Prédica: Isaías 63.15-16; 19b-64.3
Autor: Nelson Kirst
Data Litúrgica: 1º Domingo de Advento
Data da Pregação:
Proclamar Libertação – Volume: I
Tema: Advento
I – Texto
Tradução:
(15) Olha1 dos céus e vê2, da residência3 da tua santidade4 e da tua glória5! Onde está tua paixão6 tua força7, a comoção8 dos teus sentimentos9 e da tua comiseração10? Não te contenhas11 ! (16) Pois tu és nosso pai! Abraão não nos conhece e Israel não sabe de nós12. Tu, Javés és nosso pai! Nosso libertador13 desde a eternidade é o teu nome. (19b) Ah, se rasgasses14 os céus e descesses15, para que diante de ti estremecessem16 os montes! (64,1) Como o fogo faz arder17 ramos secos, como o fogo faz ebulir18 as águas! Para tornar conhecido19 teu nome aos teus inimigos e para que diante de ti se apavorem20 os povos. (2) Realizando21 fenômenos temíveis que não esperamos22, (3) como não se ouviram desde a eternidade. Nenhum ouvido23 ouviu24 nenhum olho viu um Deus além de ti, que age em favor daquele que por ele espera25!
Observações quanto à tradução: 1) imp hi nbt – 2) imp qal r 'h – 3) z'bul – 4) qodäs – 5) tif’arah – 6) qin'ah – 7) g' burah – 8) hainovn – 9) me'äh} interior – 10) rähäm – 11) cf. aparato, 'fq, conter-se, refrear os sentimentos – 12) imperf hi nkr – 13) pt qal g' l – 14) qr ' – 15) yrd – 16) pf ni zll – 17) inf qal qdh – 18) imperf qal b 'h, crescer. transbordar – 19) inf cs hi yd', a rigor, para fazer conhecer – 20) imperf qal rgz – 21) inf cs qal 'sh – 22) imperf pi qvh – 23) cf . aparato – 24) pf hi ‘zn – 25) pt pi hkh.
Antes de mais nada: a contagem dos versículos na Bíblia Hebraica (BHK) , que adotamos acima, não confere com a de Almeida. No trecho que nos interessa especialmente a relação entre ambas é a seguinte (primeiro o número de BHK, depois o de Almeida): 63.19a = 63.19; 63.19b = 64.1; 64.1 = 64.2; 64.2 = 64.3; 64.3 = 64.4.
O trecho 63.7 – 64.11 é, todo ele, uma lamentação do povo (LP) , dentro da qual 63.7-14 se apresenta quase como um salmo histórico autônomo, fazendo um retrospecto dos atos salvíficos do passado. A LP propriamente dita começa, pois, no v 15 e apresenta a seguinte estrutura:
15 – 16 súplica pela dedicação de Javé e asseveração de confiança
17 – 19a lamentação
19b – 64,4a súplica pela intervenção de Javé
4b – 6 confissão de culpa com acusação a Javé
7 asseveração da confiança
8 súplica pela dedicação de Javé
9 – 10 lamentação por Sião e Jerusalém
11 pergunta final.
Seja qual for a divisão que se faça, cortar uma unidade, tomando apenas alguns trechos como base para uma prédica, sempre foi um mau costume. Se aqui propomos dois blocos isolados da LP, fazemo-lo com base nas seguintes considerações:
a) o texto todo é demasiadamente longo e complexo para que a comunidade possa acompanhá-lo com provei to, apenas ouvindo;
b) com os dois trechos indicados, tomamos o elemento que nos parece central nesta LP, qual seja, a súplica por dedicação e intervenção de Javé. Os outros elementos podem, neste caso, ser considerados complementares, embora sejam importantes e, se possível, devem ser considerados na prédica (lamentação e confissão de culpa). Na série de perícopes ainda se indica 64,4a (que não incluímos por ser um provável acréscimo que vem deslocar um tanto o sentido da súplica original) e 64,8 (que não incluímos para não termos que recortar ainda mais o texto e para não sermos obrigados a entrar na questão da culpa, o que implicaria num acúmulo de assuntos para a prédica).
Is 63s forma, junto com a LP de Is 59, a moldura para as palavras de graça dos capítulos 60 a 62, que são parte central do complexo de escritos pertencentes a Tritoisaías(Is 56-66). Nossa LP surgiu, em seu cerne, provavelmente logo após a queda de Jerusalém, em 587, não pertencendo, pois, em sua origem, a Tritoisaías. Ela representa o texto de um ato litúrgico, cultual, no qual a comunidade se reúne para diante de Deus lamentar uma calamidade pública (no caso, a destruição do templo e da cidade) e suplicar pela dedicação e intervenção benigna de Javé. Esta é a situação que devemos pressupor. (Sobre o exposto neste último parágrafo, cf. Westermann, ATD 19, p. 236ss, 306s e 311).
15: A LP é de uma linguagem singularmente passional, arrebatadora. A comunidade investe tudo para chamar a atenção de Javé sobre a sua situação e induzi-lo à ação. Chamamos a atenção para as seguintes considerações:
a) A comunidade salienta a distância e santidade de Javé, que habita em gloria, nos céus.É o Deus intocável, distante, longe das lidas cotidianas, humanas, imperscrutável.
b) No restante do v 15, a comunidade apela para uma série de atitudes da parte de Deus. Ela fala da paixão de Deus – pelo seu povo, é claro. Fala da força que Deus é capaz de investir – em favor do seu povo. Fala da convulsão dos sentimentos de Deus e da sua comiseração – em favor do seu povo. Mas sobre essas atitudes diz a comunidade: onde estão? Que significa isso? Abandono. A comunidade se sente órfã, abandonada por seu Deus. A ponto de pedir que ele deixe de refrear seus sentimentos, sua paixão, para novamente dedicar-se ao seu povo,
c) Deduz-se daí algo muito importante: Embora não sinta agora a sua presença benigna, a comunidade sabe a respeito de tais atributos de Deus; do contrário, como pode ria sentir falta deles? Ela deve ter tido notícia. Já houve os que, talvez num passado remoto, experimentaram a paixão, a força, a comiseração de Deus. Destes a comunidade deve ter recebido informação. Por isso ela pergunta: onde estão?
16: Do abandono assim expresso, da dolorosa falta de Deus, a comunidade se atira nos braços desse mesmo Deus: Pois tu és nosso pai! Nesta situação de nada adianta ser descendente físico de Abraão ou pertencer a uma nação chamada Israel. Importa agora que, apesar de tudo, a pesar da distância e do abandono, Javé é nosso pai.
A concepção da paternidade de Javé é única no AT. Os israelitas não gostam de falar de seu Deus nesses termos para evitar a possibilidade de uma compreensão mítica de tal paternidade, como acontece entre os povos vizinhos. Importante para a interpretação é ver claramente o que é que aqui se entende por pai. Não há nada de açucarado e abstrato nesta imagem. No conceito pai a súplica concentra todas aquelas expectativas, atitudes e qualidades de Deus que, conforme o v 15, deseja ver manifestas: intervenção pelos seus, dedicação passional, força na proteção, comiseração, afeto incontido. É muito real e concreto o que a comunidade imagina, ao chamar Javé de pai. É a dedicação e intervenção na situação concreta do momento. Isto fica expresso também na designação que segue: nosso libertador desde a eternidade. A rigor deveríamos dizer nosso resgatador. O go'el é o que compra, que resgata alguém, tirando-o assim de uma situação de dificuldade, carência, opressão.
Importante: A comunidade não pede que Javé seja o pai ou libertador. Ela o constata, pura e simplesmente. O ser pai ou libertador, de Javé, não é objeto de esperança ou súplica.É um fato. Um fato, a partir do qual a comunidade argumenta: Por ser pai e libertador, Deus não deve refrear sua dedicação. A comunidade ouviu falar e sabe. Por isso se atira nos braços de Deus, contra toda aparência, apesar de todo seu abandono.
Termina assim a parte da súplica. Segue-se, em 17-19a, uma lamentação pela situação vigente: Javé permitiu que seu povo se desviasse; povos estranhos adentraram e devastaram até o templo; a comunidade sente-se como se não tivesse relação alguma com Javé; sente-se órfã.
63.19b-64.3: Começa agora uma nova súplica pela intervenção de Javé. Tal intervenção é imaginada aqui nos moldes de uma teofania, ou seja, de uma manifestação de Deus ligada a fenômenos extraordinários e temíveis da natureza. No nosso caso: rasgar os céus, fazer estremecer os montes, fogo, fenômenos temíveis. E, como conseqüência, os povos estranhos devem apavorar-se. Este trecho não vem acrescentar nada de novo ao que já fora dito na súplica de 63.15s. Contudo, veste a esperança de uma intervenção do Javé na roupagem antiqüíssima de uma teofania (cf., por exemplo, o cântico de Débora, em Jz 5). É uma linguagem que, a esta altura, não se fala mais em Israel. São concepções que há muito não estão em voga. A súplica lança mão delas como que para mexer nas raízes de sua relação com Javé, assim como já fizera ao designá-lo “libertador desde a eternidade, desde os primórdios, desde as origens. Apelando para tais recursos, a LP pretende, pois, colocar sua súplica e esperança nos termos mais drásticos que a linguagem e a tradição oferecem. O brado deve ser o mais alto, o mais estridente possível, deve zunir nos ouvidos para não deixar de ser atendido. Que não esperamos, v 2, significa provavelmente: que já não ousamos mais esperar, ou que ultrapassam nossa imaginação. A primeira parte do v 3a pede fenômenos que superem qualquer coisa ouvida do passado. O trecho termina, na segunda parte do v 3, com uma expressão de louvor pelas intervenções de Deus nas teofanias do passado, nas quais Israel experimentou que a característica principal de Javé é agir em favor dos que por ele esperam. Termina, assim, esta súplica numa, manifestação de confiança, assim como a primeira súplica culminara com a constatação nosso pai, nosso libertador.
Quanto ao restante da LP, cf. acima a estrutura. É importante ter as demais partes sempre em mente, ainda que não as aproveitemos de modo direto na interpretação e atualização.
Escopo: O povo sabe que no passado Javé se revelou como um Deus que age em favor dos seus. No momento, porém, está em situação calamitosa e sente-se abandonado por Deus. Apesar disso, baseado no que sabe do passado, suplica a intervenção de Javé e assevera a confiança nesta intervenção.
II – Meditação
Arrolamos a seguir, a título de meditação, alguns pontos que podem conduzir o pregador na atualização do texto:
1. A situação dos suplicantes do nosso texto é de dupla calamidade:
a) num plano exterior, invasão de inimigos, destruição da cidade e do templo, ocupação e opressão de estrangeiros, conseqüentes dificuldades econômicas, habitacionais e outras, vergonha nacional, afinal, tudo o que se pode imaginar como resultado do que é descrito em 64.9:
b) num plano interior, sentimento de abandono por Javé, de orfandade espiritual, noção da própria culpa,do afastamento dos caminhos de Javé, a experiência
do Deus abscôndito, que esconde o seu rosto e nada mais quer com seu povo.
2. Na comunidade que nos ouve encontramos certamente uma situação idêntica, até os mínimos detalhes, como descrita acima em l b). O pastor que conhece sua gente saberá melhor do que ninguém quais os problemas, as angústias e manifestações dessa orfandade espiritual na sua comunidade.
3. E quanto a calamidade física, exterior, material? Ela dificilmente existirá em proporções sequer aproximadas no âmbito de comunidades da IECLB. Portanto, num sentido exterior e material, a comunidade não fará suas essas palavras do texto.
4. Contudo, ela não poderá deixar de perguntar por situações idênticas ao seu redor. Seria cega a comunidade que não quisesse ver a calamidade física e material ao seu redor, em termos de habitação, educação, subemprego, baixo poder aquisitivo etc. Para uma reflexão desse tipo sugerimos o documento intitulado Nossa Responsabilidade Social, elaborado pela Comissão de Responsabilidade Pública e enviado aos pastores pela IECLB. Caberia, então, a comunidade, não tanto suplicar por si, mas interceder pelos outros. E, se é verdade que não pode haver orarção sem ação, nosso texto teria implicâncias sérias para a comunidade.
5- Os suplicantes do nosso texto sabem de ações de Deus num passado remoto, em favor do seu povo. Baseados em tais notícias, que não são expressamente mencionadas mas claramente pressupostas e subentendidas, atrevem-se não só a suplicar a intervenção de Javé em sua situação calamitosa, mas até a manifestar sua confiança contra toda aparência na ação apaixonada de Javé, seu pai e libertador, em seu favor.
6. Em que basearíamos nós a súplica e confiança de uma intervenção de Deus? Evidentemente, naquele que é para nos a notícia última, terminante e definitiva sobre Deus: Jesus Cristo. Temos que perguntar e refletir com a comunidade: A notícia que temos sobre Deus, através de Jesus Cristo, contém algo de relevante para a nossa situação de calamidade interna, de orfandade espiritual? E pode dizer algo de relevante para a situação de calamidade exterior, material, física, que nos cerca? Essa notícia nos permite suplicar e confiar numa intervenção de Deus?
7- Se a reflexão sobre a atualização do texto nos leva necessariamente a Jesus Cristo, por que não ficamos logo num texto do NT? Que é que este nosso texto tem de bem próprio, de modo a tornar uma prédica sobre ele algo de singular? Os seguintes aspectos podem ser ressaltados como o proprium, que dá a este texto seu caráter peculiar:
A teimosia dos suplicantes, esse desesperado e confiante agarrar-se ao Deus de que se tem notícia, mas que está tão ausente, do qual no momento não ha sinal;
a paixão da súplica, o emprego de todos os recursos, num ingente esforço de persuasão;
a coragem de confiar contra toda evidência;
a indicação clara de que este Deus tem algo a ver com a miséria espiritual e material/física dos que nele esperam.
Se esses traços peculiares conseguirem chegar à comunidade através da prédica, teremos uma pregação única, irrepetível, que não poderia ser a mesma se baseada sobre outro texto.
8. A partir de Cristo teríamos base e autoridade para potenciar e radicalizar ao extremo cada um dos itens mencionados no parágrafo anterior. Pelo que sabemos de Deus através de Cristo, a teimosia pode ser tanto mais ferrenha, o Deus abscôndito é tanto mais superável, o esforço de persuasão pode ser ainda mais entusiasmado, a confiança pode ser mais firme, a solidariedade de Deus com a miséria global do homem chega ao ponto da identidade.
III – Sobre a prédica
Os pontos arrolados no capítulo II oferecem subsídios para a confecção da prédica. Resta-nos tratar apenas da estrutura. Antes disso, porém, é importante lembrar que a pregação se destina ao 1º. Domingo de Advento, época de espera e preparação para a celebração da vinda de Cristo. A prédica deve ser enfocada sob esse ângulo, o que, em vista do exposto, não deverá representar dificuldade. O texto todo fala de espera. Que melhor preparação para o Natal do que a súplica teimosa, apaixonada e confiante pela intervenção de Deus? Que melhor preparação do que sondar o alvo da sua intervenção, ocorrida em Cristo: nossa miséria espiritual e material/física?
Os pontos relacionados no capítulo anterior superam as possibilidades físicas (=tempo) de abordagem de uma prédica. Sobretudo será difícil tratar a contento, numa mesma ocasião, de aspectos tão diversos como item 2, de um lado, e 3 e 4, de outro. O pregador terá que selecionar, sem abandonar o escopo do texto. Sem desprezarmos a possibilidade de uma concentração na questão da miséria espiritual interior, expomos, para completar, um desenvolvimento possível para um enfoque a partir dos itens 3 e 4 :
1) Análise da calamidade material e física ao redor da comunidade. (Não começar com a leitura pura e simples do texto, pois a comunidade não tem condições de entendê-lo, sem a devida introdução.) Um bom auxílio para tanto pode fornecer o documento mencionado acima em II/4. Perscrutar as áreas, de conhecimento geral e em nível bem local e imediato, onde se verifica tal calamidade.
2) Traçar um paralelo com a situação de calamidade material e física, após a destruição de Jerusalém. Apontar a semelhança de problemas.
3) Mostrar como naquela vez a comunidade dos que restaram em Jerusalém se reuniu para suplicar pela intervenção de Deus. Depois desta introdução, ler o texto. Explicá-lo com base na exegese apresentada acima em I, e no exposto no ponto II/5 e 7.
4) Verificar se uma tal súplica também seria possível hoje, numa comunidade cristã, em vista da calamidade material e física ao nosso redor . Ver se depois de Cristo Deus também tem algo a ver com isso. Ver com a comunidade como em Cristo Deus se identifica com o que sofre em tal calamidade e a ele se dedica. Cf. item II/6.
5) Se Deus tem algo a ver com essa calamidade, então podemos – não como a comunidade de Jerusalém, que sofria, ela própria, a situação e que portanto suplicava por si; nossas comunidades geralmente não se constituem das vítimas da verdadeira calamidade – interceder e pedir a intervenção de Deus para transformar tal calamidade. Isto é celebrar Advento, preparar a vinda de Cristo aos homens.
6) Se é verdade que intercessão sem ação não passa de mero palavreado, temos que entender que estamos, nesta linha de pensamento, comprometidos a agir pelos que sofrem a calamidade ao nosso redor.
Podemos, assim, servir de instrumentos de Deus em favor dos que sofrem na calamidade material e física. É imprescindível que a comunidade entenda que tudo isso não tem nada de piedoso e sentimental. Não se trata de ter pena dos outros, sentir compaixão. Aqui se fala de coisas concretas, de dedicação que custa suor, tempo, dinheiro, horas de lazer e muito incômodo. Ser intermediário do amor de Deus pelos homens – pode haver maneira mais adequada de celebrar Advento, de demonstrar num gesto frágil e imperfeito um sinal do que pode ser sua vinda última e definitiva?
Proclamar Libertação 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia