prometemos cumprir a tua vontade,
– mas impomos aos outros a nossa maneira de ver…
– Solicitamos de tua bondade o pão de cada dia,
– mas não nos importamos com a fome de nossos semelhantes…
– Suplicamos-te o perdão para os nossos pecados,
– mas o arrependimento não chega a inquietar o nosso coração...
– Esperamos que tu nos livres do mal,
– mas não fazemos nada para liberar os outros dele…
– Mesmo assim, Senhor, tão distantes de ti, aceita-nos em teu amor.
– Pela atuação do teu Espírito, faze de nós novas criaturas. Amém!
(Baseada em texto de J. T. Maertens)
GASS, Ildo Bohn (org.) Formação do Império de Davi e Salomão. São Paulo/São Leopoldo: Paulus/Centro de Estudos Bíblicos, 2011.
STORNIOLO, Ivo e BALANCIN, Euclides M. Como ler os livros de Samuel – a função da autoridade. São Paulo: Paulus, 2013.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).