Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Tito 2.11-14
Leituras: Isaías 9.2-7 e Lucas 2.1-14 (15-20)
Autor: René Krüger
Data Litúrgica: Natal de Nosso Senhor
Data da Pregação: 25/12/2010
1. Relação entre os três textos
O texto do Salmo expressa o pleno reconhecimento da justiça, da misericórdia e da verdade de Deus e transforma essa confissão numa promessa de bem-aventurança.
O texto de Lucas é bastante conhecido: nascimento de Jesus, os anjos e os pastores. Estabelece um gigantesco e assombroso arco que vai desde a figura mais enaltecida de seu momento, o imperador Augusto de Roma, a um bebê recém-nascido num lugar “impossível”, em condições pobres e sem nenhuma “glória”. E precisamente desse bebê, de aparência insignificante, que se afirma o mais grandioso que se pode dizer: ele é o Salvador, Cristo (o Messias esperado ansiosamente) e Senhor. Os humildes cuidadores de gado pequeno (ovelhas?) são os primeiros beneficiados com essa notícia, confirmam e a compartilham com outras pessoas.
No texto dessa epístola pastoral, atribuída ao apóstolo Paulo e dirigida a Tito, um cristão de procedência gentílica (isto é, não-judia), esses antecedentes (do Salmo e de Lucas) combinam numa declaração querigmática que sintetiza numa forma muito condensada os elementos nucleares/centrais da fé cristã.
A unidade de Tito 2.11-14 quer dar fundamentação à vida alternativa que há de viver a comunidade cristã diante de falsas acusações (Tt 2.8-10). Além de resistir a essas calúnias, a vida cristã irrepreensível será um testemunho claro do evangelho, oferecido ao entorno.
2. Exegese
A primeira parte do capítulo 2 o autor desenvolve uma série de exortações dirigidas aos anciãos, anciãs, jovens esposas, homens jovens, escravos e a Tito mesmo, como ministro que deve dar o exemplo para a igreja. Ao terminar esses conselhos, proporciona um fundamento para a harmonia que deve reinar na comunidade. Essa é a unidade do texto para a pregação de Natal.
Trata-se de uma unidade querigmática, na qual o autor desenvolve três dimensões teológicas correspondentes a três passos histórico-salvíficos:
a obra de Deus: manifestação da graça de Deus na entrega de Jesus Cristo por nós;
nossa transformação num povo que pratica a vontade de Deus;
a expectativa da manifestação definitiva do Senhor.
V. 11 – A partícula grega gár indica que o que segue está vinculado explicitamente com o anterior. A saber, a unidade querigmática dá fundamento às exortações. E não somente a essas em Tito. É comum que os autores das epístolas fundamentem cuidadosamente suas propostas práticas no quérigma, introduzindo de tanto em tanto núcleos teológicos em suas listas de sugestões.
A vinculação entre o conteúdo essencial da fé e a vida prática também é sublinhada pelo emprego do adjetivo sotérios, salvífico, que reitera a referência ao Sotér (Salvador) do v. 10 e antecipa o Sotér (Salvador) do v. 13. Essas reiterações indicam qual é o “coração” do texto.
O verbo epefanê, foi manifestado, emprega-se no helenismo para referir-se expressamente a aparições de divindades (Isis, Artemisa, Afrodite). Mas, em Tito
2.11, não se trata de uma tal aparição, senão da graça salvífica de Deus. A epifania definitiva se realizará somente no final dos tempos (v. 13).
É chamativa a fórmula a todos os homens. Embora esse universalismo per- tença à bagagem teológica paulina autêntica (veja 2Co 5.14; Rm 8.32; 1Tm 2.6). Essa dimensão universal contradiz todo o particularismo, seja religioso, étnico, cultural, de tradições ou o que sempre foi, como foi sustentado na Antiguidade, apesar de algumas concessões judias à salvação de alguns gentios, como também à superação de tais fronteiras por alguns filósofos e religiões de mistério.
Aqui é possível ver uma referência à celebração da Ceia do Senhor. Toda a unidade Tito 2.11-14 pode ser lida nessa explicação. A formulação a todos os homens equivaleria, então, a por muitos na explicação de Jesus a respeito de seu sangue derramado (Mc 14.24; Mt 26.28).
V. 12 – Nota-se a mudança do tempo verbal do passado do v. 11 ao presente de ensinando. O que apareceu (v. 11) atua imediatamente agora em nós (v. 12). A oração final, encabeçada pela conjunção subordinante hina, para que, indica que há um processo de superação expressado pelo particípio aoristo negando, o qual vem primeiro; e o verbo no subjuntivo aoristo vivamos. O mundo do jovem cristianismo qualificava o estilo de vida do paganismo como impiedade, tendo herdado essa qualificação do mundo religioso judeu. Era a maneira de expressar o ter tomado distância de um estilo de vida equivocado, anterior à sua conversão a Jesus Cristo. A essa forma superada também pertencia o que se qualificava como desejos mundanos. Sob esse conceito se subentendiam diversas coisas, desde determinadas práticas sexuais até os espetáculos públicos do entorno romano. Cirilo de Jerusalém fala do teatro, corridas de cavalos e caçadas; Tertuliano menciona o circo e as procissões com imagens de divindades que exibiam as pompas das crenças pagãs que tinham por objetivo suscitar certos desejos.
Frente a esses desejos, manifestações, mentalidades e práticas de seu entorno greco-romano, os cristãos devem desenvolver uma orientação diferente e manifestá-la em práticas novas. O autor já havia se referido à sobriedade nos v. 2 e 5 do mesmo capítulo. É a dimensão da sensibilidade, o autocontrole, a modéstia, a moderação. A justiça evidencia-se numa ampla tradição que está enraizada na concepção bíblica do Deus justo e sua exigência de relações justas entre os seres humanos, como reflexo de sua própria justiça. A terceira marca é a piedade, que se opõe à impiedade da vida não-cristã, superada precisamente pela transformação operada por Deus em nós. Essa transformação há de se manifestar agora a Cristo na vida das pessoas crentes.
Os termos éticos empregados pelo autor também aparecem como virtudes cardeais dos moralistas gregos clássicos: prudência, justiça, força, moderação;
mas cabe destacar que, em Tito, não aparece a força (que é mencionada em outros textos judeus do entorno: 1 e 2 Macabeus, Filo e Josefo), de maneira que não cabe especular com uma influência platônico-helenista sobre o autor da epístola.
V. 13 – Agora o autor introduz a dimensão escatológica. Também aqui pode haver uma referência implícita à Ceia do Senhor, pois essa era celebrada na
expectativa da manifestação definitiva do Senhor.
A formulação aguardando a esperança bem-aventurada soa algo curioso, pois geralmente cremos que a esperança é uma atitude que abrigamos em nosso
interior. Aqui aparece como algo exterior, algo que vem a nós da parte de Deus.
Na existência cristã, existe uma tensão contínua entre o passado (o ato da iniciativa salvífica de Deus em Jesus Cristo), o presente (a vida cristã) e o futuro
(o que ainda esperamos que se manifeste plenamente). Esses três momentos ou dimensões inseparáveis sempre estão presentes em cada momento de nossa vida. Pertencem ao mistério expressado na feliz formulação “já e ainda não” (acrescentar: “do todo”). Cristo já se manifestou, mas ainda se manifestará plenamente.
Mas não estamos sentados entre dois cavalos, com a ameaça de uma inexorável queda. É um só lugar em que estamos parados e caminhamos ao mesmo tempo. Estamos percorrendo o caminho entre ambas as manifestações: a já realizada, que o autor indica no v. 11, e a esperada, mencionada no v. 13. Estamos, somos, vivemos e nos movemos entre essas duas manifestações, a primeira recebida com fé e a segunda aguardada ou esperada. Nossa ética pessoal, familiar, comunitária e social deve-se a essas manifestações.
Esse modelo do “já e ainda não” é uma superação da doutrina das duas inteligências eternas, cujos espaços estão clara e inconfundivelmente separados.
A fórmula Grande Deus é afirmação da fé comum no âmbito do antigo próximo Oriente e, em seguida, do helenismo (veja At 19.27-28, onde o epíteto
é aplicado à deusa Diana). É possível que por ali também tenha passado o culto cristão sob a forma de alguma aclamação.
Segue uma série de genitivos que causaram alguma dor de cabeça à exegese. Qual é a relação entre esses genitivos? Haveria três possibilidades: 1) O
grande Deus e Salvador é Jesus Cristo. A favor dessa possibilidade fala a falta do artigo junto a Salvador no texto grego. 2) O autor distingue entre Deus e Jesus Cristo. Então estaria dizendo que na epifania final a grandeza de Deus se manifestaria na parusia de Jesus Cristo. 3) De Jesus Cristo seria oposição a da glória, querendo o autor dizer: a manifestação da glória do grande Deus e a de nosso Salvador, a saber, a manifestação da glória de Jesus Cristo. Essa última possibilidade é rebuscada e equivocada, já que a revelação de Jesus Cristo condicionaria a de Deus.
A segunda possibilidade é uma construção artificial, sem base suficiente no próprio texto.
Ora, a rejeição da primeira leitura vai de mãos dadas com a afirmação errônea de muitos exegetas que sustentam que Jesus Cristo não é chamado de Deus no Novo Testamento. Não é lícito desconhecer os dados evidentes dos textos simplesmente porque o que dizem não se enquadra nos prejuízos teológicos de quem os estuda. É a filosofia simplista e cega de “não existe aquele que não deve ser”. Lamentavelmente, não temos espaço suficiente para ampliar aqui sobre as afirmações neotestamentárias explícitas acerca da divindade de Jesus Cristo, não somente como Filho de Deus, mas como Deus, mas seria interessante que Proclamar Libertação dedicasse em algum momento um espaço para uma tal análise.
Por três motivos optamos pela tradução manifestação gloriosa de nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo (edição Almeida revista e atualizada –
1993: Manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus):
Não há artigo antes de Salvador no texto grego. A construção da frase é, pois, clara.
O autor pode qualificar como Salvador tanto a Deus (Tt 1.3; 2.10; 3.4) como a Jesus Cristo (Tt 1.4;3.6). Se ele concebe com clareza essa “compatibilidade”, também pode afirmar que Jesus Cristo é Deus. A teologia também é, pois, clara.
Uma aproximação sem preconceito da afirmação de Jesus Cristo como Deus.
Além disso, o judaísmo da diáspora via Deus como Salvador, sendo-lhe favorável um dos significados de Sotér, Salvador, como benefactor na religião grega.
V. 14 – Agora vem uma conclusão teológica. O verbo se deu, no aoristo, remete à obra já realizada, como o primeiro verbo da unidade no v. 11. Mas a forma verbal seguinte a fim de remir-nos tem caráter final e remete à obra contínua da graça que nos ensina. Novamente estamos diante dessa combinação, redacionalmente tão bem alcançada, dos diversos momentos de um único processo libertador e salvífico.
A formulação a fim de remir-nos de toda iniquidade é um composto que provém do Salmo 130.8: É ele quem redime a Israel de todas as suas iniquidades (pecados). A combinação com o conceito de povo próprio de Deus, composta a partir de Ezequiel 37.23 (eles serão o meu povo) e Êxodo 19.5 (sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos) destaca, por um lado, o distanciamento de toda a iniquidade e, por outro, o compromisso de marcar a diferença. A libertação do povo de Israel da escravidão do Egito teve o claro propósito de convertê-lo em um “povo especial”, próprio de Deus, propriedade dele.
O autor da epístola anima-se a aplicar essa linguagem agora à igreja cristã. O quérigma da libertação realizada por Deus e concretizada na criação do povo zeloso de boas obras tem, pois, um conteúdo ético decisivo, como o desenvolveu o autor na primeira metade de sua carta e como o fará agora na segunda.
3. Meditação
Apesar do espaço litúrgico enraizado amplamente na tradição cristã, Tito 2.11-14 não é um texto tipicamente natalino. Mas a ordem dos textos o tem previsto para o Natal, e isso significa que precisamos enfrentar esse desafio. Esperamos que o texto proporcione alguma boa surpresa, no sentido de servir para “despertar-nos” da “letargia natalina”. Ou talvez de falsas expectativas com respeito ao que se “deve dizer” no Natal.
Nessa magna festa da cristandade, a comunidade chega com diversas expectativas para a celebração. Uma grande parte vem com recordações da infância
e carregada de emoções, que, longe de serem um impedimento para a recepção da mensagem evangélica, podem constituir uma ponte para a novidade que contém a proclamação, quando essa não tem um tom de negação (Natal não é… não significa… não pede isso, mas aquilo…), mas que busca as pessoas ali onde se encontram nesse momento e leva-as cuidadosamente a admirar a incrível profundidade da obra de Deus em Jesus Cristo a nosso favor.
Então, com referência à manifestação da graça de Deus, o autor não está falando do ato singular do nascimento de Jesus Cristo, mas sim de toda a intervenção de Deus através de Jesus Cristo, desde sua concepção até sua glorificação, a pregação pode apresentar com a força o conteúdo do quérigma ou também levar os presentes a uma decisão alegre de responder com sua própria vida a essa obra de Deus, cuja postura na cena terrena, por assim dizer, estamos celebrando hoje.
Se bem que fica proibido traçar paralelos e semelhanças simplistas entre aquele mundo de Tito e o nosso, não é demais dizer que também em nosso mundo
atual vemos múltiplas manifestações de impiedade, paixões mundanas, insensatez, injustiça, iniquidade e impureza e que Deus requer que seu povo viva de
maneira diferente, alternativa e claramente oposta. Que pratique sensatez, justiça, piedade, boas obras. É tarefa de quem prega indicar situações concretas tanto do primeiro (o mundo ímpio, injusto e impuro) como do segundo (práticas de sensatez, justiça, boas obras). Não é tarefa de quem escreve a meditação para Proclamar Libertação inventar tais exemplos.
4. Rumo à prédica
Há duas linhas fundamentais nesse texto, e a ênfase da pregação pode re- cair sobre qualquer uma delas, sempre que a outra esteja implicada.
Primeira: a linha querigmática. Enfatizá-la significa admirar a grandeza de Deus, que fez algo tão grande por mim, pessoa pequena e insignificante, por nós, comunidade, quem sabe, grande em número ou edifícios, mas pequena em amor; pela humanidade, titânica em resultados positivos, mas terrível em seu caráter destrutivo e autodestrutivo.
Essa obra gigantesca de Deus teve um começo terrenal pequeníssimo e insignificante no nível das aparências: uma gravidez de uma virgem/moça, um nascimento numa estrebaria de animais, um bebê em panos colocado num cocho. Apenas uma pequenina luzinha numa noite escuríssima.
Segunda: a linha ética. Enfatizá-la significa fomentar uma decisão alegre, bem de acordo ao ambiente natalino, de querer viver como o Senhor o quer.
A obra do Senhor marca uma diferença de vida com respeito aos que não aderem a esse Senhor. Dentro das estruturas do mundo, a vida está marcada por impiedade e desejos mundanos; na esfera salvífica, a vida caracteriza-se por so- briedade, justiça e piedade. Deus nos chama a discernir com sobriedade a buscar e praticar a justiça e a ser fiel a ele. Em meio a uma total relativização, a um individualismo exacerbado pelo sistema neoliberal, em meio a um egoísmo de “salve-se quem puder”, a filosofia do eu, as tribos urbanas enfrentadas em ferozes lutas e os países em guerra, aí a igreja tem uma valiosa oferta para fazer: o evangelho da graça, o perdão, a aceitação mútua, o serviço, a vida em comunidade, o valor de cada ser humano.
É decisivo acentuar que isso vai na contramão com a tendência pós-moder- na atual, para a qual tudo é o mesmo, tudo é igual, nada importa, tudo é bom, bem como diz a tradicional saudação: “Tudo bem?” “É, tudo bem!”
A justiça não é uma mera prática jurídica, mas na concepção bíblica deve ser marca fundamental da vida de todos os membros do povo de Deus. Mas não como um esforço de resultados meritórios por causa de uma grande quantidade de atos individuais de justiça, mas sim como uma atitude de vida correspondente ao ato de haver sido justificado por Deus mesmo, para empregar a terminologia paulina e evangélica.
Essa vida de acordo com a vontade do Senhor é possível porque chegamos de uma intervenção de Deus em Jesus Cristo, celebrada também hoje nesse encontro natalino; caminhamos com esse Jesus Cristo e nos dirigimos a sua ma- nifestação plena e definitiva. Estamos entre suas duas manifestações, a já aconte- cida e a que ainda acontecerá no final dos tempos.
5. Subsídios litúrgicos
Para qualquer uma das linhas sugeridas para a pregação, pode-se pensar no seguinte subsídio ilustrativo: antes da leitura do texto, colocar uma vela apagada sobre o altar ou sobre o púlpito, apagar todas as luzes no templo, acender a vela e pedir que os presentes pensem sobre o que lhes sugere acender uma vela em plena escuridão. Não é necessário compartilhar as associações em voz alta.
Em seguida, deixa-se a vela acesa obre o altar ou púlpito, e as luzes do templo são acesas e desenvolve-se a prédica.
Bibliografia
HOLTZ, Gottfried. Die Pastoralbriefe. Berlim: Evangelische Verlagsanstalt, 19925.
CARSON, D.A.; FRANCE, R.T.; MOTYER, J.A.; WENHAM, G.J. Nuevo Comentario Bíblico. Siglo Veintiuno. El Paso, Texas: CBP, 2000.
KEENER, Craig S. The IVP Bible Background Commentary, New Testament. Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1993.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).