|

Prédica: Romanos 8.18-23 (24-25)
Leituras: Isaías 55.10-11 e Mateus 13.1-9
Autor: Uwe Wegner
Data Litúrgica: 8º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 25/07/1993
Proclamar Libertação – Volume: XVIII

1. Introdução

Rm 8.18ss. têm sido interpretado ultimamente sob a ótica da ecologia. Em língua alemã temos, inclusive, uma monografia dentro desta perspectiva, que é da autoria de Walther Bindemann: Die Hoffnung der Schöpfung (= A esperança da criação), Neukirchen, 1983. O texto é também trabalhado nos estudos sobre teologia e ecologia de Jürgen Moltmann (Gott in der Schöpfung e Der Weg Jesu Christi). No Proclamar Libertação foi abordado por Otto Porzel (PL V, 1979, pp. 150-155), também com considerações ecológicas. Eu mesmo escrevi a respeito em uma meditação publicada pelo Caderno de Estudos, n° 3, da 8a Assembleia da FLM (Curitiba: 30.01 a 08.02 de 1990), pp. 39ss. A presente reflexão dá continuidade a essa linha de inter-pretação, com interesse mais acentuado na questão ecológica.

2. Reflexões

2.1. A interpretação da Bíblia Sagrada, edição pastoral

Na edição pastoral (Novo Testamento) da Bíblia Sagrada , encontra-se a seguinte sugestão de interpretação do texto, que gostaríamos de colocar a seguir como motivação pura o aprofundamento dos versículos:

18-27: A luta contra o egoísmo é possível para aqueles que entraram no âmbito do Espírito. Essa luta não terminou, mas está em contínuo processo: vivemos na esperança de conseguir a vitória final. Esse anseio é universal e se expressa nos clamores da natureza e do homem. A natureza espera ser libertada do uso egoísta pura ser partilhada e colocada a serviço de todos. Os homens esperam ser libertos de toda exploração e opressão que escravizam seus corpos, a fim de sempre mais se colocarem gratuitamente a serviço dos irmãos. Entretanto, a salvação plena é uma realidade futura e inimaginável. Cegos pelo sistema egoísta, muitas vezes não conseguimos enxergar o caminho. É o clamor do Espírito que nos dirige, então, orientando nos conforme a vontade de Deus (pp. 248s.).

Rm 8.l8ss. parece dar sequência ao que o apóstolo colocava resumidamente já em 5.2ss. Ali, havia afirmado a dádiva do Espírito Santo (cf. 5.5 com 8.12-17,26ss.), reiterado a prova inequívoca do amor de Deus (cf. 5.5-11 com 8.31-39), baseado no qual as tribulações não precisariam mais ser consideradas como motivo para desânimo ou revolta, e, sim, encaradas como experiências destinadas a gerar perseverança (5 cf. 5.3-4 com 8.24-25). Em nosso texto e contexto, todos estes pensamentos retornam mais uma vez, agora explicitados com maiores detalhes.

2.2. Os gemidos dos/as cristãos/ãs

Os gemidos dos/as cristãos/ãs aparecem tematizados no v. 23. Este afirma que também os cristãos, à semelhança do restante da criação, gemem em seu ínti¬mo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do corpo. O assunto provoca as seguintes considerações:

1. Os comentaristas mais recentes têm mostrado uma tendência na direção de traduzir a expressão en eautois por em seu íntimo. A mesma tendência mostra-se nas traduções da Bíblia: as traduções de Almeida, da Bíblia de Jerusalém, da Bíblia na Linguagem de Hoje, da TEB (Tradução Ecumênica da Bíblia), da Edição pastoral, da Bíblia Sagrada (Paulinas), etc. vão todas na mesma direção. O argumento que se usa é, comumente, tirado de 8.26, onde se afirma que o Espírito intercede por nós em orações com gemidos inexprimíveis. Pensa-se, pois, que Paulo estaria querendo referir-se já em 8.23 a estes gemidos interiores de 8.26, que, mui provavelmente, se dariam por ocasião das orações durante os cultos da(s) comunidade(s). Esta interpretação não nos parece ser feliz. Gramaticalmente, como refere Schlier (cf. p. 265), a expressão poderia ser traduzida também no sentido de em relação a nós mesmos/por causa de nós mesmos/em nosso meio. Nós achamos que estas últimas traduções correspondem ao sentido mais provável. O argumento decisivo é dado pelo contexto imediato do v. 22. No v. 23, os gemidos dos cristãos são comparados com os da criação. Ora, os gemidos desta última dificilmente poderão ser interiorizados: a crise ecológica nos mostra que os gemidos da criação são extremamente exteriores e atingem o corpo material dos animais, plantas e demais organismos. Os gemidos da criação são visíveis a olho nu, na forma da depredação, exploração e insensibilidade para com o meio ambiente. Um segundo argumento para a tradução alternativa é o final do v. 23 que fala, expressamente, numa redenção do corpo. Teria sentido Paulo referir-se a esta redenção explícita no final do ver-sículo, se os gemidos de que fala em seu início referir-se-iam unicamente a gemidos interiores? Por último, convém apontar ainda para o contexto posterior de 8.31ss. para entender o que poderia estar o apóstolo pretendendo dizer quando se refere aos gemidos dos cristãos. Aí é, sobretudo, o v. 35 que dá as melhores pistas: Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação, ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo ou espada?. Aqui é apontado para uma série de perigos bem concretos que os cristãos tinham que enfrentar. Parece-nos, pois, que é desta esfera que, entre os/as mesmos/as, brotavam os gemidos que reclamavam uma redenção de corpo e que caracterizavam aquilo que Paulo denomina de os sofrimentos do tempo presente (8.18). Sugerimos, a partir dessas reflexões, que a expressão en eautois seja traduzida por em relação a nós mesmos ou por causa de nós mesmos. A presença do Espírito não significa que o corpo não esteja sujeito a toda sorte de dor, sofrimento e tristezas. Pode significar, no entanto, que a maneira de encará-los vai mudar.

Hoje, os sofrimentos aos quais estão sujeitos nossos corpos não se restringem mais aos apontados em 8.35 ou em outros trechos, a exemplo de 2 Co 6.4-10. A crise ecológica, que provocou o envenenamento, a poluição do ar, das águas e dos alimentos, mostra que o extermínio dos corpos passa, em grande medida, também pela boca e pelo nariz. A grande diferença é, no entanto, que os inimigos mortais dos cristãos antigamente eram mais facilmente identificáveis dos que hoje em dia. A morte em razão da poluição e envenenamento de águas, ares e alimentos é, além disso, bem mais refinada: ela mata devagar, de forma praticamente imperceptível. Por isso, é muito difícil refletir, hoje em dia, redenção de corpos, sem refletir simultaneamente redenção do meio ambiente.

2. Os vv. 24-25 reportam-se à esperança frente a esta situação de gemidos dos /as cristãos/ãs. Somos inicialmente lembrados de 5.3, em que Paulo já colocava: a tribulação produz a perseverança. Esta afirmação não é óbvia, já que a tribulação pode produzir também o desânimo/resignação ou, num sentido inverso, levar ao desespero. O Almeida traduz, em 8.25a, perseverança com o termo paciência. Em português, esta tradução pode dar margem a uma interpretação errônea, já que paciência não raro é associada à resignação e ausência de resistência. Por isso a tradução por perseverança na Bíblia de Jerusalém para nosso versículo é bem mais adequada. Quem vem da leitura de passagens como Rm 6.13-23 ou passa para a leitura posterior de passagens como Rm 12.1-2 não poderá interpretar o termo senão no sentido de uma persistência evangélica fiel e comprometida dentro de uma situação hostil e adversa. Quem preferir o termo paciência talvez devesse falar de uma paciência militante. Não será sem razão que o termo perseverança (no grego: ypomone) aparece de maneira destacada dentro do NT justamente em Romanos è Apocalipse.

Mas, pergunta-se: O que leva Paulo a acentuar justamente a perseverança, a persistência evangélica fiel e comprometida na sua carta à comunidade de Roma? Há uma tese desenvolvida por Bindemann (pp. 29-33, etc.). Ela parte da observação do emprego repetitivo do verbo ver nos vv. 24s., contra o qual polemiza o apóstolo: Ora, esperança que se vê não é esperança; pois o que alguém vê, como o espera? Mas, se esperamos o que não vemos, com perseverança o aguardamos. Bindemann é da opinião de que, na comunidade de Roma, efetivamente se esperava por algo que já se via. Mas, via-se onde e como? Sua suspeita é a de que Paulo estivesse polemizando contra correntes apocalípticas em Roma, que, diante do peso das tribulações a que o testemunho submetia os cristãos, procuravam refúgio e consolo nas visões apocalípticas do mundo prometido para o porvir. A ânsia de constatar o futuro pelas visões dos apocalípticos estaria correndo o perigo de alienar os cristãos de um testemunho corajoso, requerido pelo seu presente histórico.

Esta tese é plausível, embora não possa ser provada por falta de informações mais detalhadas sobre a teologia das comunidades da capital romana. Certo está, de qualquer maneira, que para o apóstolo o conteúdo da esperança cristã não permite que os fiéis fraquejem resignados ou desesperados: o amor de Deus, comprovado na vida de Jesus (8.31ss.), e o próprio exemplo de Cristo, que não fugiu, mas enfrentou as suas tribulações (8.17), constituem os referenciais últimos para a perseverança na justiça.

Hoje em dia, é indiscutível que seitas do tipo apocalíptico podem constituir-se ainda em fatores decisivos de alienação do mundo por parte dos cristãos. Mas existem também razões bem próprias e características da nossa época para que percamos a paciência ou deixemos as coisas rolar, ambas atitudes daqueles/as que não conseguem mais esperar com perseverança. A morte das utopias, a desilusão política, a sensação de incapacidade para transformar estruturas opressoras poderiam ser alguns entre outros exemplos neste sentido.

2.3. Os gemidos da criação

Em 8.22, Paulo afirma: Pois sabemos que toda a criação geme e sofre dores de parto até o presente.

A criação, neste caso, é distinguida dos cristãos, aos quais o apóstolo refere-se separadamente no v. 23. Por isso entendemos que criação representa, no v. 22, o conjunto do mundo não humano criado por Deus. Que significam, pois, os gemidos da criação e suas dores de parto?

Uma ajuda de interpretação dá o v. 21: a criação necessita ser libertada do cativeiro da corrupção. Ora, corrupção é palavra que levanta, de imediato, uma sé rie de associações em nós. A palavra que lhe corresponde em grego é phthora. Nos dicionários, aparece traduzida por corrupção, destruição, decomposição, ruína, e o verbo correspondente, phtheiro, por destruir, danificar, corromper, etc. (Taylor, p. 36). Assim, a escravidão da corrupção pode ser entendida como aquele estado da criação de Deus que não permite que ela respire vida, apresente a glória que lhe é inerente e transmita a força que possui. A escravidão da corrupção determina que a criação de Deus esteja agonizante, fraca, doente e acabe morrendo. Escravidão da corrupção é o estado de uma criação a caminho do seu extermínio.

Outra ajuda de interpretação oferece o v. 20: Pois a criação foi submetida à vaidade, não por seu querer, mas por causa daquele que a submeteu. Como o uso da voz passiva sem especificação do sujeito normalmente se refere a Deus na Bíblia, devemos crer que Paulo esteja pensando em Deus como autor quando diz que a criação foi submetida à vaidade. As Bíblias apontam para o texto de Gn 3.17 (cf. Gn 5.29) para confirmar essa interpretação, uma passagem em que Deus diz a Adão: Maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás dela o sustento… Deus submeteu, pois, a terra a um estado de maldição em razão do pecado humano. Paulo acentua que o problema não reside na criação em si, como se esta tivesse querido para si própria uma maldição, e, sim, que se originou por causa daquele que a submeteu. Esta segunda parte do v. 20, embora use o mesmo verbo que a primeira, dificilmente estará se referindo a Deus também. Como mostra a história em Gn 3, a causa da maldição não foi Deus, e, sim, o homem. Logo, por causa daquele que a submeteu deve estar se referindo a Adão, não a Deus. Este pensamento é, aliás, também atestado por outras passagens do judaísmo da época, a exemplo de 4 Esdras 7.lis.:

(…)Quando Adão infringiu os meus mandamentos, a criação foi julgada: Então os caminhos deste mundo tornaram-se estreitos, tristes e penosos, lastimosos e ruins, cheios de perigos e a mercê de grandes necessidades.

Textos como estes também ajudam a definir melhor o que para o apóstolo poderia ter representado a vaidade, à qual foi sujeita a criação. Esta palavra não é tradução feliz do original mataiótes, já que no português é associada com significados diferentes. Os dicionários atestam os significados de inutilidade, futilidade, qualidade do que é vão e passageiro. A Bíblia na Linguagem de Hoje traduz: Porque o universo se tornou inútil(…) e a Tradução Ecumênica da Bíblia refere-se à criação que foi entregue ao poder do nada. As passagens em que o substantivo (Ef 4.17; 2 Pe 2.18), o verbo (Rm 1.21) ou o adjetivo (At 14.15; l Co 3.20; 15.17; Tt 3.9; Tg 1.26 e l Pe 1.18) aparecem dentro do NT parecem reforçar o sentido de inutilidade e/ou futilidade, dentro da linha de Gn 3.17 e 4 Esdras 7.11-12. Que a criação tenha sido submetida à inutilidade quer significar, então, que ela não rende mais aquilo que poderia e deveria render; daí que o relacionamento com a mesma seja marcado mais pela fadiga, desilusão e descontentamento do que pela alegria e correspondência de expectativas.

Se a interpretação estiver no caminho certo, teríamos uma estreita ligação entre a vaidade = inutilidade da criação e o seu cativeiro da corrupção, dentro do qual foi colocada mediante o pecado humano. O pecado corrompe a criação — hoje diríamos que a intoxica, polui, envenena e extermina. Daí se explica o fato de ela encontrar-se em estado de inutilidade, futilidade, ansiosa por libertação.

2.4. Cristãos/ãs e criação irmanados/as na expectativa da redenção e glória

Não é fácil manter a esperança acesa dentro de uma realidade desesperadora onde ambos, o corpo das criaturas e o corpo da criação, são submetidos dia-a-dia à exploração e ao extermínio, seja de forma direta ou indireta. Quando por anos a fio, por dezenas de anos a fio, as situações de vida não apresentam melhora, o que mais acontece não é a confirmação da esperança, mas a apatia, a resignação ou o apelo para a ignorância.

Apesar desta situação, que, aliás, na época do apóstolo não diferia em muito dos dias atuais, Paulo coloca o testemunho de uma expectativa ardente e inflamada por redenção. O amor de Deus, revelado na vida de Cristo por nós (8.31ss.), e a ressurreição de Jesus, reveladora do amor de Deus para com o Cristo (8.17), eram os seus dois referenciais, sobre os quais cabia fundamentar a esperança. Estes dois referenciais explicam por que a sua esperança era esperança perseverante e não alienante: O amor se constrói em meio às tribulações e conflitos da vida, não à parte destes. Mesmo assim, não há comparação entre o agora e o porvir, diz o apóstolo (8.18). Um tempo de sofrimentos vai dar lugar a um tempo de glória. Esta é uma expectativa que o NT apresenta do seu primeiro ao último livro, a partir da glória já revelada na ressurreição de Jesus.

A novidade que se apresenta em nossa passagem é que a ardente expectativa na vinda deste reino de glória e liberdade ,não é só compartilhada por cristãos, mas pelo conjunto de toda a criação divina. É isso que, a nosso ver, querem expressar os dois verbos compostos no v. 22, a saber, systenazo (= gemer com) e synodíno (= sofrer dores de parto com) (v. 22). Eles podem, é verdade, referir-se a um processo de comunhão de sofrimentos no interior de toda a criação, referida no mesmo versículo. Por outro lado, o emprego do mesmo verbo (não composto) para os cristãos, logo a seguir (v. 23), faz supor que o apóstolo queria caracterizar criação e cristãos irmanados nos sofrimentos e na esperança. O versículo 22 mereceria, então, a tradução seguinte: Pois sabemos que toda a criação participa dos gemidos e das dores de parto até agora. Esta interpretação poderia ser fundamentada com os vv. 19s. Sobretudo o v. 20 mostra que entre o que acontece com o homem e com a natureza há uma relação muito estreita. Ora, se com Adão efetivamente entrou o pecado no mundo e, a partir deste, a corrupção e a futilidade da criação, não é sem sentido que com a redenção de Adão também retorne paralelamente a criação ao seu estado original. Rm 8.19-22 apresenta, dessa forma, a parte do NT em que, a nosso ver, mais estreitamente são ligadas criação de Deus como um todo e criação humana em particular. A ecologia vem chamando nossa atenção para esta estreita conexão há décadas. Ela vem nos alertando para aquilo que, curiosamente, os teólogos parecem ter esquecido, a saber: não dá para separar criaturas humanas e o restante da criação. O que fazemos a uma dessas partes afetará intimamente a outra. Eis aí, portanto, a razão de ter afetado intimamente a criação o fato de ter Cristo morrido e ressuscitado em favor de nós, criaturas.

3. Prédica

Uma prédica sobre o texto poderia tematizar os seguintes itens:

1. O mundo de desesperança que nos rodeia e os perigos da alienação e busca individualizada da felicidade. Esses perigos são fortalecidos pelos

2. gemidos dos/as cristãos/ãs e

3. gemidos e dores de parto da criação.

4. A dor de parto, quando enfrentada e suportada corajosamente, segue o aparecimento de vida. Os/as cristão/ãs são convidados/as — com base no testemunho da vida e ressurreição de Jesus — a não se desesperarem nem resignarem com os sofrimentos do tempo presente, mas a perseverarem na esperança e defesa da vida e glória a ser revelada.

4. Bibliografia

BINDEMANN, W. Die Hoffnung der Schöpfung. Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1983.
MOLTMANN, J. Gott in der Schöpfung. Ekologische Schöpfungslehre. 3. ed. München, Chr. Kaiser, 1987.
MOLTMANN, J. Der Weg Jesu Christi. München, Chr. Kaiser, 1989.
PORZEL, O. Romanos 8.18-23. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1979, pp. 150-155, vol. V.
COMENTÁRIOS: Foram consultados os de H. Schlier, U. Wilckens e O. Michel.