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A nova criação em Cristo

 

Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: 2 Coríntios 5.6-10, 14-17
Leituras: Ezequiel 17.22-14 e Marcos 4.26-34
Autor: Valdemar Gaede
Data Litúrgica: 3º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 14/06/2015

 

1. Introdução

A leitura dos textos bíblicos propostos para o terceiro domingo após Pentecostes logo desperta a nossa atenção para um detalhe que é comum aos três textos. Os três falam da vida que renasce ou, por que não dizer, do novo nascimento, do nascer de novo. Lembro-me aqui do diálogo entre Jesus e Nicodemos, que teve como ponto de partida a afirmação: “Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus” (Jo 3.3).

O profeta Ezequiel anuncia o corte do renovo mais tenro da ponta de um cedro. Esse será plantado num monte alto e sublime e, depois, se fará um cedro excelente. O ramo é cortado e plantado na terra para que depois possa renascer, produzir ramos e dar frutos.

O texto do evangelho fala da semente pequena que é lançada na terra para que depois possa tornar-se árvore frondosa. A semente “morre” para depois dar origem a uma nova planta.

O mesmo tema é retomado por Paulo no texto proposto para a prédica: todos morreram com Cristo para que os que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou. Se alguém está em Cristo, é nova criatura. A planta antiga morreu para que uma nova pudesse surgir. As coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas.

O tema comum nos três textos propostos (novo nascimento, nascer de novo, renascer) está muito próximo ao período litúrgico de Pentecostes. Naquele dia de Pentecostes, conforme nos é narrado em At 2.37-41, muitos foram batizados. O Espírito derramado gerou nova vida no Batismo. Vida que morre e que renasce com Cristo. Semente que é enterrada e ressurge. Galho que é cortado para poder tornar-se nova árvore. No Batismo nos é dado o Espírito que faz renascer. No Batismo, morremos e ressuscitamos com Cristo. Quem está em Cristo é nova criatura.

 

2. Exegese

Já não é mais novidade que a epístola que conhecemos como a Segunda Carta de Paulo aos Coríntios é, na verdade, uma composição de várias cartas. A teoria mais aceita é que em 2 Coríntios trata-se de três cartas distintas. Após ter escrito o que hoje consideramos a Primeira Carta aos Coríntios, Paulo recebeu a notícia de que em Corinto estavam atuando falsos apóstolos, aliados a entusiastas também presentes naquela comunidade. Os opositores de Paulo se haviam apresentado à comunidade, portando supostas cartas de recomendação. A mensagem que anunciavam era diferente (euangelion heteron) do que o evangelho anunciado por Paulo. Os falsos apóstolos negavam autoridade ao apostolado de Paulo. Diante dessa situação, Paulo escreveu uma apologia de seu apostolado, na qual argumenta teologicamente, de maneira calma e objetiva. Essa é a primeira carta contida naquela que atualmente conhecemos como sendo a Segunda Carta aos Coríntios, abrangendo 2Co 2.14-7.4.

Mas, pelo que tudo indica, os adversários de Paulo, mesmo assim, ganharam terreno entre os coríntios. A “teologia” entusiasta dos intrusos parece mesmo ter agradado aos coríntios. Depois disso, Paulo fez uma visita à comunidade, quando deve ter acontecido um sério contratempo (2Co 2.5,7). De volta a Éfeso, o apóstolo escreve a carta intermediária que também é conhecida como “a carta das lágrimas” (2Co 10-13). Dá a impressão de que, a partir daí, as coisas mudaram. Paulo recebeu notícias surpreendentemente agradáveis (2Co7.5ss), o que o motiva a escrever uma carta de reconciliação (2Co 1.1-2.13 e 7.5-16). Dessa forma, precisamos ler o texto previsto para a prédica, levando em conta esse contexto histórico: depois de ser atacado e de ser questionado em seu apostolado e em sua teologia por falsos pregadores de Corinto unidos a entusiastas, Paulo reage e argumenta teologicamente a legitimidade de sua pregação e de seu apostolado. Começo a abordar o texto em pauta, partindo da afirmação que encontramos em seu final: em Cristo somos novas criaturas. As coisas antigas já passaram, eis que se fizeram novas (v. 17). O tenro ramo da ponta do cedro já foi cortado e plantado na terra e já se transformou num cedro excelente. A semente já foi lançada na terra e já renasceu a planta. No Batismo, morremos e ressuscitamos com Cristo. Já não vivemos para nós mesmos, mas para aquele que por nós morreu e ressuscitou. O nascer de novo, o novo nascimento proposto por Jesus a Nicodemos, já é realidade em nossa vida. Fomos libertos do jugo da lei – que é morte – e fomos ressuscitados para uma nova vida em Cristo, em que a única medida é a graça divina. Mas qual é a dinâmica da nova vida em Cristo? Como vive a nova criatura? Como encaramos a vida, a realidade e o mundo em que vivemos? Como encaramos o porvir? Vivemos em função do agora ou do depois? As entrelinhas de nosso texto parecem nos dizer que os coríntios viviam apenas em função do depois, esquecendo ou menosprezando o aqui e o agora. Com essas perguntas em mente, vamos agora seguir o texto, versículo por versículo:

V. 6 – Temos, portanto, sempre bom ânimo, sabendo que, enquanto no corpo, estamos ausentes do Senhor. Com essas palavras o apóstolo exorta-nos a “caminhar com os pés firmes neste chão” (Canção “Resistência”, de Rodolfo Gaede Neto). Quando é necessário ter bom ânimo? Quando as coisas não estão bem. Reconhecer e assumir que as coisas não estão bem é a primeira atitude da nova criatura em Cristo. O cristão batizado (nascido de novo) tem olhos críticos e tem consciência clara da condição humana com todas as suas contradições. Não se conforma com este século. Enquanto vivemos aqui, estamos ausentes do Senhor. O reino de Deus é diferente do que, no geral, é este mundo. A nossa realidade nega os valores do reino. Por isso é preciso ter bom ânimo no ser nova criatura. A nova criatura precisa achar e abrir espaços para o novo. A semente que já germinou precisa romper crostas duras neste chão e abrir espaços entre pedras e espinhos, sendo sinal da nova vida em Cristo.

V. 7 – visto que andamos por fé e não pelo que vemos. Sim, se fosse para a nova planta buscar ânimo para crescer olhando a realidade em volta de si, então ela gostaria mesmo é voltar para debaixo do chão. Em outras palavras: a nova planta viveria apenas em função do depois. Mas andamos por fé. A nova criatura permanece nova não pelo que vê, mas pelo que crê. A realidade pode até nos assustar, mas não tem o poder de acabar com os nossos sonhos e com a nossa esperança, pois andamos por fé, assim como o pai Abraão e a mãe Sara fizeram.

V. 8 – Entretanto, estamos em plena confiança, preferindo deixar o corpo e habitar com o Senhor. A casa do Senhor é diferente do que a que temos aqui. Não temos aqui morada permanente, mas buscamos a que há de vir (Hb 13.14). É mais uma vez um olhar crítico para a realidade. Não nos conformamos com o estado das coisas. No reino de Deus, é melhor do que aqui. Porém isso não nos faz querer morar nas nuvens, mas viver com confiança aqui. Quem confia, confia em algo melhor e, por isso, questiona o que se passa aqui e acredita que também aqui pode ser diferente. Isso é estar em plena confiança. É assim também que devemos interpretar a letra do hino que tanto gostamos de ouvir ou de cantar: “Mais perto quero estar, Deus meu, de ti”. Não no sentido de fugir deste mundo, mas de viver em proximidade com Deus aqui, aguardando ativamente a proximidade plena com Deus em seu reino.

V. 9 – É por isso que também nos esforçamos, quer presentes, quer ausentes, para lhe sermos agradáveis. Este é o desafio: ser agradáveis a Deus aqui e não apenas depois lá no céu. Somos árvore bonita, com nova vestimenta aqui, em meio às pedras, espinhos e árvores velhas. Aqui tem espaço para o reino de Deus. Passa dia e passa noite, e a semente germina e cresce, não sabendo o agricultor como isso acontece, conforme nos ensina o evangelho do dia (Mc 4.27).

V. 10 – Porque importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo. Novamente Paulo aponta para o aqui e o agora, para o concreto, para o corpo. É aqui que fazemos nossas escolhas, enquanto estamos neste corpo, nesta morada, com esta vestimenta. Ao termos consciência da corruptibilidade deste corpo e deste mundo, não podemos apelar para conceitos como “a salvação da alma”. Pois aí estaríamos isentando o ser humano de qualquer responsabilidade em relação à transformação deste mundo e desta vida. Enquanto habitamos neste corpo, temos responsabilidades diante do tribunal de Cristo, que é a sua palavra, o seu evangelho e que, mesmo incluindo perdão e reconciliação, é como uma faca de dois gumes, que separa o que é justo do que é injusto, que distingue o certo do errado, que coloca uma divisa clara entre o novo e o velho.

V. 14 – Pois o amor de Cristo nos constrange, julgando nós isto: um morreu por todos; logo todos morreram. O apóstolo Paulo chama à responsabilidade, não baseado no julgamento ou juízo de Deus, mas no amor de Cristo. É o amor de Cristo que nos perpassa e nos movimenta a viver, com responsabilidade, neste mundo marcado por contradições. Em Cristo já passamos pelo “ser cortado”, pelo “ser lançado à terra”, isto é, já rompemos a crosta dura do terreno das pedras e dos espinhos.

V. 15 – E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou. Não vivemos mais segundo a carne (baseados na lei e nos méritos por causa de boas obras), mas na fé em Cristo. Segundo Lutero: “(…) a carne não é capaz de nada mais do que procurar em todas as pessoas seus próprios interesses; odeia, inveja e pratica toda sorte de mal ao inimigo e procura gozo, favor, prazer e amizade com qualquer um para seu proveito etc. É dessa maneira que o mundo se conhece. Nós cristãos, porém, não conhecemos ninguém dessa forma, pois somos nova criatura em Cristo [2Co 5.17] e conhecemos uns aos outros segundo o espírito, isto é, cada qual não procura seus próprios interesses, mas o que serve para o bem do outro, como também o ensina Rm 14.19 e Fp 2.4. (Obras Selecionadas de Lutero, v. 4, p. 253).

V. 16 – Assim que, nós, daqui por diante, a ninguém conhecemos segundo a carne; e, se antes conhecemos Cristo segundo a carne, já agora não o conhecemos deste modo. Lutero comenta: “Todos quantos olharem e conhecerem a Cristo segundo a carne necessariamente ficam escandalizados com ele, como aconteceu aos judeus. Pois visto que carne e sangue não pensam além do que enxergam e sentem e, ao ver que Cristo é crucificado como pessoa mortal, têm que constatar: tudo está acabado, aqui não há vida nem bem-aventurança; este acabou; não pode ajudar a ninguém; ele próprio está perdido. Quem não quer escandalizar-se com ele tem que passar por cima da carne e ser fortalecido pela Palavra, para que no Espírito reconheça como Cristo se tornou bem vivo e maravilhoso exatamente através de seu sofrimento e de sua morte. Quem faz e pode fazer isso de verdade passa a ser nova criatura em Cristo, dotado de percepção nova e espiritual” (Obras Selecionadas de Lutero, v. 4, p. 253). Enquanto estamos amarrados à ideia da salvação por méritos (lei), pensamos e agimos e falamos segundo a carne. Quando acolhemos a boa-nova da salvação por graça e fé, passamos a ser nova criatura, dotada de percepção nova e espiritual.

V. 17 – E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas. Estar em Cristo, como já vimos, significa morrer e ressuscitar com ele no Batismo, estando excluído qualquer mérito da nossa parte, vivendo em novidade de vida como broto novo, planta nova, em meio a pedras e espinhos ou árvores antigas, que são amordaçadas pela dura casca da doutrina da salvação por meio de obras e de méritos.

 

3. Meditação

Nos tempos atuais, a comunidade cristã vive no constante perigo de deixar–se entusiasmar por falsos pregadores, que anunciam um euangelion heteron (outro evangelho): batismo como obra e por mérito, salvação apenas da alma, esperança restrita ao porvir, falta de compromisso com a transformação da realidade injusta e cruel, na qual estamos inseridos, supervalorização de experiências de êxtase, “teologia” da prosperidade, comercialização da salvação. Esse entusiasmo fecha os ouvidos e o coração das pessoas para a graça de Deus e para a responsabilidade em relação à transformação deste mundo. Na visão de Paulo, plantas novas que renasceram pela graça de Deus não vivem em função apenas do depois, mas são sinais visíveis do reino de Deus presente aqui e agora em meio às contradições deste mundo e desta vida. Como pessoas batizadas, não nos conformamos e nem nos adaptamos ao que é “planta velha” neste mundo. Temos saudade daquilo que há de vir. Mas se trata de uma saudade ativa, com os pés firmes neste chão, exercitada em plena confiança nas promessas divinas.

O amor de Deus constrange-nos, impele-nos, desafia-nos a amar. Esforçamo-nos para ser agradáveis a Deus. O antigo já passou. Não mais medimos as outras pessoas com a medida da lei, segundo a “carne”, mas vivemos, todos, sob a graça divina. Somos novas criaturas em Cristo, dotadas de percepção nova. Aqui vivemos e atuamos com fé e confiança, focados naquilo que será melhor no futuro, mas que já pode e deve ser melhor agora. Para quem observa a natureza, criada por Deus, percebe como é importante morrer para, depois, renascer. É a garantia da continuidade e da renovação da vida. Se o ser humano ficasse eternamente amarrado à sua condição de ter que se salvar sozinho pelas obras da lei e, consequentemente, por seus próprios méritos, a vida humana estaria predestinada a um eterno fracasso, a uma eterna morte. Cristo morreu e ressuscitou. Unidos a Cristo pelo Batismo, morremos e ressuscitamos com ele para uma novidade de vida. As coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas. Confiados à graça divina, somos novas criaturas.

 

4. Imagens para a prédica

No desenvolvimento da prédica poderão ser usados símbolos como a semente, a terra, o broto tenro e novo num galho cortado ou num tronco velho e seco ou uma simples muda de alguma planta. Com essas imagens lembram-se os três textos bíblicos lidos no culto e introduz-se o tema da pregação: nascer de novo, novo nascimento, renascer em Cristo através do Batismo. Também se pode entregar uma semente para cada participante do culto, que, após ou durante a prédica, será plantada em algum recipiente contendo terra. Outra possibilidade é a distribuição de mudas de plantas no final do culto. Em algum momento da parte da Palavra poderão ser cantadas as canções “Semente de libertação”, de Edson Ponick (HPD II 316), e “Resistência”, de Rodolfo Gaede Neto (HPD II 443). Este culto também é apropriado para o rito de rememoração do Batismo, de preferência logo após a pregação e a confissão de fé.

 

5. Subsídios litúrgicos

Em algum momento do culto ou da pregação poderá ser lembrado o que Martim Lutero escreve a respeito do Batismo no Catecismo Menor. A canção “Batismo – água de vida” (cancioneiro “O Povo Canta”, página 230) é bastante apropriada para o tema do culto. Mas também podem ser cantados outros hinos de Batismo ou de Confirmação, contidos no HPD.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).