Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Marcos 5.21-24, 35-43
Leituras: Salmo 118.5-6, 15-21 e 1 Tessalonicenses 4.13-18
Autor: Renato Küntzer
Data Litúrgica: Dia de Finados
Data da Pregação: 02/11/2015
A celebração do Dia de Finados tem dupla finalidade. Em primeiro lugar, ela resgata a memória de nossos familiares falecidos. Trata-se de um dia no qual as pessoas vivenciam lembranças e saudades. Em segundo lugar, somos lembrados da fragilidade da nossa própria vida. Viver significa, por isso, saber distinguir aquilo que é essencial e prioritário na vida daquilo que é secundário e superficial. O Salmo 118 é uma oração de agradecimento de alguém que vivenciou risco de morte e passa pela experiência da proximidade de Deus, que lhe “inclina o seu ouvido”. Conforme 1Pe 1.17-23, essa experiência da proximidade de Deus por meio da vida de Jesus Cristo é a razão da fé e da esperança.
O Evangelho de Marcos é o mais antigo dos evangelhos. Seu autor caracteriza-o como o “princípio do evangelho de Jesus Cristo, o Filho de Deus” (Mc 1.1). O evangelho provavelmente foi escrito em Roma por volta do ano 70, quando os primeiros cristãos já haviam passado pela perseguição do imperador Nero e haviam morrido duas lideranças importantes, Pedro e Paulo. Por isso as primeiras comunidades necessitavam fixar as verdades de fé. Em Marcos, não vamos encontrar uma história da vida de Jesus, mas sim um “evangelho”, isto é, uma boa notícia. É um gênero literário criado por Marcos para dar testemunho e interpretar autenticamente Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado.
Portanto o Evangelho de Marcos não pode ser lido do ponto de vista histórico, como se o texto tratasse de uma reportagem ou fosse produto de pesquisa histórica. Marcos escreveu o evangelho pensando em sua comunidade, a fim de ajudá-la a viver melhor a fé em Jesus. Marcos recolhe as histórias, os relatos, as tradições e interpretações que já haviam sido conservadas nas reuniões da comunidade, com a finalidade de preservá-las do risco de desfigurar a proposta e a imagem de Jesus. O grande perigo que ameaçava a comunidade era a interpretação distorcida da vida e da atuação pública de Jesus. Marcos apresenta Jesus e a comunidade cristã com traços críticos em relação a interpretações erradas de Jesus, o Cristo. Nesse sentido, o Evangelho de Marcos volta a ser muito atual porque acorda as consciências cristãs por demais “adormecidas”.
O texto é marcado por uma confissão pós-pascal da comunidade: Jesus salva da morte (5.23). Por isso diante dela não há necessidade de ter medo, mas fé (5.36). Esse é o evangelho a serviço do qual está esse texto. Os estudiosos classificam o texto como um relato de milagre. Ele está situado dentro de um conjunto maior de textos do mesmo gênero (4.35-5.43). Ele tem uma estrutura semelhante a outros textos de milagre, como Mc 1.29-31 ou 1.40-45: o pedido pela intervenção de Jesus, imposição de mãos, cura pelo toque das mãos, uma palavra de Jesus ordenando a cura e a aparição pública da pessoa que foi cura- da. O objetivo desses textos é responder a pergunta: “Quem é esse?” (4.41). Ao mesmo tempo em que Jesus age de forma milagrosa, com ações cada vez mais surpreendentes, manifestam-se, na mesma proporção, a falta de entendimento, a cegueira e a oposição a Jesus.
O v. 21 serve como introdução a dois textos distintos (a cura da mulher com hemorragia e a ressurreição da ilha de Jairo). Jesus estava junto ao mar. A ele aluiu uma grande multidão. É o momento em que chega a Jesus um dos principais da sinagoga, chamado Jairo (v. 22). Interessante é que na sequência o nome de Jairo não mais aparece. Quando se faz referência a ele, é chamado somente de “chefe da sinagoga” (v. 35,36,38) ou de “pai da menina” (v. 40).
Jairo prostra-se aos pés de Jesus, o que nos dá uma ideia do sofrimento e da esperança que o move. Seu gesto ignora a opinião de outras lideranças judaicas e do povo, que cada vez com maior intensidade manifestam-se contra Jesus. Aos pés de Jesus, Jairo compartilha a sua dor: sua ilha está por morrer. E suplica: “(…) impõe as mãos sobre ela, para que seja salva, e viverá” (v. 23). A esperança é que a menina seja salva e possa viver pela imposição de mãos de Jesus. E Jesus foi com ele. Aqui o texto é interrompido pelo relato da cura da mulher que sofre de hemorragia (v. 24b-34).
Reencontramos a história no v. 35, com Jairo em extremo desespero. A menção de que Jesus “falava ainda” tem a intenção clara de ligar os textos em sequência. Alguns da casa do chefe da sinagoga informam-lhe a morte da ilha. Parece que Jesus demorou demais ao atender a mulher que sofria de hemorragia. A outra cura durante o caminho fez com que chegasse tarde demais para salvar a ilha do chefe da sinagoga. Junto à informação da morte, há agora quase que uma reprimenda ao chefe da sinagoga: “ (…) por que ainda incomodas o Mestre?”. A formulação tem uma intenção clara: a menina está morta, não vale mais a pena incomodar Jesus. O v. 35 mostra uma postura poimênica de Jesus. Ao mesmo tempo em que parece ignorar a notícia da morte, a atitude de Jesus introduz no texto uma questão teológica extremamente importante. No processo da tradição dos relatos de curas realizadas por Jesus, aqui se vai além do que pode ser deduzido das tradições de curas. Os judeus conheciam fatos semelhantes em narrativas veterotestamentárias a respeito de Elias e Eliseu. Mas o que vai ocorrer aqui, em grande parte, é algo exclusivo de Jesus. A questão a ser considerada é a presença de Deus na história. Aqui há a disposição de confrontar a realidade com a proposta de Deus que vem transformar o mundo. Por isso a resposta de Jesus ao chefe da sinagoga: “Não temas, crê somente” (v. 36). A expressão grega mē phobou, monon pisteue está em sintonia com o cerne da tradição sinótica de origem pré-pascal, quando o convite à fé refere-se à fé em Deus. Não é apenas uma referência à fé na pessoa de Jesus. Significa também agarrar-se a Deus na crise. É a fé que confia em Deus contra todas as aparências. É um apelo à aceitação da oferta de salvação, de abandonar-se à sua palavra e a confiar na graça de Deus.
O que ocorre na sequência acontece em um grupo restrito. Jesus levou à casa do chefe da sinagoga somente Pedro, Tiago e João. Chegando à casa, encontra o alvoroço do cerimonial de lamentação, choro e pranto. As pessoas que lá se encontram podem estar ali voluntariamente, tratando-se de familiares, amigos ou ainda poderiam ser profissionais contratados para chorar pela pessoa falecida. A essas Jesus dirige-se perguntando: “Por que estais em alvoroço e chorais?” E se choram e lamentam, certamente é porque a menina está morta. Nesse contexto, Jesus fala e surpreende: “A criança não está morta, mas dorme” (v. 39). Mas dorme: estaria realmente morta ou em coma? Há uma extensa discussão de exegetas a respeito da condição da menina. Para o texto que quer dar uma resposta à pergunta proposta pelo autor do evangelho de “quem é Jesus”, não há muito que discutir. Em vista da intervenção de Jesus, a morte é somente um sono temporário do qual a menina desperta para a vida. Assim como em outros momentos do evangelho, também aqui há uma resposta das pessoas: riram dele. A possibilidade de que ela esteja dormindo é ridícula, motivo de riso. Considerando que a comunidade de Marcos está marcada pela experiência escatológica da Páscoa, é fundamental a afirmação de Jesus: “(…) mas dorme”. Para todos aqueles que não creem na experiência da Páscoa, há uma reação de descrédito e riso. O grupo que testemunhará o que na sequência acontecerá torna-se ainda mais restrito: “(…) mandando sair a todos, tomou o pai e a mãe da criança e os que vieram com ele e entrou onde ela estava” (v. 40).
Os v. 41 e 42 atendem à pergunta programática do Evangelho de Marcos – “quem é esse?” (Mc 4.41) – a que se propõe a responder todo o contexto de Mc 4.35-5.43. A formulação do texto “eu te mando, levanta-te” é central. Jesus não necessita pedir pela restauração da vida da menina. Ele ordena ao poder de Deus por meio de sua própria fala. Jesus é mais do que um milagreiro, mais do que Elias e Eliseu e mais do que um profeta escatológico. Se num momento anterior houve riso e deboche, agora a reação é de admiração (v. 42), pois a menina levantou-se e pôs-se a andar. O final do texto traz alguns elementos tradicionais das histórias de curas e milagres. A menina mostra-se às pessoas que estão próximas. Jesus ordena que nada se fale a respeito, numa alusão ao segredo messiânico (4.10). E em relação à ressurreição, é tematizada a sua dimensão corporal quando ordena que deem de comer à menina (v. 43). Há nessa última ordem um cuidado pedagógico ao tematizar na comunidade cristã a ressurreição. A ressurreição da ilha de Jairo ainda não é para a vida eterna de que fala Paulo em 1Co 15, mas ela é vivificada para esta vida, devendo também a menina morrer como todos nós morreremos. Podemos interpretá-la como uma antecipação daquela vida eterna que se espera no final dos tempos. Mas não sem antes ter a oportunidade de viver a vida. A menina está realmente viva. Ela tem necessidades corporais a serem atendidas. E, por fim, há testemunhas que presenciaram o fato a ponto de voltar à questão central: “quem é esse?”.
Estamos entre os túmulos de familiares queridos, e isso nos faz recordar daqueles dos quais nos despedimos e faz-nos lembrar de nosso próprio futuro. A morte também é nosso futuro mais certo. Ela nos dá conta de todas as vezes em que, na ânsia pela vida, passamos dos limites, querendo tirar o máximo proveito da vida como se ela fosse um jogo qualquer. Prejudicamos e menosprezamos o direito de vida de outras pessoas a fim de matar a nossa fome e sede de vida a todo custo.
A sociedade oferta-nos as mais variadas esperanças e expectativas diante da morte. Prendemo-nos aos bens materiais e pagamos um alto preço na tentativa de fugir da morte. Ou então agimos como se a morte fosse a última palavra. Vivemos como se nada houvesse após a morte. Miserável é o ser humano cuja vida se restringe à vida terrena, e infeliz é aquele que enfrenta a morte sem esperança.
É por causa dessa esperança antecipada da ressurreição da filha de Jairo que não precisamos nos acomodar diante dos sinais de morte presentes em nosso meio. A esperança na possibilidade da ressurreição já se manifesta na vida que prossegue, que vai se recriando e restabelecendo após as tragédias comuns a todos nós. É a solidariedade que nasce a partir do sentir a dor do outro, é o abraço, a palavra de conforto, a comoção que leva à ação, é a fé que age em amor, não se deixando contaminar pelo fatalismo.
Palavras são incapazes de ressuscitar as pessoas que se foram, mas podem despertar as pessoas que permanecem para que se mobilizem, para que outras pessoas não continuem sendo vitimadas pelos sinais de morte antecipada, tão comum nos dias de hoje. Fatos não podem ser modificados, mas as consequências deles em nós sim! A fé motiva profundas e verdadeiras transformações.
No Dia de Finados, lembramo-nos de nossos familiares queridos dos quais nos despedimos, sepultamos em lugar especial. Um dia marcado pela saudade! Parados diante das sepulturas, lembramos momentos de sofrimento, amor, carinho, amizade, convívio. Tanta coisa! São lembranças que a saudade toca, reanima, recupera.
Este dia também tem a finalidade de lembrar-nos da fragilidade de nossa própria vida. Comunicados diários nos jornais e rádio lembram insistentemente que ninguém vive para sempre. Faz parte da nossa dignidade e sabedoria como seres humanos considerar o nosso fim. Isso determina a maneira como vamos viver a vida. Faz com que estejamos conscientes de que cada novo dia de vida é um presente maravilhoso e único que recebemos das mãos de Deus e que jamais voltará. Tantas vezes lamentamos que a vida é curta, mas nos comportamos como se tivéssemos à nossa disposição um estoque inesgotável de tempo. Dar-se conta da temporalidade da vida é um aprendizado que nos ensina a perceber o que é importante e prioritário para a vida. Prioritário é amar as pessoas enquanto há tempo. Acolher seu amor e presentear nosso amor a elas. Isso só é possível enquanto vivemos. Com a morte essa possibilidade acaba.
Nós tínhamos um poço. De vez em quando, ele precisava ser limpo. Depois de esvaziado, alguém precisava descer até o fundo para a limpeza final. Roldanas, corda, um balde amarrado na ponta da corta, lá ia eu, dentro do balde, até o fundo do poço. À medida que o balde descia e eu olhava para cima, a boca do poço parecia ficar cada vez menor. A impressão era de que não iria mais conseguir sair. Mas era apenas o meu sentimento. A saída estava lá. Bastava eu deixar que a mão que segurava a corda lá em cima me puxasse de volta. O luto parece como a estreita boca do poço. Achamos que não vamos mais sair. Está escuro demais. São os nossos sentimentos de tristezas e perdas. Mas a mão de Deus continua firme. É questão de tempo. Ele está segurando a corda da nossa vida. Logo estaremos lá em cima. É um tempo de aprendizado que muitas vezes confronta fé com nossa interpretação do que é justo e injusto. Todos nós temos uma ideia bastante exata de como a nossa vida, na verdade, deveria transcorrer. Nós nos julgamos injustiçados quando confrontados com a dor e o sofrimento. Essa é a parte mais difícil a superar.
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. 3.ed. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1988. p. 168-176.
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1977. p. 245-256.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).