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Prédica: Marcos 2.23-28
Autor: Wilfrid Buchweitz
Data Litúrgica: 20º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 08/10/1989
Proclamar Libertação – Volume: XIV


I — Introdução

A pessoa está aí para o sábado ou o sábado está aí para a pessoa? Esta pergunta continua válida? A resposta é sim! A situação mudou, e a resposta deve ser dada num outro contexto, quem sabe, numa outra perspectiva, mas é importante que a pergunta continue a ser articulada e trabalhada. Em Israel o zelo da lei leva a uma rigidez desumana. No Brasil de hoje a falta de reflexão e a liberdade mal-entendida levam ao esvaziamento do dia de descanso. Ou a concepção de economia leva à anulação do dia de descanso.

II — Considerações sobre o texto

O texto é parte de um trecho maior que trata de conflitos entre Jesus e os fariseus e escribas. E o motivo do conflito, a observação do sábado, é assunto muito sério para o israelita. O sábado faz parte da criação de Deus. A santificação do sábado é essencial, para os judeus de um jeito, para Jesus e para Marcos, de outro jeito. Jesus não pleiteia o esvaziamento do sábado, mas a redescoberta de seu verdadeiro sentido. A primeira comunidade cristã entendeu isso quando instituiu o domingo como dia de descanso em lugar do sábado.

Na ânsia de resguardar algo muito valioso, os judeus acabaram dando tanta importância a leis complementares para a observação do sábado, que a letra da lei ganha mais atenção do que o espírito da lei. E a Jesus cabe resgatar o senhorio de Deus sobre o sábado e a sua bênção para a criação. O choque entre Jesus e os judeus é inevitável.

Ill – Meditação

Se, em Israel, o verdadeiro sentido do dia de descanso tinha se perdido no excesso de zelo, de regulamentação, de leis e tinha, naquele contexto, chegado a aberrações, hoje a situação é diferente. Há muito pouca preocupação na questão do respeito ao dia do descanso. Não há zelo nenhum, apesar de, por lei, estar previsto um dia de descanso. Mas a lei é desconsiderada de muitas maneiras.

Uma das razões é econômica: há muita gente que para sobreviver precisa trabalhar 7 dias por semana. Ou se fazem biscates no fim de semana, ou se faz a arrumação da casa no fim de semana, ou os membros da família trabalham de forma desencontrada na indústria de tal forma que nem fins de semana podem passar juntos.

Outra razão é esportiva: os fins de semana estão lotados com uma infinidade de programas esportivos.

Ou a razão é turística: tanta gente passa o fim de semana andando de um lado para o outro. Muitos passam o fim de semana inteiro na frente da televisão.

Não temos o problema de um legalismo estéril. Mas temos o grande problema de uma liberdade cristã mal interpretada e mal vivida. A liberdade é importante. Queremos e devemos exercitá-la constante-mente na busca do verdadeiro sentido das leis e das ordens. Mas como podemos evitar que esta liberdade prejudique uma ordem maior? Onde está o equilíbrio entre o individual e o social, entre o específico e o geral?

Será que não copiamos facilmente demais a resposta que Jesus dá para seu tempo? Será que hoje Jesus defenderia uma maior liberdade frente a leis religiosas? Ou a valorização do dia do descanso, hoje, precisa passar por outros caminhos? As ameaças ao dia de descanso, hoje, são diferentes. Ao menos num primeiro plano elas são muito mais económicas do que religiosas. Alguns simplesmente precisam trabalhar no fim de semana para a sobrevivência pura e simples. Outros precisam desanuviar a cabeça, porque a pressão durante a semana os deixa muito tensos. Outros trabalham no fim de semana ou mandam seus empregados trabalhar no fim de semana por causa de um apetite insaciável por mais dinheiro. Outros estão perdidos. Apesar de terem sido batizados, o dia de descanso perdeu para estes a dimensão cristã e teológica.

Karl Barth diz que, no tocante ao dia de descanso, o cristão é chamado a deixar de fazer algo para fazer algo, é chamado a deixar de trabalhar para estar livre para Deus, louvá-lo, adorá-lo e para a intercessão. A Palavra de Deus e a adoração devem ocupar um lugar central no dia de descanso.

Será que a Igreja Cristã deveria sentir-se desafiada em duas direções?

Será que, em uma direção, ela deveria preocupar-se em oferecer a oportunidade da pregação da Palavra de Deus e da administração dos sacramentos, da oração e da comunhão para os membros da comunidade? Deveria investir nisso de acordo com as leis da comunicação de nossa época e do mundo em que vivemos? Será que estamos educando devidamente neste sentido? Será que nossos cultos e nossa vida comunitária fazem justiça às expectativas e necessidades? Será que estamos conseguindo ser Igreja adequada aos moldes de nossos dias e de nosso mundo? Será que isso não significaria uma diversificação muito maior nas formas de estruturar e viver comunidade e de celebrar e viver cultos? E, se diversificamos muito, como podemos manter a unidade da Igreja?

Será que, numa outra direção, ao mesmo tempo, a Igreja não deve ter os olhos bem abertos para a realidade econômico-social que nos cerca? Que mundo é este em que tanta gente não pode ter seu dia de descanso, tem que trabalhar, cansando mais ainda. Para onde vai levar isso? Quais são as causas disso? Que diria Jesus Cristo a uma sociedade onde os membros de uma família precisam trabalhar em dias e horas tão desencontradas que o todo da família não consegue reunir-se nunca? Será que na própria Igreja às vezes não sobrecarregamos o fim de semana?

Em 1985 a Igreja Evangélica na Alemanha e a Conferência Nacional dos Bispos da Alemanha fizeram uma manifestação pública conjunta referente à observação do domingo, e uma das preocupações foi a de aliviar situações onde a legislação era muito rígida na proibição do trabalho nos domingos e feriados. Entenderam as duas Igrejas que que era importante aumentar o espaço para maior liberdade em algumas situações específicas.-

Há poucos meses as duas Igrejas fizeram nova manifestação pública referente ao domingo, só que agora a partir da perspectiva de que o domingo está sendo mais e mais esvaziado.

Dizem que no passado a santificação do dia de descanso era pacífica, que, em parte, isso ainda vale hoje, mas que está diminuindo a importância cultural e religiosa do domingo. Sobre este pano de fundo cresceu muito a tendência de aliviar a proibição do trabalho dominical por motivos econômicos.

Citam como motivos alegados para conseguir licenças para trabalhar aos domingos: 1) maior produção num processo ininterrupto; 2) concorrência de outros países; 3) fornos e máquinas que não podem ser desligados e religados em pouco tempo; 4) necessidade de mais gente na manutenção; 5) necessidade de mais gente na hotelaria, turismo, supermercados, nos fins de semana; 6) necessidade de mais gente em feiras, competições esportivas, festas populares; 7) até a Igreja necessita de mais colaboradores em retiros, encontros, evangelizações; 8) há mais gente que quer trabalhar nos fins de semana porque o pagamento é melhor; 9) até na agricultura aumenta a tendência de trabalhar nos fins de semana.

Depois as duas Igrejas fazem ponderações sobre o sentido do domingo: 1) O domingo está ligado ao sábado dos israelitas. O sábado é um dia que pertence a Deus; 2) O domingo é testemunho da obra salvífica de Deus e da nova criação que se tornou realidade na ressurreição do Jesus Cristo; 3) O domingo tem profundo sentido social e cultural; 4) As exceções devem continuar exceções. O processo normal de produção e comércio deve obedecer à lei que proíbe o trabalho.

A partir daí as duas Igrejas conclamam os cristãos a recordar novamente o sentido do domingo e a santificá-lo. E conclamam a empresários, sindicatos, governo e meios de comunicação para assumirem sua responsabilidade para com o domingo. Pedem que os cristãos cuidem que nas programações da sociedade continue a haver espaço para o culto, que não haja programações demasiadas na noite de sábado para domingo e terminam dizendo: Cuidemos que o domingo continue a ter o sentido, para nós e nosso mundo, para o qual foi instituído: o dia do Senhor como um dia para o ser humano, um dia que sirva para que o ser humano experimente sua dignidade e destino.

A leitura de Marcos 2.23-28 facilmente induz a uma crítica aos judeus e a uma louvação da liberdade assumida por Jesus. Será que dá para transportar estes mesmos aspectos tão facilmente para a nossa época? Ou será que a verdade do texto para nossa época é diferente? Será que nosso problema são leis religiosas, quem sabe leis da Igreja? Ou será que nosso problema é liberdade demais, falta de ordem? Ou será que nosso problema são leis econômicas, falta de recursos por um lado e excesso de recursos por outro lado. De que maneira podemos descobrir, reconstituir, o dia de descanso que Deus institui após a criação ou o dia da ressurreição de Jesus Cristo na Páscoa? De que maneira cada domingo pode ser Páscoa para nós?

IV — E a prédica?

Parece-me que três perspectivas são importantes na preparação da prédica:

1) Tentar definir, descobrir, redescobrir o verdadeiro sentido do sábado/domingo. Qual é o sentido que o Senhor do sábado/domingo nos oferece? Que significa descanso? Que significa santificação? Basta não trabalhar? Basta encher o fim de semana com programas da Igreja? Qual é o próprium que a Igreja Cristã recebe com o sábado/domingo e deve articular na comunidade e no mundo?

2) Quais são as leis que hoje escondem o verdadeiro sábado/domingo? Leis que se apoderaram do verdadeiro conteúdo e sentido? Não são leis religiosas. Nem são leis de outra natureza, mas com máscara religiosa. São muito antes leis econômicas, muitas delas leis de injustiça. São leis do lazer, algumas necessárias e importantes, outras superficiais, egoístas e alienantes. São leis da TV que causam dependência. São leis de um consumismo desenfreado. São leis diferentes daquelas dos judeus, mas nem por isso menos fortes e menos perigosas. Leis sociais, estruturais, individuais, grupais, leis que vêm de dentro de nós e que vêm de fora de nós.

3) Diante das conclusões acima, como é que a comunidade, como é que os responsáveis na comunidade articulam a verdade sábado/domingo? Como é que articulam o próprio assunto sábado/domingo no todo de sua missão e como o articulam especialmente no fim de semana, especialmente no culto de sábado e/ou domingo? Que fazem e como fazem, para que os cultos sejam instrumento de santificação e momentos de ganhar nova força para a fé e a vida? O mundo está muito diversificado e a Igreja precisa tomar isso em conta. Ela não pode se contentar com a forma de culto da zona rural durante decênios no passado. É importante tentar redescobrir constantemente o sentido do culto e ter liberdade e criatividade para formas que comunicam no mundo de hoje. É preciso tentar ver as coisas que atrapalham nisso, consciente ou inconscientemente.

V — Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Senhor, aqui nesta comunidade te agradecemos pelo dia que nos dás para descansarmos as mãos e as cabeças e para nos pormos sob tua Palavra e sob teu senhorio, individualmente e como comunidade. Tua iniciativa é tanto mais importante quanto de nosso lado nos sentimos auto-suficientes e achamos que não precisamos de descanso, ou damos descanso ao corpo e não à mente, ou vice-versa e, principalmente, não lembramos que este dia é teu e que nele queres reafirmar teu amor e senhorio. Perdoa-nos, Senhor, e renova-nos. Tem piedade de nós, Senhor!

2. Oração de coleta: Nosso Deus e Pai: obrigado por tua Palavra e pelo serviço que nos prestas neste culto. Reúne-nos todos sob tua Palavra. Faze de nós tua comunidade, hoje, aqui, neste culto e a partir daí em todos os dias da semana e em tudo o que viermos a fazer. Amém!

3. Oração final: Agradecer pela dádiva do sábado/domingo, pela Palavra e pelo fato de ela construir Igreja e Reino de Deus. — Pedir que as Igrejas descubram sempre de novo o dia de descanso, que tenham olhos abertos para identificar todas as leis que, de repente, se sobrepõem. Pedir para que todas as pessoas responsáveis por trabalho na sociedade se preocupem em resguardar o dia de descanso em benefício do ser humano e do mundo, Igrejas, governos, organizações de classe, meios de comunicação. — Pedir que o Espírito Santo dê às comunidades criatividade para achar e ensaiar formas e conteúdos que facilitem a observação do sábado/domingo.

VI – Bibliografia

– CALVIN, J. Mc 2.23-28. In: Auslegung der Heiligen Schrift. Neukirchen-Vluyn, 1966. Nova Sequência. V. 12.
– EVANGELISCHE KIRCHE in DEUTSCHLAND und DEUTSCHE BISCHOFSKONFERENZ. Unsere Verantwortung für den Sonntag. In: Nachrichten der Evangelisch-Lutherischen Kirche in Bayern. München, 1988. No. 4. Ano 43.
– KAICK, B. van. Meditação sobre Mc 2.23-28. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, 1982, V. VIII.
– SCHNIEWIND, J. Exegese de Mc 2.23-28. In: Das Neue Testament Deutsch. Göttingen, 1949. V. 1.
– VOIGT, G. Meditação sobre Mc 2.23-28. In: Die bessere Gerechtigkeit. Göttingen, 1981.