|

1. Introdução

Quando fui convidado para dirigir um estudo bíblico na Convocação Mundial do Conselho Mundial de Igrejas sobre Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC), realizada em Seul, de 5 a 13 de março de 1990, entendi inicialmente que minha função seria a de animar ou facilitar estudos em grupo, com participantes vindos das mais diversas regiões, igrejas e movimentos do mundo. Já tinha colaborado nessa função em outras ocasiões e lembrei o enriquecimento pessoal que tal compartilhar de experiências e tradições em torno de um texto bíblico proporcionou. Imaginei uma série de dinâmicas participativas e gostei do enfoque celebrativo que os estudos bíblicos teriam. Por isso aceitei a tarefa e solicitei maiores detalhes. Opinei também que poderia ser incluído, entre os textos bíblicos previstos, Isaías 26, porque traz afirmações relativas ao tema de JPIC, como p. ex.: a mudança vem pelos pobres (v. 6), Deus zela pelo seu povinho, contra os violentos (v. 11), paz com ação (v. 12), angústia do sofredor trazida a Deus (v. 16).

Entretanto, após algum tempo, recebi a comunicação de que o estudo tinha sido planejado para acontecer em plenário, diante dos quase 800 participantes, no terceiro dia da Convocatória. Juntamente com uma teóloga de Hong Kong, para a qual eram apontados os textos de l Pe 3.8-17 e Isaías 55.6-13, eu deveria buscar, a partir de João 1.1-18 e eventualmente Is 26, um questionamento da base bíblica desse processo conciliar JPIC, iniciado em Vancouver em 1983. O tema do terceiro dia também era importante: proclamação da palavra da esperança. As duas exposições de 30 minutos cada, inseridas na celebração da manhã, deveriam ser seguidas de uma pergunta para o trabalho em grupos à tarde, sobre o documento básico da conferência. Assim se imaginava que a reflexão poderia frutificar para dentro do processo todo. O desafio parecia grande demais. Somente após alguns dias de meditação criei coragem e clarearam-se as ideias. Recorri a experiências pessoais do passado e lembrei que na CPT-PR tínhamos organizado a Romaria da Terra de 1986 sob o lema Deus acampou entre os pobres da terra (Jo 1.14).

A ordem temática das celebrações diárias era: louvor e adoração (SI 104; Ap 7.9-12; Mt 5.43-48), arrependimento e anúncio de perdão diante de testemunhos de sofrimento (Am 5.7,10-14; Sl 51.3-19; Mc 1.14s), proclamação da palavra da esperança (l Pe 3.8-17; Is 55.6-13; Jo 1.1-18), afirmação da fé (Rm 8.1-27; Dt 30.6-15; Lc 4.16-30), intercessão (Mt 6.5-13), compromisso (Gn 9.8-17; Is 58.1-12; Mt 16.24-26), aliança e envio (Is 55.1-3; Ap 21.22-26; 22.1-2; Jo 15.12-17). Esta sequência constituía-se, pois, num roteiro de espiritualidade para aquele evento, embora sua metodologia fosse dirigida e pouco participativa, sem espaço para as pessoas partilharem sua vivência. Havia apenas a moldura litúrgica e celebrativa que ajudava a superar a proposta demasiado expositiva. Optei por apresentar a mensagem em inglês, embora isso representasse mais trabalho para mim, a fim de facilitar a comunicação. Utilizei no início as dinâmicas de todos se darem as mãos e de fecharem os olhos, para promover o envolvimento sensitivo e não apenas racional.

A nível de conteúdo, havia para mim um terceiro interesse ao lado da reflexão exegética sobre o prólogo de João e do questionamento da base bíblica do processo JPIC. Era a perspectiva latino-americana, dos movimentos populares, com sua releitura da Bíblia a partir das experiências de luta política e presença de Deus com os pobres. A partir dessa perspectiva, parecia também um paradoxo ter que fixar no papel um mês antes os pensamentos e remetê-los enlatados ao Conselho Mundial de Igrejas (para tradução), quando Jo 1 insiste na encarnação, no acontecimento vivo. Como escrever sem sentir o momento? A tradução a seguir, do original inglês, incorpora alguns pequenos acréscimos feitos no dia da apresentação do texto, como tentativa de sintonizar com o que se vinha vivenciando e discutindo naquela ocasião.

2. A mensagem a partir de Jo 1.1-18

A palavra da vida não se tornou papel, nem retórica domingueira, mas carne! Realidade pessoal e histórica palpável! Juntemos nossas mãos com os companheiros ao lado, para mostrarmos nossa interconexão! Tenho esperança de que vocês seguirão estas reflexões apesar de meu inglês limitado, e que permitirão que o Espírito nos guie. É minha convicção que o papel, e mesmo palavras, embora necessárias, exercem uma função secundária. Justamente João cap. 1 nos chama para dentro de uma nova percepção. Paradoxalmente o autor quer que possamos ver realida¬de gloriosa e divina nas e dentro das condições puramente humanas.

Por isso vamos fechar nossos olhos. Todos vocês que não precisam ler a tradu¬ção, por favor fechem seus olhos. Neste momento lembramo-nos do simples fato de estarmos aqui nesta Convocação, nós frágeis homens e mulheres, no meio deste evento histórico significativo. Quando fecho os meus olhos, deparo-me especialmente com a minha deficiência visual que limita severamente minhas leituras. Contudo tenho o privilégio de estar aqui e compartilhar minhas experiências e reflexões com vocês. E vocês, com os olhos fechados, certamente estão reconhecendo os seus problemas e limitações, talvez bem diversas, físicas, intelectuais, emocionais ou outras. Não obstante vocês estão aqui, contribuindo para este evento. A responsabilidade dada a nós é grande demais se olharmos para nós mesmos. Isso ao mesmo tempo nos assusta e encoraja! Porque, se Deus nos chama, ele não nos chama de deficientes. Estamos on line com o gago Moisés (Êx 4.10-11) e com Paulo, cujo espinho na carne apenas tornou a graça mais eficiente (2 Co 12.7-10).

Agora, abram os olhos e olhem para as pessoas em redor. Olhem no rosto do vizinho ou da vizinha. Se desejarem, toquem um ao outro. Você não precisa adivinhar o que ele ou ela estava sentindo justamente agora, nem qual é o contexto de onde veio. É suficiente constatar: ninguém é perfeito, mas cada um é precioso na luta por vida, paz e justiça, isto é, no propósito de Deus! É por isso que estamos aqui reunidos como uma comunidade. E, dando-nos as mãos, buscamos ser coerentes com o fato de que Deus escolheu a comunidade dos pobres, dos débeis e dos cies prezados, a fim de envergonhar e reduzir a nada os poderosos (l Co l .26-30).

Portanto, nosso ponto de partida existencial e bíblico é: a criação não é perfeita. A vida humana, a carne, sofre sob limitações e deficiências (cf. Rm 8.22). Mas nossas fragilidades e falhas não podem impedir os planos históricos de Deus.

Deus até as usa para seus propósitos. Deus chama pessoas que sofrem, os mansos e os pobres, para transformar a realidade em mais justiça e paz. Quando falamos de Integridade da Criação não nos referimos à harmonia e beleza do cosmos como tais. Isso é um conceito da filosofia grega. Nós nos referimos ao relacionamento sadio com o Criador e à integração de todas as criaturas nos planos de Deus. Deus disse que a criação era muito boa (Gn 1.31), não perfeita. Deus quer que nós a conservemos boa para toda a humanidade (Gn 2.15). Pecado é desobedecer a Deus e destruir a criação (Gn 4.10-11), é quebrar o relacionamento sadio entre Deus, criaturas e criação. Perfeição não reside na natureza como tal, mas no amor de Deus (Mt 5.45-48) e no seu zelo pelo seu povo (Is 26.11), revelado muitas vezes através da natureza. E agradou a Deus revelar estas cousas aos pequenos (Mt 11.25s). — Por favor, queiram sentar-se.

Entre os inúmeros exemplos de como os pobres organizados do meu país experimentaram o zelo e a presença de Deus com eles na luta pela sobrevivência, encontram-se dois testemunhos do movimento de agricultores sem terra. Em 1984, um grupo de famílias tentou ocupar uma fazenda improdutiva e foi violentamente expulso pela polícia. Então armaram ali perto, ao longo da estrada, um acampamento muito precário, suportando durante meses todo tipo de sofrimentos. Fortes tempestades passaram perto do acampamento, o granizo poderia ter destruído tudo, mas no último momento mudou de direção. Outra tempestade voltou-se para o lado oposto, de modo a formar um tipo de V em redor do acampamento. Manoel, um velho camponês, comentou: A mão de Deus está aqui por cima deste acampamento… Aqui não acontece nada de ruim para nós. Não tem doçura mais doce que este nosso Pai Velho Todo-Poderoso (cf. SAGoergen, p. 17).

A segunda história aconteceu com um grupo de 800 famílias na manhã em que iniciaram um acampamento na margem do lago Itaipu. Quando estavam preparando a primeira refeição, uma súbita tempestade com chuva veio do lago. Miguel contou-me mais tarde que conseguiu agarrar-se do lado de fora da barraca por mais de uma hora: Somente com a ajuda de Deus eu pude resistir, a minha barraca protegeu uma fila de mais ou menos 15 outras. O resto do acampamento foi transformado em caos e desolação. Elcio, um jovem diarista, acrescentou: Logo depois que a chuva parou nós entendemos por que Deus tinha enviado essa tormenta. Foi porque chegaram o prefeito e o delegado, para xingar nosso povo. Mas eles viram nossa angústia, nossas mulheres e crianças chorando, e ficaram tão confusos que perderam a fala e retornaram para a cidade. Como o terror de Javé no Velho Testamento (Gn 35.5), Deus enviou a tempestade para tapar a boca dos que vieram para reprimir.

Manoel provavelmente não sabe que seu nome é derivado de Immanu-el (Mt 1.23). Mas quando em sua luta política ele louva a doçura da proteção de nosso Pai Velho, ele está revelando a nós o verdadeiro significado dessa palavra: Deus conosco. Não pode ser Deus com qualquer um, mas antes Deus conosco, os pobres. Manoel, Miguel, Elcio e milhões de outros, homens, mulheres e crianças, experimentam a presença de Deus a seu lado (SI 109.30s) porque lutam não por interesses egoístas, mas por sobrevivência, dignidade e mudança social, e porque em sua luta por vida eles aprendem a partilhar quase tudo, a viver em comunidade, a reconciliar-se uns com os outros. No centro daqueles acampamentos de camponeses sem terra encontra-se sempre a cruz, em torno da qual se reúnem para orações e celebrações. O Deus com eles é uma surpresa para eles próprios! Eles vêem sua glória, cheia de compaixão e verdade (v. 14).

No terceiro dia desta Convocação a maioria de nós já está cansada de tantas palavras (e histórias). Mas, pelo texto dado, nos próximos dez minutos, somos convidados a nos concentrar na Palavra, no Logos: A Palavra foi feita carne e — literalmente — armou sua tenda entre nós (v. 14). O termo original grego (eskenosen) nos leva a prestar atenção no verdadeiro sentido da encarnação. Podemos nós imaginar Deus presente em fragilidade total? Vivendo sem qualquer segurança? Não em prédios de pedra e aço (Mt 8.20)? Nem apoiado por estruturas e logísticas eclesiásticas? O Logos é radicalmente diferente porque habita nas periferias de nossos sistemas de poder. Na América Latina as comunidades de base e os movimentos populares redescobrem a verdade bíblica de que Deus acampou entre os pobres da terra, os sem-terra e sem-teto, entre aqueles que têm fome e sede de justiça (Mt 5.6). É como na Bíblia, em que pastores marginalizados são escolhidos para serem os primeiros missionários (Lc 2.17s). E dentre uma multidão de inválidos é curado o que sofria maior desvantagem, e imediatamente é colocado no meio do conflito com os judeus por causa do sábado (Jo 5.2-10; 7.23s). A voz de Deus fala de onde não a esperamos.

No Evangelho de João, a Palavra (v. 1), a criadora Palavra da Vida (v. 4), é o mesmo que o mandamento de amor, justiça e libertação (veja Dt 4.12s). Vocês são verdadeiramente meus discípulos, diz Jesus, se permanecerem em minha palavra (8.31), se tiverem amor uns aos outros (13.35). Amor é consideração concreta com o necessitado, praticada em fatos e verdade (l Jo 3.17s), de acordo com a determinação divina de justiça (Jo 5.30). Se Jesus tivesse morrido como membro do grupo dominante em Jerusalém, seu amor jamais seria verdadeiro nem alcançaria os dalits da índia nem as tribos da Austrália. Mas, a partir dos pobres, o amor de Deus por toda a espécie humana (Jo 3.16) será muito crítico em relação aos poderosos (2 Co 8.9). Esse imperativo de compaixão e relacionamento verdadeiro estava com Deus desde o princípio (v. 1) e iluminou a humanidade (v. 9). Por meio de Moisés foi dado como um código escrito. Mas somente em Jesus compaixão e verdade foi feito uma realidade viva (v. 17). O próprio Jesus foi pobre e aderiu ao clamor dos profetas por justiça e misericórdia em lugar de holocaustos (estes eram tributos religiosos pelo quais o templo explorava os pobres e acumulava riquezas). E, ao acrescentar vim não para chamar justos e sim pecadores (Mt 9.13), Jesus questiona os conceitos vigentes de justiça. A justiça dos escribas e fariseus (Mt 5.20) marginalizava pessoas ao rotulá-las de pecadoras, e negando-lhes acesso ao reino de Deus. Hoje, justiça é definida nos termos do conceito liberal de igualdade política. Essa é a razão por que as igrejas sempre tendem a tratar todos os seus membros da mesma maneira, não importa que sejam ricos ou pobres, opres¬sores ou oprimidos. Contudo, tratamento igual a parceiros desiguais no final produz maior desigualdade! Sem uma comunidade de partilha real, igualdade é mentira! Ao passo que, na Bíblia, justiça é sinônimo de parcialidade! Da opção preferencial de Deus pelo empobrecidos! Javé executa justiça para os oprimidos… Ele ampara o órfão e a viúva, mas o caminho do ímpio ele leva à ruína (Sl 146.7 + 9). O único critério para julgar todos os conceitos e todas as estratégias de justiça é o necessitado e desprezado. O ser radicalmente diferente (a alteridade) dos pobres, como de Jesus e seus amigos, atesta a transcendência do Logos sobre ideologias. Ninguém jamais viu a Deus… (v. 18).

Conhecer Deus é praticar justiça. Todo o que não pratica justiça não procede de Deus, nem o que não ama seu irmão (l Jo 3.10; veja 2.29; 4.7). Por causa da injustiça as pessoas suprimem a verdade e são incapazes de conhecer Deus (Rm 1.18 + 28s). Por que seu próprio povo não o aceitou (v. 11)? Jesus disse aos que haviam crido nele (!): Vocês não entendem minhas palavras (em grego: lalia) porque não suportam ouvir a minha palavra (Logos) (Jo 8.43). Logos significa interpelação (em alemão: Anrede) de fora, a partir da periferia. Conflitua com auto-suficiência e autojustificação arrogante, tanto da parte da pessoa quanto de estruturas de poder (como o templo). O problema não era que Jesus fosse humano (carne) e que realizasse obras de compaixão, mas que, ao agir assim, reivindicasse ser um com o Pai (Jo 8.58; 10.30). E para os cristãos de hoje o problema não é que os pobres sofrem e necessitam de nossa ajuda, mas que através deles temos que ouvir a voz de Deus! Que temos que desesperar da nossa esperança, acumulada, feita propriedade privada, e sempre de novo correr atrás dos sinais de esperança entre os humildes, os deficientes e párias das sociedades do mundo. Também para organizações eclesiásticas é mais fácil falar das boas novas AOS pobres do que das boas novas A PARTIR dos pobres (CMME/CMI, Melbourne 1980). Ainda ecoam em minha mente — e dentro dos muros de muitas igrejas — as palavras de um ativo membro da diretoria paroquial sobre os acampados: Essa negrada são tudo uns vagabundos. Eles não querem trabalhar. Querem só receber a comida de graça. A gente tinha que passar veneno de avião por cima deles. Daí eles paravam de incomodar os que trabalham (in: PPL/RE V, p. 51). João afirma que o julgamento já está presente quando a luz veio ao mundo e as pessoas amaram mais as trevas do que a luz, porque seus atos eram maus (Jo 3.19).

Não obstante, a luz que as trevas não podem subjugar está continuamente brilhando (v. 5; veja l Jo 1.7). A cruz como sacrifício de Jesus e como sofrimento dos pobres ainda permanece no centro da história, justamente porque ela é resultante da rejeição ao amor e à justiça pelo poderosos, e da disposição de Jesus e dos pobres de suportar essa rejeição. Enquanto tantos líderes de igrejas apenas FALAM da justiça, há alguns poucos prontos a SOFRER por ela (Mt 5.10). Enquanto muitos celebram o fim do muro entre Leste e Oeste, há também aqueles que não podem silenciar acerca do muro entre Norte e Sul. Enquanto tantos líderes de base e agen¬tes de pastoral são assassinados sob governos assim chamados democráticos, a solidariedade e resistência organizada está crescendo. Nos países pobres a força de movimentos sociais populares está aumentando e se tornará ainda mais forte nesta década. Esses filhos de Deus (v. 12; Mt 5.9) são agentes de libertação. Para as maiorias pobres que despertam, esperança em Deus e ação histórica decisiva sempre vêm juntas. Deus abate até ao pó a cidade violenta e o pé a pisa, os pés dos aflitos, e os passos dos pobres (Is 26.5s). Isso significa para mim ao mesmo tempo um compromisso pessoal de luta e a abertura de receber graça em troca de graça (v. 17). Amém.

3. Avaliação

A pergunta que preparei para a discussão nos grupos partia da constatação de que qualquer seleção de textos bíblicos é preconceituosa de acordo com nossa postura histórica e política, e que a releitura latino-americana busca a verdade não no texto bíblico em si, mas na confluência de texto, realidade opressora e comunidade de fé. Por isso, indaguei se concordamos que neste momento histórico e dentro do processo JPIC temos que ler a Bíblia com os pobres e na perspectiva deles, por que Deus mesmo é parcial em seu favor. Contudo, em Seul a sequência celebrativa não dava espaço para apresentar essa pergunta após a mensagem, e a programação levou os grupos da tarde a se concentrarem no debate do documento-base. Este, estruturado segundo o esquema ver-julgar-agir, vinha causando uma série de descontentamentos e exigia esforço dobrado para sua análise e melhoria, de maneira que o questionamento da base bíblica ficou à margem. Aliás, maior frustração causou o fato de que os participantes foram direcionados a discutir formulações, sem tem pó para troca de experiências e para articulações práticas de lutas por justiça, paz e preservação da criação. Essas articulações tiveram que acontecer à margem, e uma delas resultou na decisão plenária de acrescentar aos pactos sobre nova ordem econômica, luta pacifista e ecologia um compromisso de luta contra o racismo e de defesa de minorias indígenas.

Embora o programa da conferência não desse espaço para trabalhar os impulsos trazidos pelo dois estudos bíblicos, houve inúmeras reações individuais positivas dirigidas a mim, que ressaltavam aspectos da minha exposição (perspectiva latino americana, criação imperfeita, presença de Deus entre o povo organizado, os pobres como parâmetro de justiça, etc.). Uma pessoa disse que foi o primeiro momento desta conferência que lhe causou uma agradável sensação de novidade teológica. A coordenadora de um grupo de trabalho veio conversar para ver se tinha entendido bem. Seu grupo queria incluir algo dessas reflexões no relatório. O diálogo transcorreu mais ou menos assim:

— O senhor falou que a criação não é perfeita?

— Sim.

— Mas, então, o senhor afirma que tudo está sob o pecado?

— Não, de propósito não falei em pecado, mas nos planos de Deus… E num Deus que escolhe o caminho da cruz, optando pelos pobres. A senhora é de tradição calvinista?

— Sim, meu marido é diretor de um curso de pós-graduação em teologia na Escócia, com ênfase em temas do Terceiro Mundo.

— Eu sou de origem luterana. Compreendo a dificuldade ou novidade que pó de significar para a senhora uma reflexão em termos de teologia da cruz.

— Que pena que já tenhamos que correr para a próxima reunião. Gostaria de conversar mais.

Não houve expressamente reações negativas ao estudo. Percebi alguma frieza de quem talvez se sentisse atingido ou discordasse da minha interpretação do texto. Certamente faltavam momentos propícios para o diálogo, e parte dos argumentos exegéticos precisavam ser verificados com mais vagar que o ritmo da conferência permitia. Mas a indiferença é também algo previsível, como mecanismo de defesa de pessoas conservadoras diante de afirmações radicais fundamentadas, contra as quais não têm argumentos à mão. Tal indiferença, entretanto, foi minoritária e não conseguiu sobrepujar o clima geral da conferência, de engajamento e busca sincera de respostas e propostas para as ameaças de hoje à justiça, paz e integridade da criação.

4. Bibliografia

– FITZMEYER/BROWN (ed.) The Jerome Biblical Commentary, vol. 2, Bangalore 1972, p. 421-4.
– GOERGEN, S. A. A Bíblia na Luta dos Sem Terra, in: Estudos Bíblicos (REB), N° 5, Petrópolis, 1985, p. 7-17.
– GOPPELT, L. Teologia do NT, vol. 2, S. Leopoldo/Petrópolis, 1982.
– JERVELL, J. Jesus in the Gospel of John, Minneapolis, 1984.
– KÄSEMANN, E. Aufbau und Anliegen des johanneischen Prologs, in: Exegetische Versuche und Besinnungen, vol. 2, Göttingen, 1968, p. 155-180.
– MIRANDA, J. P. El ser y el Mesías, Sígueme, Salamanca 1973. PPL/RE V. Igreja: Povo e Palavra, Toledo, 1987.