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Tema – Posto de Saúde: vitrina da miséria

Explicação do tema:

Saúde não é simplesmente o contrário de doença. Ela abrange aspectos muito próximos de nosso dia-a-dia: a qualidade da água que tomamos e do ar que respiramos, a segurança no trabalho, o risco de insalubridade dos trabalhadores, a proteção contra epidemias, o direito de chegar à velhice, a alimentação suficiente e adequada.

Como compreender que em nosso país o povo seja levado por estes e outros fatores a ser doente, pois a saúde da população não dá lucro?

Analisando a situação a partir da dependência do 3º. mundo, que no âmbito da saúde afeta a área da pesquisa e da prática científica e a produção de medicamentos, vemos crescer sem freio a ideia do lucro sobre a doença. Enquanto isso, aumenta geometricamente o sofrimento do povo, de quem é tirada a perspectiva do que é vida.

Texto para a prédica: Marcos 3.1-6

Autor: Verner Hoefelmann

I — Situação da saúde no país

1. Enfoque do tema

Predomina em nossa sociedade um conceito mecanicista de doença e saúde: enquanto a primeira é definida como sendo o mau funcionamento de certos órgãos, tecidos e células, a restauração da segunda supõe uma intervenção química ou cirúrgica sobre o corpo, de modo que a máquina volte a exercer novamente suas funções normais. Essa definição serve a dois propósitos: a) Ela protege a sociedade da acusação de ser a grande responsável pelas doenças. Ora, se a doença é causada por um distúrbio orgânico, não é necessário indagar pelas suas causas sociais e econômicas, b) Ela serve para justificar a preocupação meramente curativa da medicina. Que mais pode o médico fazer, a não ser curar doentes?

Não há dúvida de que a doença também é uma realidade objetiva, inerente à natureza humana e independente de circunstâncias externas. Não importa como se vive, a morte é certa para todos. Por maior angústia teológica que isso nos cause, temos que aprender a conviver com essa realidade. Isso não significa, no entanto, que temos de nos conformar com todas as realidades. Uma observação atenta da sociedade em que vivemos nos confronta com um outro tipo de problema — e este está ao alcance de nossas mãos: uma minoria privilegiada pode fazer uso de todos os recursos disponíveis para alimentar sua saúde, curar sua doença (e até mesmo provocar doença nos outros), enquanto a maioria da população está entregue à própria sorte. Nossa proposta , pois, é partir de uma determinada perspectiva do tema, em que a saúde e a doença do povo passam a ser o resultado do conjunto de condições em que ele vive.

Se a seguir utilizamos dados estatísticos para destacar aspectos sobre a situação da saúde no país, é porque temos certeza de que o leitor tem sensibilidade para perceber o drama humano que se oculta por detrás deles. O mérito da estatística é mostrar que os dramas não são casos isolados.

2. Exploração do trabalho e saúde

Ninguém haverá de negar a relação entre salário e condições de vida. Além da já escandalosa concentração de renda, verifica-se nesse âmbito um progressivo empobrecimento da população. Em 1980 os 20% e 50% mais pobres detinham 2,92% e 13,3% da renda, enquanto os 10% e 1% mais ricos detinham 50,82% e 15,84% da renda, respectivamente. Entre 1970 e 1978 o poder aquisitivo do Salário Mínimo (SM) decresceu em 30%. Atualmente, uma família deveria receber um SM três vezes maior para atender as necessidades mínimas, oficialmente reconhecidas. Quando se sabe que mais de 50% da população recebe até 2 SM (sem contar os milhões de desempregados), há de se concluir, forçosamente, que essa gente vive em condições subumanas.

No meio rural, a renda está vinculada à posse e uso da terra. Enquanto milhões de famílias de agricultores não tem terra própria, 1,3% dos imóveis rurais ocupam 48,3% da área total das propriedades.

3. Alimentação e saúde

O resultado imediato desta política concentradora de renda e de terra é a desnutrição, a fome, a doença e a morte prematura para amplas camadas da população. Sabe-se que o melhor remédio contra a doença é uma alimentação adequada. Pois em virtude do arrocho salarial e da exploração, nosso povo sofre de graves deficiências alimentares, tanto em termos quantitativos como qualitativos. Enquanto uma pessoa adulta necessita 3.000 calorias diárias, a média (há os que morrem por comer demais) brasileira oscila entre 1.600 e 2.000. Em São Paulo, 1/3 das crianças entre 6 e 60 meses encontra-se desnutrida. O índice aumenta para 50% nas famílias de baixa renda. No país, estima-se que 12 milhões de crianças se encontrem nessa situação.

As consequências da desnutrição são conhecidas: ela debilita as pessoas, desarmando-as para suportar as doenças infecciosas. Em Recife e São Paulo ela é responsável pela morte de 66,6% e 58,8% das crianças menores de 5 anos. Ela é a grande responsável pelo alto índice de mortalidade infantil registrado no país: 82,7 por mil, com grandes diferenças regionais: 54,7 no sul, 60,1 no Centro-Oeste, 68,4 no Sudeste, 104,7 no Norte e 125,8 no Nordeste. Ela reduz a expectativa de vida: a média brasileira de 60,5 anos cai para 54,8 anos entre os que recebem até 1 SM, e sobe para 69,6 anos entre os que recebem mais de 5 SM.

A vinculação desses dados com o salário recebido é flagrante: a mortalidade infantil, por exemplo, tem diminuído quando se verifica um aumento real do SM, e aumentado por ocasião do arrocho salarial.

4. Saneamento básico e saúde

O círculo vicioso que se forma entre baixa renda, desnutrição e doença é agravado pelos precários serviços de saneamento básico. Em 1976 menos de 70% dos domicílios urbanos possuíam canalização interna de água, 39,4% estavam ligados à rede coletiva de esgotos sanitários e 14% possuíam fossas sépticas. Na zona rural, apenas 15% possuíam canalização interna e 5% possuíam instalações adequadas de esgoto sanitário. Apenas 26.5% da população que recebe menos de 3 SM mora em domicílios considerados adequados. Entre os que recebem até 10 SM essa percentagem sobe para 78,9%.

A importância do saneamento básico se mostra quando se sabe que 80% das moléstias estão associadas com a água, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Estudos do governo admitem que doenças como diarreia, disenteria, esquistossomose, febre tifóide, hepatite infecciosa (todas transmitidas pela água) e algumas endemias (doença de Chagas) se devem mais às precárias condições de saneamento básico do que à falta de serviços de saúde.

5. Doenças de massa: o problema maior

O perfil das doenças da população brasileira é coerente com o quadro constatado até aqui. Apesar do aumento das doenças cardíacas e dos tumores, as doenças de massa ainda constituem o problema de saúde maior. As doenças infecciosas e parasitárias, resultantes da desnutrição e da falta de higiene, concorrem com 40% do número total de mortes ocorridas no país. No interior, as endemias constituem a mais grave ameaça à saúde. 40 a 60 milhões de pessoas estão afetadas pela verminose. 4 a 5 milhões sofrem a doença de Chagas, com 20 mil novos casos por ano. 10 milhões são portadores da esquistossomose. 35 milhões de pessoas tem contato com o bacilo da tuberculose, com 120 mil novos contraentes da doença por ano. A malária é principal causa mortis na Amazônia, e se alastra rapidamente devido aos projetos agropecuários. As doenças cardiovasculares, associadas à estafa emocional, a hábitos alimentares inadequados e ao tabagismo, e o câncer, associado ao excesso de fumo, agentes químicos e poluição, aumentam dia a dia. As doenças mentais atingem cerca de 10 milhões de brasileiros. Também relacionado a toda esta situação e às péssimas condições de trabalho, as estatísticas registraram quase 1,5 milhão de acidentes de trabalho em 1979, com 4,5 mil mortes em 1977.

6. Estado e saúde

O Governo procura encaminhar a questão da saúde em duas frentes: o Ministério da Saúde é responsável pelas ações de saúde pública. Ele se preocupa, portanto, com a assistência preventiva, como o combate às epidemias, as campanhas de vacinação, o saneamento básico, bem como com os cuidados primários da saúde (Posto de Saúde). O Ministério da Previdência e Assistência Social é o responsável pela assistência médica individual, cabendo-lhe, portanto, as atribuições curativas. Ao Governo compete administrar responsavelmente a verba pública. Entretanto, contra todo bom senso e contra toda visão da realidade, ele privilegia escandalosamente a assistência curativa em detrimento da preventiva. Sem falar no pequeno investimento com a saúde (4% do PIB), o Ministério da Saúde recebeu recursos da ordem de Cr$ 11 bilhões, enquanto o INAMPS recebeu Cr$ 150 bilhões em 1980. Além disso, apenas 9% dos recursos pagos pelo INAMPS são gastos na rede médico-hospitalar própria do Instituto. O restante é pago à rede de convênios e contratos, num estímulo evidente à iniciativa privada. Da mesma forma , apenas 4% das internações foram feitas em hospitais próprios do INAMPS em 1978. No que tange às consultas médicas a situação é pouco melhor: 47% delas foram realizadas pela rede de ambulatórios próprios. O Funrural, por sua vez, não possui nem pessoal nem serviços próprios, permanecendo a assistência entregue à rede privada.

7. Os médicos e a saúde

Com uma relação estimada de 1 médico para 1.100 pessoas em 1983, já não preocupa tanto o déficit de médicos no país. A formação médica cresce a um ritmo de 8% ao ano, aproximando-nos rapidamente das exigências da OMS (1:1000). O que preocupa é a distribuição desproporcional. Em 1980 mais de 50% deles estavam concentrados nas capitais. Eles também preferem concentrar-se nas regiões de maior poderio econômico. A região sudeste, que perfaz 45% da população brasileira, reúne 60,74% dos médicos (1 : 993). A região nordeste, com 30% da população, reúne apenas 16,48% (1: 2.850). Na cidade do Rio de Janeiro há um médico para cada 333 pessoas, enquanto 1895 municípios brasileiros não possuem um sequer.

O ensino da medicina é baseado num enfoque individualizado do paciente, que não desperta os estudantes para a medicina social. A formação acontece segundo modelos estrangeiros, não adaptados à nossa realidade, que prepara o estudante para exercer uma medicina sofisticada, distante das condições e necessidades de nosso povo.

Alarmante é a deficiência de pessoal paramédico (enfermeiros, auxiliares, sanitaristas), tão importante ou até mais do que o próprio médico. Temos 1 enfermeiro para 6.850 pessoas, quando as exigências da OMS são de 2 por 1.000.

8. A indústria da doença

Para completar o quadro, temos que referir-nos ainda à indústria farmacêutica. Aqui o elemento mais grave é a desnacionalização. As multinacionais do setor entraram no mercado através da compra de laboratórios nacionais e controlam atualmente 88% do mercado. Os centros de pesquisa se encontram nos países de origem. Aqui no país se processa apenas a industrialização e a comercialização do produto. Há cerca de 25.000 títulos de medicamentos no mercado, quando bastariam 350 para atender a 99% da população. Na disputa inglória pela colocação do produto, a propaganda representa nada menos que 30% do preço dos medicamentos. A bonificação concedida pelos laboratórios às farmácias varia de 50 a 100%. A matéria prima e a mão-de-obra não chega a 30% do custo do produto. Os medicamentos circulam sem grande controle dos órgãos de fiscalização, muitos deles condenados em seu país de origem.

Em 1971 foi criada a Central de Medicamentos, com a finalidade de pesquisar e produzir remédios baratos. Ela chegou a elaborar uma lista de 400 medicamentos básicos, 130 dos quais já estavam sendo produzidos em laboratórios nacionais. Sob pressão das multinacionais, ela teve sua finalidade distorcida, e atualmente sua função limita-se a distribuir remédios que o Governo compra das multinacionais.

II — Análise do texto: Marcos 3.1 6

1. Contexto

Mc 3.1-6 pertencem a um bloco de controvérsias iniciado no capítulo 2. A linha que atravessa as diferentes perícopes é clara: elas estão marcadas pelo conflito radical entre Jesus e os seus adversários, notadamente os escribas e fariseus. Como se expressa esse conflito? De um lado, a prática de Jesus introduz uma novidade, que se contrapõe abertamente à ordem estabelecida. Essa novidade pode ser resumida nos dois ditos sobre o Filho do Homem: ele tem autoridade para perdoar pecados (2.10) e é senhor do sábado (2.28). Essa nova prática de Jesus, por outro lado, provoca a reação dos escribas e fariseus. Eles se apresentam como defensores ardorosos dos direitos de Deus, o que na prática equivale à defesa do sistema da lei e do templo, em torno do qual a sociedade está estruturada. Como Jesus se atreve a perdoar o paralítico, se só Deus tem poder para perdoar pecados, através da instituição do templo e do sacrifício (2.7)? Por que come ele com publicanos e pecadores, contaminando-se com transgressores públicos da lei (2.16)? Por que não jejuam seus discípulos duas vezes por semana, como expressão de piedade (2.18, cf. Lc 1812)? Por que transgridem a lei, fazendo o que não é lícito aos sábados (2.24)?

As perícopes procuram mostrar, portanto, como a prática de Jesus suscita conflito no velho sistema da lei e do templo (cf. 2. 21s). Numa sociedade dividida entre justos, que com sua prática reproduzem o sistema, e pecadores, que se encontram à margem dele, Jesus toma partido pelos últimos (2.15-17).

2. Texto

Mc 3.1-6 encerra o bloco de controvérsias e constitui, simultaneamente, seu ponto culminante. Diante de um impasse (3.4), as posições Se definem: Jesus encara os adversários com ira e tristeza por causa da dureza de seus corações (3.5), ao que eles reagem com a decisão de conspirar contra sua vida (3.6).

Qual a causa em questão? A cura do homem da mão ressequida (atrofiada, paralítica) não causaria nenhum transtorno se tivesse ocorrido em outro dia da semana (cf. Lc 13.14). O problema é que ela acontece em dia de sábado. O problema em questão, portanto, é o sábado. O que representa o sábado para o judaísmo contemporâneo de Jesus? Desde o exílio babilônico o sábado ganhou uma importância extraordinária, ao mesmo tempo em que sofreu uma profunda revisão de significado. O mandamento do sábado nasceu e foi cultivado em defesa da vida do trabalhador e como sustento de um regime igualitário (ÊX 20.9-11;23.12; 34.21; Dt 5.13-15). No exílio babilônico ele foi transformado no sinal fundamental da aliança entre Javé e o seu povo (Ez 20.12,20), adquirindo cada vez mais um sentido sacral. Na impossibilidade de celebrar o culto e as festas tradicionais no tempo de Jerusalém, a celebração do sábado tornou-se a carteira de identidade que caracterizava os exilados frente aos pagãos. Na comunidade pós-exílica, e também posteriormente, o mandamento do sábado passa a ser a parte mais importante da lei divina. Ele pesa tanto quanto todos os outros mandamentos da Tora juntos. Chega-se a afirmar que a própria salvação irromperia se o povo guardasse dois sábados conforme as prescrições.

O mandamento do sábado constitui, portanto, a peça central da lei. Por isso mesmo os escribas esmeram-se em juntar a ele cuidadosas interpretações, que descem aos detalhes do que é permitido ou proibido fazer nesse dia. São conhecidas nada menos que 170 prescrições relativas a ele. Entre as atividades proibidas no sábado está a assistência aos doentes. A não ser em casos flagrantes de perigo de vida, paciente e ajudante devem esperar até o fim do sábado para receber e prestar auxílio. Também em casos de transgressão do sábado as normas são claras: se a transgressão foi involuntária, ela pode ser reparada com a oferta de um sacrifício expiatório. Se for constatada transgressão consciente, não há perdão: ela deve ser punida com a morte por apedrejamento.

Com esse pano de fundo, algumas perspectivas do texto ganham importância.

a) A presença do homem da mão ressequida na sinagoga, em dia de sábado, é providencial para os adversários. Sua atenção, no entanto, não está concentrada sobre ele, pois não se trata de alguém em perigo de vida, mas sobre Jesus. Uma vez ele já tora advertido (2.24). Agora é hora de verificar seus propósitos. Por isso eles observam. Como o gato à espreita do rato, aguardam o momento oportuno para dar o bote. Jesus, por sua vez, não age com ingenuidade nem se deixa surpreender pelos acontecimentos. Ele transfere a atenção, voltada para si, para o doente: pede ao homem que se levante dentre a comunidade e permaneça de pé no meio da sinagoga. Agora todos podem ver que há uma necessidade humana em questão. Ao invés de tentar uma saída honrosa para ambas as partes, como por exemplo esperar até o fim do sábado, Jesus decide clarear o conflito. Ele não esconde nem harmoniza o problema, mas se propõe a realçá-lo.

b) A pergunta de Jesus (3.4) não vem formulada a gosto dos adversários. Ela não deixa espaço para uma interessante discussão casuística a respeito da lei, tão à moda dos escribas, para quem o próprio Deus estuda a lei aos sábados. Segundo Jesus não há muitas alternativas a escolher. Diante da necessidade humana só há uma escolha: ou fazer o bem e salvar a vida, ou fazer o mal e matar. Uma terceira alternativa cheira a tergiversação. Em outro contexto ele vai dizer que a interpretação casuística da lei é um subterfúgio para uma transgressão honrosa do mandamento divino (Mc 7.8-13). Ou seja, transgride-se o mandamento, e continua-se sendo um homem de bem, que ninguém pode atacar. Negando-se a prestar auxílio para o homem da mão atrofiada, aparentemente os adversários estão defendendo os interesses de Deus diante dos homens. Na realidade, porém, querem delimitar a responsabilidade humana diante de Deus e a prática da solidariedade para com as pessoas. Frente à colocação de Jesus os adversários se sentem desarmados, mas não querem admiti-lo publicamente. Por isso silenciam.

c) Jesus aponta para um problema mais amplo do que parece à primeira vista. Já vimos que o sábado é um símbolo da própria Tora. Ora, a lei não regulamenta apenas as atividades do sábado. No sistema teocrático de Israel, a lei regulamenta toda a vida e a organização da sociedade. Ela regulamenta o trabalho, as relações econômicas, sociais e de classe. Eticamente ela não é neutra. Alguns a experimentam como forma de opressão e exploração. Outros se servem dela para fortalecer as instituições e os interesses de classe. Na perícope anterior Jesus havia denunciado, justamente, que o sistema da lei conduz à alienação das pessoas. Ao viver em função do sábado, as pessoas passam para o segundo plano, e se tornam coisas subordinadas à instituição. A prática de Jesus, por sua vez, realça a primazia da pessoa por sobre a lei e as instituições. O sábado é que foi estabelecido por causa do homem. O critério de Jesus para definir o que é lícito ou não é a necessidade da pessoa humana, seja ela a fome (2.25) ou a saúde plena (3.5).

d) Não se pode esquecer, em meio a tudo isso, que Jesus dedicou atenção ao doente que dera ocasião à polémica. Outros casos de cura iniciam com o pedido de ajuda do próprio doente ou de pessoas a ele ligadas. Aqui é o próprio Jesus quem toma a iniciativa, porque a cura vai mostrar a contradição de um sistema que não está a serviço da vida. Chama a atenção que apesar de não tratar-se de um perigo de vida, Jesus fala de salvar a vida ou matar. Omitir-se de fazer o bem já é um mal. Deixar de salvar a vida já é matar. Salvar a vida, para Jesus, não significa apenas ajudar a prolongar a vida de alguém à beira da morte, mas também proporcionar-lhe condições para que tenha uma vida digna em meio à vida. Matar não significa apenas agredir mortalmente a alguém, mas também tirar-lhe ou negar-lhe condições plenas de vida em meio à vida. O Evangelho aos Hebreus (apócrifo) afirma que o enfermo era um pedreiro, que se dirigiu a Jesus com as seguintes palavras: Eu era um pedreiro que ganhava o sustento com minhas próprias mãos. Rogo-te, Jesus, que me devolvas a saúde, para que não tenha que mendigar meu alimento. A informação não deixa de ser interessante, porque ela aponta explicitamente para a relação entre saúde, trabalho e alimentação, ou então, entre doença, desemprego/subemprego e miséria/fome. Jesus interrompe esse círculo vicioso, não sem antes desvendar a rede opressora de leis de que esse homem é vítima. Com esse sistema da lei, a sociedade foi estruturada de forma a passar por cima das necessidades humanas, enquanto garante a sobrevivência das instituições e os que dela se beneficiam.

Não admira a reação final dos adversários (3.6), que serve para ressaltar mais uma vez a contradição em que eles incorrem: os que antes achavam reprovável salvar a vida do doente em dia de sábado, agora se acham no direito de conspirar a morte de quem está a serviço da vida. O texto explicita o que antes estava apenas implícito: a prática subversiva da ordem estabelecida é fazer o bem e salvar vidas. A participação dos herodianos (partidários de Herodes) vem apenas confirmar que não se trata de um caso estritamente religioso, mas de um problema de estado.

Ill — A situação e o texto

A prática pastoral nos coloca diante de situações dramáticas, que nos atingem profundamente porque não sabemos dar a elas um sentido. Diante de muitas sepulturas preferiríamos silenciar a ter que dizer alguma palavra. São situações que escapam ao esquema racional de causa e efeito, e só adquirem sentido quando admitimos enxergá-las a partir da lógica de Deus, que excede o nosso entendimento. Em tais momentos é um consolo saber que Deus pode construir a partir do nada, e colocar todas as coisas a serviço de seus propósitos. É bom poder contar com isso: há muito sofrimento, não causado diretamente pela ação humana, que só Deus sabe usar para um fim proveitoso (veja mais, a respeito, em PL IX, p. 236ss).

Há muito sofrimento, pois, que só pode ser trabalhado e aceito a partir da fé. Mas há também muito sofrimento que merece, antes de mais nada, nossa revolta e nosso protesto veemente. E o local mais adequado para articulá-lo não é, certamente a beira do túmulo, e sim, em meio à vida, em situações de aparente normalidade. Em um país do terceiro mundo, como o nosso, esse tipo de sofrimento é tão corriqueiro, tão comum, tão banal, que ele se vai integrando à nossa rotina, a ponto de o considerarmos pertencente à ordem. Com toda razão sofremos o impacto de uma criança que morre de leucemia, de um jovem que se acidenta com uma arma, de uma jovem mãe vitimada de câncer, de um excepcional confinado ao leito. Mas qual é a nossa reação quando encontramos uma criança raquítica à cata de esmola, uma família que vai dormir de barriga vazia, uma família que vive dos restos recolhidos junto ao lixo da cidade, uma pessoa que aguarda 6 horas para conseguir uma ficha de consulta médica, uma pessoa que sai do consultório com uma lista de remédios que não pode comprar, uma pessoa de 40 anos que parece ter 60, um desempregado, um operário de salário mínimo, um colono sem terra ou desanimado para plantar, uma criança sem escola ou que não consegue aprender? São situações tão rotineiras que já não vemos nelas nada de anormal. Merecemos, como os adversários de Jesus na perícope, o seu olhar indignado e cheio de tristeza porque nosso coração está como que endurecido para perceber um drama humano tão à vista.

O texto bíblico nos quer ajudar a olhar novamente para as pessoas humanas que nos rodeiam. Vem para o meio (3.3) equivale, do lado dos que frequentam o culto sinagogal, a olhem com atenção para este doente. Trata-se de uma criatura humana, criada à imagem de Deus, redimida pelo sacrifício de Seu Filho, e que apesar disso continua desfigurada. A primeira obra que a fé opera talvez seja a misericórdia, a compaixão, a sensibilidade para perceber o contraste entre o que existe e aquela realidade proclamada e criada por aquele que veio para que todos tenham vida em abundância. O próprio Jesus não combateu a doença e a miséria movido pela compaixão (Mt 9. 36; 14.14; 20.34; Mc1.41;5.19;8.2; Lc 7.13;10.33, etc)?

Mas mesmo que a compaixão, primeiro fruto da fé, seja a marcha de partida, ela sozinha não basta. Nosso mundo está cheio de pessoas bem intencionadas, e nem por isso ele tem experimentado transformações profundas. Todos nós estamos de acordo que as criaturas desfiguradas são produto do pecado, individual ou coletivo. A unanimidade se desfaz, no entanto, quando se postula dar nomes concretos a esse pecado. Aí muitos preferem permanecer no âmbito das divagações metafísicas. É teologicamente correto dizer que Jesus foi morto por causa do pecado humano. Mas não convém destilar a teologia de seu substrato sociológico, porque então incorremos no pecado do docetismo (1 Jo 4.2s). O pecado humano que assassinou a Jesus tem nomes concretos: ele se chama, por exemplo, sacerdotes, escribas, anciãos (Mc 11.18,27;12.12;14.1), sinédrio (14.55), representante do Império Romano (15.1) — todos com interesses específicos a defender — traição (14.10s), negação (14.66ss), demagogia (15.11). Nosso texto procura mostrar como desde o início a atividade de Jesus experimentou oposição organizada de forças e grupos a serviço da morte alheia. A gratuidade do amor de Deus, manifestada em sua pessoa, pareceu-lhes uma ameaça ao grande negócio que, talvez na melhor das intenções, chamavam de caminho da salvação. Só assim se compreende a reação violenta das autoridades, que aqui se esboça, e se vai consumar na crucificação de Jesus.

Com respeito a práxis de Jesus, tínhamos destacado dois aspectos importantes, que podem lançar luz sobre a situação:

a) A necessidade humana tem prioridade por sobre as instituições. Não há como destacar suficientemente esse aspecto. Nosso povo pobre, de tanto apanhar na vida, adquiriu um certo complexo de inferioridade, que às vezes se aproxima da apatia e do fatalismo. Os representantes da instituição (governantes, médicos, patrões, gerentes de banco, agentes do INAMPS, etc) se apresentam com tanta arrogância e auto-confiança que o povo se sente como um esmoleiro, que depende da graça de outros para viver. Para viver, dependemos unicamente da graça e do favor de Deus. De resto, nosso povo deve saber que não é obrigado a implorar o favor e a esmola de ninguém. Ele tem direito a dignidade, porque a pessoa humana foi criada à imagem de Deus e redimida por Jesus Cristo. Os trabalhadores têm direito de participar das decisões, de ganhar salário justo, de servir a mesa de acordo com a necessidade da família, de morar em condições adequadas, de receber assistência na hora da doença, de ter segurança no trabalho. As crianças têm direito ao leite, ao brinquedo, à alegria. Quem disser que não há recursos suficientes para todos está não apenas insultando o criador, como principalmente tentando esconder o pecado da acumulação e da concentração. Portanto, há que se proclamar abertamente que o povo pobre tem direito à vida — bem como o direito de saber que tem direito à vida.

b) Os pobres que têm coragem de exigir seu direito de viver têm encontrado a reação de uns poucos que se acham no direito especial de decidir quem tem direito. É aí que muitos amantes da ordem e da paz recuam, especialmente frequentadores de igreja. Afinal, as autoridades foram instituídas por Deus. Em todo caso, os que não temem o conflito nem se deixam intimidar por ele, estão em boa companhia. Para Jesus, não é suficiente devolver a saúde de um homem. Isso qualquer sistema pode absorver e até julgar bem vindo. Ele toma a cura como oportunidade de desmascarar um sistema que se alimenta da miséria e da doença de grande parte do povo. É bom lembrar que a cruz não se presta como amuleto para pendurar no pescoço. Ela é fruto de um sistema que se fecha diante da gratuidade do amor de Deus e da exigência do arrependimento e da conversão.

A gente começa a se tornar inquieto nesse ponto. Será que vale mesmo a pena participar com o povo a esse nível? Mais uma vez queremos tapar os olhos para o que já está aí escancaradamente à vista. Talvez seja isto um resquício de quem tem muita coisa a perder. Em todo caso, a prática de Jesus nos autoriza a trabalhar com a raiz dos problemas. Nosso povo tem direito de saber de que maneira sua pobreza, seu salário mínimo, sua fome, sua doença, não é resultado de sua incapacidade, de? sua preguiça, de sua ignorância, de sua condição de cidadãos de segunda categoria. Nossa miséria não é contingência de um país subdesenvolvido, atrasado, que ainda não alcançou o status de nação desenvolvida. A miséria de nosso povo é programada em salas luxuosas de reuniões. No esboço da situação da saúde no país pudemos reconhecer uma rede bem armada de interesses , que beneficiam o dono do capital em detrimento dos que trabalham. A igreja deve participar da tarefa de desmascarar esses mecanismos, ao mesmo tempo em que ajuda o povo a se organizar na defesa de seus direitos.

Para onde isso vai levar? Jesus não foi um entusiasta ou um otimista em relação à capacidade humana de se deixar transformar. Ele conhecia o poder do demônio, a tentação que a glória, a fama e o poder representam para as pessoas, também para aqueles que estão por baixo. Mas nem por isso ele desistiu de subir para Jerusalém, onde podia contar com reações violentas (Mc 10.32ss). Durante a caminhada ele lembrava os seus de que a glória não consiste em dominar e ser grande, mas em servir e assumir a cruz imposta (Mc 8.34ss; 9.33ss; 10.35ss). Em Jerusalém, experimentou rejeição, abandono, até da parte de Deus. Terminou em nada. Mas Deus, mais uma vez, soube construir a partir do nada (Mc 16.1ss).

Uma pregação sobre esse assunto não pode senão oferecer um aperitivo. Não sejamos exigentes demais em relação à pregação. O máximo que ela pode fazer é sensibilizar. O restante deve ser encaminhado fora do culto, quando o homem da mão e da cabeça curada voltar ao seu dia a dia.

IV — Subsídios litúrgicos

1. Introito: Jesus Cristo diz: Eu vim para que (vocês) tenham vida, e a tenham em abundância (Jo 10.10).

2. Confissão de pecados: Nosso Deus e Pai! Existe muito sofrimento em nosso meio para o qual não encontramos respostas, a não ser que tu a mostres para nós. Mas existe também muito sofrimento pelo qual nós mesmos somos responsáveis, seja por nossa ação ou por nossa omissão. Ao nosso redor morrem pessoas lentamente por causa do baixo salário, da má alimentação, e da falta de assistência, e isso não nos comove mais. Nosso coração endurecido pelo pecado, não é capaz de enxergar nessas pessoas a tua imagem, a imagem de teu filho, que está sendo desfigurado junto com elas. Somos cúmplices de um sistema que gera a morte para a grande maioria de nosso povo, e nos recusamos a combatê-lo, seja por conveniência própria ou por não confiarmos na força dos pobres que se unem. Revela-nos, ó Deus, a verdadeira dimensão de nosso pecado e de nossa culpa, para que te possamos pedir: tem piedade de nós, Senhor!

3. Anúncio da graça: Aos que reconhecem a nossa culpa e a necessidade de mudar nossa mentalidade, a boa nova de Jesus Cristo diz: . . . Onde estão os teus acusadores? Ninguém te condenou? . .. Nem eu tampouco te condeno; vai, e não peques mais (Jo 8.10s).

4. Oração de coleta: Nosso Deus e Pai. Mostra-nos que aqui dentro da igreja não estamos isolados do mundo. Tua palavra não quer ser proclamada no vazio. Ela deseja sempre de novo se encarnar nos conflitos e nas contradições de nossa sociedade. É aí, em meio ao mundo, que tua palavra quer demonstrar o teu poder. Ajuda-nos a ouvir a tua palavra, ó Deus, para que ela não volte vazia de ti. Amém.

5. Leitura bíblica: Is 65.17-25; At 3.1-10.

6. Assuntos para a oração final: Agradecer a Deus pela dádiva da vida, que nos têm sido dada e, através de nós, a outros; agradecer que Deus não apenas cria vida, como também provê a criação de recursos maravilhosos, de modo que todos poderiam ter vida em abundância; agradecer que Deus continua agindo neste mundo através da criatividade humana, sempre que ela estiver a serviço do bem comum; pedir que Deus nos ajude a criar laços de solidariedade entre nós, especialmente entre aqueles que sofrem a exploração de seu trabalho, entre os que sobrevivem para trabalhar, entre os que tem fome e sede de justiça, entre os desamparados pela Previdência do Estado, entre os que são mandados de um lugar a outro porque ninguém lhes dá valor; pedir que Deus nos dê sabedoria e coragem para conhecer e combater este sistema que privilegia o dono do capital em detrimento das necessidades humanas.

V — Bibliografia

– CNBB Saúde para todos. São Paulo, 1980.
– GORGULHO, G. e ANDERSON, A. F. Evangelho de Marcos (polígrafo). São Paulo s.d.
– GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Markus. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. 8. ed. Berlin, 1980.
– lBASE. Saúde e trabalho no Brasil, Petrópolis, 1982.
– LOHSE, E. SABBATON. In: Theologisches Wörtenbuch zum Neuen Testament. v. 7. Stuttgart, 1964.
– LANDMANN, Jayme. Medicina não é saúde. Rio de Janeiro, 1983.
– MACHADO, U. 20 anos da indústria da doença. Porto Alegre, 1982.
– SCHNEIDER, J. O. e outros. Realidade Brasileira. Porto Alegre, 1981.
Para os que desejam aprofundar a situação da saúde no país, recomendamos o livro do lBASE, editado pela Vozes.