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A ARTE DA ORGANISTA ANNE SCHNEIDER

Imaginado a partir da mitológica flauta de Pan, o órgão, grande e antiquíssimo instrumento polifônico, empresta sonoridade transcendental ao culto religioso e brilho à música profana. Sua arte é difícil. À habilidade das mãos, a desdobrarem-se em diversos teclados, deve juntar-se a dos pés que movem os pedais. Os organistas, artistas refinados, cumprem peregrinações às mais belas catedrais onde se encontram instrumentos imponentes. Anne Schneider, nascida em Porto Alegre, tem intimidade com os mais importantes órgãos do mundo. Todos os anos participa dos festivais internacionais de órgão da Alemanha, Suíça, França, Portugal, Itália, México, Argentina, Uruguai, Estados Unidos, Eslováquia, Bélgica e Brasil. Já se apresentou no Berliner Dom, nas catedrais de Brugge e Bourges, Morelia, Guadalajara, Pompéia, Montevidéu, Heiligenstadt, Buenos Aires e Niterói (maior órgão do Brasil). Também lhe são familiares órgãos históricos, como o de Angermünde e os famosos de Lausanne e Chartres e da Thomaskirche, Igreja de J. S. Bach, em Leipzig, onde representou o Brasil, em 1998, na Semana Cultural da Alemanha na histórica Reformierten Kirche.

Filha e discípula do compositor e organista Léo Schneider, graduada em órgão e Filosofia e pós-graduada em Piano pela UFRGS, Anne tem importante atuação na vida musical de Porto Alegre. Apresenta-se com regularidade como solista, em duo com violino, corais e orquestras. Realizou gravações para rádios, especiais de TV e de teatro. Participou de CDs, como o Oratório de Natal de Camille Saint-Saêns com o Coral 25 de Julho e A Música de Porto Alegre, vol. 1 e gravou a trilha sonora da peça 1914, da Trilogia Perversa, de Ivo Bender, composta por Flávio Oliveira, vencedora do Prêmio Açorianos 1996. É organista titular da Igreja Martin Luther, professora de piano e órgão do Conservatório de Música do Colégio Americano. Coordena várias séries de concertos internacionais na cidade e, desde 1999, tem programa semanal na Rádio da Universidade. É autora da pesquisa Os órgãos de tubos do Rio Grande do Sul, em parceria com a Fapergs.

Anne Schneider interpreta o repertório internacional e música brasileira que tem sido muito bem recebida nas catedrais do mundo inteiro. Apesar de não serem numerosas, as peças brasileiras para órgão recebem aplausos entusiasmados do público e da crítica no Brasil e noexterior. Se poucos compuseram para o instrumento no País, os que lhe dedicaram obras, a maioria de origem européia, têm especial amor ao instrumento. Para fazer um registro de parte significativa desse repertório, Anne escolheu peças de diversas épocas e tendências, sem esquecer dos compositores do Rio Grande do Sul.

Uma das maiores personalidades da história do órgão no Brasil foi Furio Franceschini (1880-1976), nascido na Itália e brasileiro por opção. Franceschini estudou na Academia Santa Cecília, em Roma e chegou ao Rio de Janeiro em 1904, transferindo-se para São Paulo em 1907, onde foi mestre-de-capela da Sé. Naturalizou-se brasileiro, mas retornou várias vezes à Europa para estudar com Charles-Marie Widor e Vincent d’Indy. Principal organista do País em sua época, foi quem mais escreveu para órgão no Brasil. Compôs cerca de 600 obras entre missas, cânticos sacros, música para canto, orquestra, piano e outros instrumentos, transcrições e orquestrações. Como professor de órgão, contraponto, fuga e composição, também teve atuação importante, citando-se entre seus alunos Guiomar Novais e Dinorá de Carvalho. Anne selecionou, de Franceschini, a Fantasia sobre um Aleluia (1913) que resultou de um improviso do autor ao órgão ao final de uma missa de Domingo de Páscoa.

O carioca Octávio Bevilacqua (1887-1969), que estudou contraponto e fuga com Alberto Nepomuceno, embora tenha obras de valor, é mais conhecido como crítico musical do que como compositor. Escreveu no jornal O Globo desde a sua fundação, foi correspondente das revistas Le Menestrel, de Paris, França, e the Joumal of Musicology, de Greenfield (Ohio), EUA. De Bevilacqua, Anne escolheu a Berceuse, uma deliciosa canção de ninar, dedicada pelo autor a sua filha Dora.

O compositor e pianista paulista Amaral Vieira (1952) se confessa fascinado pelo órgão para o qual tem escrito várias obras. O compositor estudou no Brasil com Souza Lima e na França, com Olivier Messiaen, entre outros. Diplomou-se pela Faculdade de Música de Freiburg, e estagiou em Londres com Louis Kentner, aluno de um ex-aluno de Liszt. Autor de mais de 500 obras, recebeu vários prêmios internacionais. É o fundador do Arquivo de Música Sacra Brasileira Furio Franceschini. De Vieira, Anne gravou três peças: Intróito, Toccata e Elegia. Composta em 1984, Intróito foi criada para dar início tanto a uma cerimônia litúrgica como a um concerto. Na Toccata op. 208, de 1986, o compositor buscou modelos barrocos, utilizando seqüências baseadas em motivos melódicos curtos. A Elegia, Op. 277, em dó menor, de 1996, é uma peça de caráter simples, claramente estruturada, com vozes diferenciadas em suas respectivas funções.

De seu pai, Léo Schneider (1910-1978), personalidade marcante na música do Rio Grande do Sul como maestro, organista, professor e compositor, Anne interpreta duas peças: Lamento e Invocação. Schneider foi o primeiro diretor artístico do Orfeão Riograndense e maestro do Club Haydn, entidades de amadores que tiveram papel significativo na história da música do Rio Grande do Sul. Foi professor no Instituto de Artes da UFRGS, como titular da cadeira de Prática de Orquestra. Trabalhou longo tempo como organista na Igreja Luterana, na catedral Episcopal e na Igreja Metodista. Fundou o Conservatório de Música do Colégio Americano e destacou-se ainda como regente de coros. Autor de cinco oratórios, é o compositor brasileiro que mais escreveu nesse gênero sacro. Invocação, uma das peças interpretadas por Anne neste CD, é parte final do Oratório São João Batista, composta por Schneider em 1946. A obra, que a organista registra acompanhada pelo Coral da UFRGS, começa e termina de modo majestoso. É o Amém da obra escrita segundo as Sagradas escrituras. Lamento foi inspirado no episódio bíblico do Muro de Jerico. O tema da lamentação aparece forte e logo a seguir piano, como o choro mais ou menos contido de alguém que sofre. A obra pode ser tocada em positivo ou piano, pois usa pouco pedal (que pode ser dispensado).

As Ave Marias, escritas sobre as palavras da oração católica em louvor à Virgem Maria, são obras que comovem os ouvintes. Anne apresenta duas em seu Compact Disc de compositores de estilo bem diferentes: o popular Catulo da Paixão Cearense (1863-1946) e o clássico gaúcho Antônio Corte Real (1902-1995). A Ave Maria, de Catulo, poeta e compositor de modinhas populares, tem o caráter bem brasileiro que caracteriza o autor, que se tornou popularíssimo com suas canções Luar do Sertão e Cabocla de Caxangá.

A Ave Maria de Corte Real é considerada sua obra mais inspirada. Formado em Violino pelo Instituto de Belas Artes do Rio Grande do Sul, onde foi professor, o compositor teve atuação destacada na música de câmara em Porto Alegre nas décadas de 40 e 50. Escreveu o livro Subsídios para a História da Música no Rio Grande do Sul. Sua Ave Maria foi dedicada post-mortem a Léo Schneider.

O compositor gaúcho Bruno Kiefer (1923-1987) nasceu em Baden-Baden, Alemanha e chegou ao Brasil com 11 anos, passando a viver, um ano depois, em Porto Alegre (1935). Estudou flauta com Júlio Grau e cursou música no Instituto de Artes da UFRGS. Foi aluno de composição de Ênio de Freitas e Castro e trabalhou a técnica dodecafônica (1960) com Koellreutter. Durante vários anos participou de orquestras sinfônicas e conjuntos de câmara. Publicou vários livros de Música. No Instituto de Artes da UFRGS lecionou História da Música, Música Brasileira e realizou pesquisas musicológicas. Tem obras para piano, para canto e piano, côro, música de câmara, cantatas, orquestrais e música sacra. A obra escolhida por Anne Schneider, Reflexões foi dedicada pelo autor à organista em 1986, pouco antes de sua morte. Provavelmente é sua última obra. A composição tem duas partes: um Meditativo, aleatório, seguido de uma Fuga nos moldes habituais de entrada de vozes. Kiefer deixa a registração a cargo do organista e sugere execução em torno de oito minutos. É sua única obra organistica, embora tenha confessado a Anne ser um apaixonado pelo órgão desde a juventude, quando costumava fugir na hora do almoço para tocar e improvisar no órgão da igreja São José, no centro da cidade.

Em um panorama da música brasileira não poderia faltar Heitor Villa-Lobos, que com suas famosas Bachianas homenageou o maior compositor para órgão de todos os tempos. Saiu um Bach moreno e requeimado de trópico, enlanguecido de luares seresteiros, observou Andrade Muricy.

Anne Schneider escolheu e fez a transcrição para órgão da Ária da Bacheana Brasileira n° 5, a peça mais conhecida de Villa-Lobos originalmente composta para soprano e oito violoncelos.

A organista incluiu ainda em seu Compact Disc um pot-pourri com peças em que a música brasileira é imediatamente reconhecida tanto no Brasil como no exterior. Essa sucessão de trechos que inclui a Protofonia da ópera II Guarany, de Carlos Gomes, Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, outras canções populares e cirandas, culminando com o Hino Nacional Brasileiro, tem conquistado muitos aplausos do público brasileiro e europeu. Nos seis concertos realizados pela organista em sua mais recente turne pela Europa, este pout-pourri foi sempre bisado com um entusiasmo que demonstra a força de comunicação da música brasileira e a importância do trabalho de Anne Schneider como sua divulgadora.

Maria Luisa Paim Teixeira