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Prédica: Hebreus 2.9-11
Leituras: Gênesis 2.18-24 e Marcos 10.2-16
Autor: Teobaldo Witter
Data Litúrgica: 20º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 09/10/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX

1. A carta

A Carta aos Hebreus tem o estilo de prédica e não propriamente de carta. O autor chama-a de palavra de exortação (13.22) ou palavra de ânimo, conforme a Bíblia na Linguagem de Hoje. Nessa carta-prédica, os apelos práticos vêm acompanhados da doutrina. As pessoas destinatárias estão sendo animadas a permanecer firmes na fé em Jesus Cristo, o misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus (2.17b).

Certamente, as pessoas destinatárias da carta passaram por humilhações públicas, perseguições e tiveram bens confiscados por causa de sua fé. A partir da fé em Jesus Cristo, elas se sentiram solidárias com pessoas necessitadas da sociedade, como escravos e escravas, pessoas prisioneiras e humilhadas. Portanto, lutavam em frentes onde outras pessoas não lutavam. Defendiam quem era rejeitado. Apoiavam quem era explorado. Libertavam quem tinha pés e mãos amarradas e olhos, ouvidos e boca fechados pela mentalidade corrente. Certamente não iam com a maioria para Ia/cr o mal ou para torcer o direito (Êx 23.2). E então veio a pressão sobre essas pessoas. No passado, permaneceram fiéis na fé em Jesus e na luta. Mas, agora, parece que a depressão entra em sua vida. Perguntam pelo sentido do sofrimento de Jesus e pelo sentido do seu próprio sofrimento. Com a presente carta-prédica estão sendo anima¬das a perseverar em fazer a vontade de Deus. Aí alcançam a promessa de Deus (Hb 10.32ss.).

Ninguém sabe certo quem escreveu a Carta aos Hebreus. Sugerem-se muitos nomes, mas nenhum alcança apoio firme. A Bíblia de Jerusalém sugere Apoio como autor da carta. Apoio foi alexandrino eloquente, tinha zelo apostólico e conhecimento da Escritura (AT), cf. At 18.24-28. Essas qualidades se refletem na Carta aos Hebreus. Mas certamente isso ainda não é argumento suficiente para afirmar apaixonadamente que Apoio escreveu Hebreus. Depois de ler, reler o texto e comentários, concordo com Eduard Lohse: Permanece em vigor a constatação feita já por Orígenes de que unicamente Deus sabe quem escreveu Hebreus. Contudo, evidencia-se com toda a clareza a posição teológica do autor, que procura ajudar a segunda geração cristã no combate contra tentação e esmorecimento, ao tentar explicitar em seu esboço teológico a fé como sendo o ser cristão propriamente dito (p. 218).

Especialmente a partir de 6. 1 (obras mortas e crer em Deus) e 9.14 (purificar consciência de obras mortas), podemos dizer que as pessoas às quais é endereçada a carta são gentios convertidos à fé em Jesus Cristo. Esses elementos são usados na pregação missionária cristã entre gentios.

As pessoas que receberam a carta-prédica são da segunda geração cristã. Hb 2.3 fala do anúncio da salvação do Senhor, o que nos foi confirmado pelos que a ouviram''. Certamente isso nos leva para 50 ou 60 anos depois da morte e ressurreição de Jesus Cristo, isto é, para o ano 80 ou 90 da era cristã.

Hebreus quer animar e desafiar as pessoas a permanecerem firmes na fé em Jesus Cristo (3.6; 3.14; 6.18-19), esse único Sumo Sacerdote, que sofreu e foi morto pura salvar muitos.

2. O texto

O v. 9 certamente é o versículo-chave de Hebreus 2.5-18. Ele é uma espécie de conclusão dos vv. 5-8 e uma espécie de introdução aos vv. 10-18.

Nos vv. 5-8, o autor argumenta que não foi a anjos que (Deus) sujeitou o mundo (v. 5), mas a um outro. Citando o Salmo 8.4-6, identifica esse outro como sendo o filho do homem. Ele é superior a anjos, porque foi a Ele que Deus sujeitou o mundo (v. 5). Esse filho do homem é Jesus (v. 9). Jesus foi feito menor que os anjos por um pouco (v. 9). Esse por um pouco certamente se refere à tentação, sofrimento e morte de Jesus Cristo (Mc 1.12s.; Mc 14.32s., Mc 15.33ss.). Nessa situação, Jesus clama por solidariedade. Enfrenta a morte maldita em nosso lugar. Vai ao lugar onde zombam de Deus. Sente-se abandonado pelo próprio Deus. O v. 9 fala da necessidade do sofrimento e da morte de Jesus. Pela graça de Deus, ele morreu por todas as pessoas. Ele é vencedor. Agora, por causa de sua morte, o vemos coroado de glória e honra (v. 9). Certamente o texto se refere, nesse ponto, à ressurreição de Jesus Cristo. Nós podemos lembrar do testemunho de Estêvão, que, em seu martírio, vê a glória de Deus e Jesus em pé à sua direita (At 7.54ss.). Ele está cm pé, como um vigia, pronto para a ação. Basta um clamor, e Ele vem em auxílio.

Jesus foi tornado perfeito através do sofrimento e de sua morte na cruz, como um bandido maldito, por todos. Essa foi a vontade de Deus, para que os filhos tomassem parte da sua glória (v. 10). Assim, Deus fez Jesus ser o autor da salvação dos muitos filhos.

Todas as coisas existem para Deus e por causa de Deus (v. 11), tanto Jesus quanto as pessoas que nele crêem. Deus é Pai Criador de Jesus e dos demais filhos c filhas. Por isso Jesus chama-os de irmãos (v. 11). A diferença é grande: Jesus santifica, e os demais são santificados por ele. Mas é por misericórdia sua que Jesus não se envergonha de chamar os seus de irmãos.

O texto indicado para a pregação termina no v. 11. Mas, para poder entender bem o sentido do sofrimento e da morte de Jesus, convém ir um pouco mais adiante, especialmente aos w. 14-15. Parece que ali há uma explicação mais clara sobre o sofrimento de morte (v. 9). O autor fala de duas razões para a morte de Jesus: 1) destruir o diabo, que tem poder sobre a morte; 2) libertar todas as pessoas de sua escravidão por causa do medo da morte.

Jesus foi morto na cruz. Desceu ao inferno (Credo Apostólico), para ali ser solidário com todas as pessoas que passam por situações de inferno. Vence e transforma essa situação. Assim, ele pode socorrer aqueles que são tentados (v. 18). Pode ajudar aquele que balança na fé. Jesus enche tudo de vida. Por isso não precisamos temer a morte. Jesus, o único Sumo Sacerdote, ofereceu a si mesmo como pagamento dos pecados do povo. Deus cobrou de Jesus o nosso egoísmo e as nossas injustiças. É o sofrimento vicário de que escreve Is 53.3-5. Por isso, Ele é Nosso Senhor. Nós somos os seus, que Ele conquistou corri seu santo e precioso sangue e sua inocente paixão e morte (Lutero). Os seus e as suas lhe pertencem e lhe servem (Lutero) nas pessoas necessitadas. Não por obrigação, mas por gratidão e com alegria, espontaneamente.

Quanto à questão da glória e honra (v. 9), pode ser entendida a partir da ressurreição de Jesus Cristo. Ele não permaneceu na morte, mas ressuscitou e está vivo. Pela obra de Jesus, a morte perdeu seu poder (l Co 15.55).

3. As leituras

A leitura do Antigo Testamento prevista para este dia é Gênesis 2.18-24. Ela tem uma certa ligação com Hebreus 2.9-11. Também na carta é sugerida a criação: (Deus) por cuja causa e por quem todas as coisas existem (v. 10a). Gn 2 fala da boa criação de Deus. Gn 2.18-24 fala, também, a respeito do matrimónio. Esse faz parte da boa criação de Deus. As pessoas casadas, mulher e homem, se tornam uma só carne (v. 23). Jesus liberta os seus do medo, do egoísmo e da morte, para que lhe pertençam e lhe sirvam também na vida em matrimônio.

A leitura do Evangelho para este dia se encontra em Marcos 10.2-16. Essa leitura trata de dois assuntos:

3.1. Mc 10.2-12: Fariseus são a favor do divórcio. Eles se apoiam em Dt 24.1-4. Querem saber se Jesus é a favor da carta de divórcio. Jesus faz os fariseus pensarem sobre a dureza de seus corações e sobre a criação. A partir da criação, divórcio é pecado. Jesus é radicalmente contra o divórcio. Desmascara, assim, a organização dos piedosos fariseus na questão do matrimônio. Os discípulos ficam sem jeito por causa da radicalidade de Jesus. Em casa perguntam-no novamente sobre o assunto. Aí Jesus diz que quem se separa e casa com outra/o peca. Concluindo, podemos dizer que o máximo que dá para aceitar é uma separação geográfica (talvez até temporária). Mas não podemos, sem pecar, destruir a possibilidade de um novo reencontro, a partir do perdão.

Também o nosso egoísmo e a nossa injustiça na vida matrimonial Deus cobrou de Jesus Cristo (Hb 2.17b).

3.2. Mc 10.13-16: fala do amor das crianças em relação a Jesus e do carinho e acolhimento desse em relação às crianças. Enquanto os líderes procuram afastar as crianças de Jesus, esse as acolhe. As crianças são modelo devido à liberdade e espontaneidade com que correm para os braços de Jesus Cristo. Nisso elas são exemplo. Pessoas adultas são convidadas a receber o Reino de Deus como aquelas crianças o recebem.

Deus cobrou de Jesus também o nosso egoísmo e a nossa injustiça com que tratamos as crianças. Isso dá o que pensar e agir em nossa realidade brasileira, onde há tantas crianças sofrendo por causa do egoísmo e da injustiça.

4. Pistas para a prédica

4.1. Jesus é superior a todos os poderes do céu e da terra. Quem nele crê e confia não precisa de outras forças, deuses, ídolos ou poderes do céu ou da terra.

4.2. Esse Jesus foi feito por um pouco menor que os anjos. Ele andou pelos caminhos que nós andamos (ou andávamos). Foi tentado pela fama, pela riqueza e pelo poder. Na luta, foi servido pelos anjos (Mc 1.13c). Venceu. Vacilou na fé (Mc 14.36b). Aceitou a vontade de Deus (Mc 14.32ss.). Sentiu-se abandonado por Deus (Mc 15.33ss.). Teve morte horrível. Ali todos zombam de Deus. Morte matada. Venceu. E graças a Deus, venceu também a nossa falta de sensibilidade e a nossa indiferença (Mc 15.39b). Verdadeiramente é Filho de Deus.

4.3. Venceu o poder do diabo (Hb 2.14b). Hoje, muitos crêem mais no diabo do que em Jesus, também pessoas evangélicas luteranas e de outras igrejas cristãs. O diabo é uma força que amarra as pessoas e as deixa sem ação. Isso pode ser a própria cabeça da gente. Pode ser a opinião de pessoas amigas, que nos afasta da igreja e da luta por paz com justiça. Pode ser a mentalidade geral. Pode ser o que a maioria pensa e diz. E essa força é esperta. Convence. Seduz as pessoas para as obras das trevas, isto é, obras que a gente esconde. Jesus veio para destruir essas obras. Destruindo essas obras, elas não terão poder sobre a gente. Jesus venceu o poder do diabo. Podemos vencer junto com Ele.

4.4. Com o sofrimento de sua morte, Jesus destruiu o poder da morte (Hb 2.9,14). A morte é terrível. É o pior que existe, disse uma criança doente. Seu poder foi grande. Pessoas cristãs estão livres desse poder destruidor da morte. Afinal, Jesus venceu a morte pela raiz. Ele foi direto e destruiu aquele que tem o poder da morte. Quem confia e crê em Jesus tem agora a ressurreição. Tem vida depois da morte. Por isso tem mais liberdade. Sabe que a morte não é o fim. Assim está livre da exagerada preocupação consigo mesmo. Está mais livre de si para defender a vida de outras pessoas. Já que Jesus cuida dele e o defende, ele pode se encarregar de cuidar e defender pessoas necessitadas.

4.5. Jesus, o único Sumo Sacerdote, ofereceu-se em sacrifício a Deus pelos pecados do povo (Hb 2.17). Todas as pessoas estão sujeitas ao egoísmo e à injustiça (pecados). Deles ninguém está livre. Ó culto comunitário é a reunião dos irmãos e irmãs dele (Hb 2.11). Elas e eles estão cheios de pecados. Mas se submetem espontaneamente à Palavra de Deus. Deus, através de sua igreja, acolhe as pessoas que estão em conflito consigo mesmas por causa de seu egoísmo. Jesus está vivo e luta para livrar os seus irmãos/irmãs do egoísmo. O próprio egoísmo é a cruz que as pessoas têm consigo mesmas. Como Pedro, que chorou por ter negado Jesus, assim pessoas cristãs choram por causa de seu próprio egoísmo. Para sermos libertos do nosso egoísmo, precisamos conhecer-nos assim como de fato somos. Precisamos conhecer o nosso egoísmo. Essa é a cruz.

Uma mãe chegou aqui em casa chorando: Quando meu filho tem algum probleminha, eu fico muito triste e preocupada. Mas, quando o filho de uma amiga minha está em apuros, eu acho que é culpa deles e nem ligo para isso. É uma cruz que eu carrego. Eu estou arrasada comigo mesma. Eu quero me libertar disso. Eu me esforço, mas não consigo. E você, que cruz tem consigo mesmo?

4.6. Pessoas que crêem em Jesus Cristo assumem todas as suas atitudes. São sensíveis. Não transferem a sua culpa para outros ou outras, nem para Deus. Responsabilizam-se pelas suas obras. Nem pensam só em si. Arrependem-se. Livres, empenham-se para mudar o quadro de miséria das crianças e adolescentes em sua região. Sabem que a importância da família está no serviço que prestam nela. E na comunidade dos irmãos e irmãs sempre estão aí. Sem ela, a sua vida de fé, esperança e amor não tem chance. E, na sociedade, são militantes da luta pela transformação. Aí trabalham em favor da vida para todas as pessoas. E nessa fé são constantes, vigilantes e perseverantes.

5. Bibliografia

LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo, Editora Sinodal, sem data. Pp. 211-218.
LUTERO, Martim. Catecismo Menor. Editora Sinodal, 17a edição, São Leopoldo, RS, segunda parte, pp. 10-11. 1993.
GRÜBBER, Edmundo. Meditação sobre Hebreus 2.10-18. In: N. Kirst (ed) Proclamar Libertação. Vol. IX, 1983, São Leopoldo, RS, Editora Sinodal, pp. 188-195.