Proclamar Libertação – Volume 32
Prédica: 1 Reis 3.5-12
Leituras: Mateus 13.31-33, 44-52; Romanos 8.26-39
Autor: Márcia Blasi
Data Litúrgica: 11º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 27/07/2008
Há uma pérola em cada tempo. Encontre-a.
Então dê tudo que você possui para consegui-la.
Joan Sauro
Estamos vivendo o longo período que chamamos de Tempo Comum ou Domingos após Pentecostes. Não é tempo de preparação para uma grande festa, como Natal e Páscoa. É um tempo que nos convida para celebrar cada semana; para viver com sabedoria cada dia, aprendendo a reconhecer e encontrar Deus nas coisas mais comuns e diárias. Annie Dillard diz: “A maneira que passamos os nossos dias, na verdade, é a maneira que vivemos a nossa vida”. Cada dia, Deus coloca pérolas em nossa vida. É preciso sabedoria para reconhecê-las.
No texto previsto para a pregação deste domingo, Salomão pede a Deus sabedoria para distinguir entre o bem e o mal e para governar o povo com justiça. Também as parábolas de Jesus nos lembram que é preciso sabedoria para perceber o reino de Deus crescendo entre nós e para ter coragem de abrir mão de tudo aquilo que o mundo nos oferece para obtê-lo. Na Carta aos Romanos, ouvimos que é preciso sabedoria para nos entregar com humildade nas mãos do Espírito Santo, confiando que ele interceda por nós e nos ensine a orar.
Viver e experimentar a sabedoria é uma experiência enriquecedora e transformadora. Em primeiro lugar, é preciso deixar-se tocar por ela, maravilhar-se com ela, para depois seguir seus caminhos.
A narrativa de 1 Reis 3.5-12 é classificada como uma estória de legitimação ou lenda1, que legitima a realeza de Salomão, ao mesmo tempo em que liga estreitamente Davi e Salomão, continuando assim o plano divino. O texto revela claramente qual a tarefa do rei: servir ao povo que pertence a Deus. Vejamos alguns destaques nos versículos:
V. 5 – Salomão vai a Gibeão para oferecer sacrifícios. Gibeão era um “lugar alto”, provavelmente um importante espaço de adoração antes da construção do Templo. No v. 4, descobrimos que Salomão já havia queimado ali mil animais em sacrifício. Em Gibeão, Deus aparece a Salomão e fala com ele num sonho, perguntando o que ele gostaria de receber de Deus. O sonho era uma das maneiras reconhecidas da revelação de Deus (cf., por exemplo, Gn 20.3; 28.12). Sonhos também poderiam ser usados para enganar o povo (cf. Jr 23.23-32).
V. 6 – Salomão relembra a grandeza de Davi e a maneira pela qual foi escolhido para sucedê-lo. Salomão deseja continuar a aliança de Deus com Davi.
V. 7-8 – Salomão reconhece que ainda é muito jovem e que não sabe governar, mostrando assim sua insegurança diante daquilo que se espera dele. Salomão não sabe como ser rei, nem como caminhar com Deus (como seu pai fizera).
V. 9 – Salomão pede sabedoria para poder governar e para saber a diferença entre o bem e o mal. Em outras traduções bíblicas, Salomão pede por uma mente compreensiva e um coração aberto. Isso revela que Salomão deseja paciência e ouvidos atentos para poder entender verdadeiramente o que está acontecendo. “Saber a diferença entre o bem e o mal” simplesmente quer dizer saber tudo.
V. 10-12 – Deus alegra-se com o pedido de Salomão e concede-lhe sabedoria e inteligência.
O texto relata uma conversa íntima entre Salomão e Deus, que acontece num sonho. Salomão consegue dizer no sonho aquilo que talvez nunca conseguiria dizer acordado e na frente de outras pessoas: ele não sabe governar; ele é inexperiente; ele precisa urgentemente de ajuda. Mesmo sendo jovem, Salomão parece entender que, se ele tiver sabedoria, tudo o mais vai acontecer.
Salomão parece ter encontrado uma pérola enterrada. Ele arrisca tudo para consegui-la. A sabedoria que Salomão pede é como fermento: misturado à farinha da luta diária faz crescer uma nova massa, uma massa que vai virar pão e sustentar Salomão em meio às dificuldades.
É preciso cuidado para não associar a sabedoria concedida por Deus a Salomão com as riquezas que ele conquistou. Tampouco se pode usar essa dádiva de Deus para legitimizar os abusos cometidos por Salomão. Se tivéssemos somente os capítulos 3-10 de 1 Reis, teríamos a imagem de um rei perfeito: sábio, preocupado com a situação do seu povo e responsável pela construção do Templo. Mas, no capítulo 11, o outro lado do reinado de Salomão aparece. Ele é descrito como déspota, um tirano que faz qualquer coisa para conseguir riquezas e luxúrias. Lawrence Boadt escreve: “Segundo a lógica humana, Salomão foi o mais bem-sucedido rei que Israel teve, mas pelos conceitos do Antigo Testamento ele, se não foi o pior, pelo menos está entre os piores” (Reading the Old Testament: An Introduction, p. 240).
Nos dias atuais, sabedoria e esperteza são colocadas como sinônimos. É uma pessoa “sábia” aquela que enriquece rapidamente e com o menor esforço possível. Mas não é disso que o texto bíblico fala. A sabedoria verdadeira está intimamente ligada ao ouvir e à prática da justiça. Não existe sabedoria sem justiça, e não existe justiça sem a coragem de pessoas sábias em reconhecer, denunciar e anunciar a diferença entre o bem e o mal.
Levei esse texto para ser estudado num grupo de OASE (Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas). A primeira reação das mulheres foi: “Pena que nossos governantes não façam isso hoje em dia. Como as coisas poderiam ser diferentes se cada pessoa que assume um cargo de liderança o fizesse com a intenção de governar com justiça para todo o povo”.
O texto de 1 Reis 3.5-12 torna-se bastante atual na realidade em que vivemos. Desejamos ardentemente que nossos representantes governem com sabedoria e justiça; desejamos ardentemente saber distinguir entre o bem e o mal. Mas essa distinção não é tão simples. O que numa hora parece ser o bem, em outra é o mal. O que hoje parece mal, amanhã pode ser bom. De maneira nenhuma esse tipo de argumento deve ser utilizado para legitimar a tirania, o abuso e a violência. Mas nos ajuda a olhar o mundo e cada ocasião de mais um ângulo, levando em consideração a nossa experiência e a das pessoas ao nosso redor.
Sugiro colocar o foco da prédica no tema da sabedoria. A sabedoria que, em termos bíblicos, é presente de Deus e não conquista humana.
As parábolas de Jesus são bons exemplos de sabedoria. Recontá-las pode ser uma boa introdução à prédica. É preciso sabedoria para reconhecer o reino de Deus crescendo no meio de nós. A sabedoria chama-nos para nos aproximar de Deus. Ela nos ensina a encontrar Deus e receber Deus no meio de nossa vida diária.
Há muitas piadas que nos são contadas sobre pessoas que encontram uma lâmpada mágica com um gênio preso. Quando libertado, o gênio concede a quem o libertou três pedidos. Esses pedidos geralmente são: muito dinheiro, carros luxuosos, mulheres ou homens “maravilhosos”. Nunca ouvi uma dessas piadas que revelasse uma resposta inteligente ou que não fosse individualista e egoísta. Será que é assim que todas e todos nós reagimos quando temos a oportunidade de pedir algo? Fico pensando se não agimos de forma parecida em nossas orações.
Quando foi que pedimos sabedoria para guiar nossas vidas? Quando foi que pedimos sabedoria para escolher um bom companheiro ou companheira ou então para saber o momento certo de deixá-lo? Quando foi que pedimos sabedoria para decifrar o que passa por nosso coração, confiando que Deus nos deu inteligência e coração que sentem e sabem o que precisa? Quando foi que confiamos na sabedoria que Deus nos deu?
É preciso tomar cuidado para não associar sabedoria somente a pessoas idosas ou bastante experientes. Se reconhecermos que a sabedoria é dada por Deus, então também precisamos valorizar a sabedoria das crianças e pessoas mais jovens.
Também não podemos enfatizar demasiadamente a figura de Salomão. Salomão pede sabedoria a Deus e a recebe, mas o que ele faz com ela não é exatamente a vontade de Deus. Salomão não é um super-homem, nem tampouco o mais sábio de todos os homens. Salomão foi um grande líder de sua época, abençoado com sabedoria, mas que também se valeu dessa sabedoria para enriquecer e oprimir outras pessoas.
Mas o que é essa tal de sabedoria? No AT, especialmente nos livros de Provérbios e Sabedoria (apócrifo), ela aparece como uma mulher numa relação dinâmica com Deus (hokmah em hebraico). Ela estava com Deus no momento da criação, é ativa na história, clama por justiça, nos chama para celebrar e para caminhar nos seus caminhos. Ela já estava com Deus na criação e continua a chamar o povo para chegar perto de Deus.
Nesse tempo litúrgico, a sabedoria ajuda-nos a perceber que Deus está aqui. E aqui. E aqui. No trabalho e no descanso. No criar, no escrever, no pensar e no orar. Nas coisas mais comuns e simples do dia-a-dia: no caminhar, no comer, no amar. Deus está preparando um lugar e acompanha-nos ao longo do caminho.
Sabedoria não é um atributo próprio, nem é um mero acúmulo de conhecimento. Sabedoria é dada por Deus a quem pede e ora por ela. Sabedoria é o que nos faz reconhecer a presença e ação de Deus na vida diária. A sabedoria não escolhe a pessoa por idade, gênero, raça, classe social, preferência sexual. A sabedoria vem a quem pede por ela e entrega-se a seus cuidados. Sabedoria é reconhecer na outra pessoa um irmão ou uma irmã. É ter ouvidos atentos para o nosso sofrimento e o sofrimento de outras pessoas. “A simplicidade”, dizia Gibran, “é o último degrau da sabedoria”.
Oração do dia
Deus dos pais e das mães, Senhor de misericórdia, que tudo criaste com tua palavra e com tua sabedoria formaste o ser humano para dominar as criaturas que fizeste, governar o mundo com justiça e santidade e exercer o julgamento com retidão de vida, dá-nos a sabedoria contigo entronizada e não nos excluas do número de teus filhos e tuas filhas. Por Jesus Cristo, amém. (Adaptado de Sabedoria 9.1-4, Bíblia de Jerusalém)
Oração de intercessão
Pelo amor de Deus, oremos pela igreja, pelo mundo e por todas as pessoas de acordo com suas necessidades.
(Após cada petição, a comunidade responde cantando: Inclina, Senhor, teu ouvido, escuta o nosso clamor.)
L – Espírito de paz e sabedoria, enche toda a terra com tua presença renovadora.
Que as lideranças de todas as nações possam governar com maturidade e justiça.
Que todas as nações possam desfrutar de tranqüilidade e que seus filhos e filhas sejam benditos.
Que os povos e seus rebanhos e manadas estejam livres de moléstias.
Que os campos possam produzir fruto abundante e que a terra seja fértil.
Que a face de todos os inimigos possa se voltar em direção à paz.
C – Inclina, Senhor, teu ouvido, escuta o nosso clamor.
L – Espírito da unidade, oramos por tua igreja.
Enche teu povo com toda a verdade e paz.
Onde há corrupção, torne-nos puros. Onde há erro, corrige-nos.
Onde há faltas, transforme-nos. Onde há injustiça, fortalece-nos.
Onde há necessidade, sustenta-nos. Onde há divisão, aproxima-nos um do outro.
C – Inclina, Senhor, teu ouvido, escuta o nosso clamor.
L – Espírito de amor, zela pelas pessoas que passam a noite acordadas em vigília ou em pranto e guarda aquelas que dormem.
Atende as pessoas doentes, principalmente […]
Provê repouso às pessoas cansadas, conforto às sofredoras e abençoa as que estão à beira da morte.
C – Inclina, Senhor, teu ouvido, escuta o nosso clamor.
L – Deus da criação, do plantio, da produção e da colheita. Assim como a semente se dispersa nos campos e terrenos férteis, semeia em meio a este mundo a tua palavra.
Pela presença de teu Filho, nossa luz e vida, sustenta as sementes da fé para que elas cresçam fortes e sadias.
Pelo poder de teu Espírito, ajuda-nos a ceifar uma colheita de fé sincera, unidade, justiça, paz e amor. Amém.
(Adaptado do Livro de Culto de Orações, 9ª Assembéia do Conselho Mundial de Igrejas, Porto Alegre, 2006, p. 52-53)
Nota:
1 DE VRIES, Simon J. World Biblical Comentary, v. 12, p. 48.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).