A redescoberta da graça de Deus
Proclamar Libertação – Volume 41
Prédica: Tito 2.11-14
Leituras: Isaías 9.2-7 e Lucas 2.1-4 (15-20)
Autoria: Gerson Correia de Lacerda
Data Litúrgica: Dia de Natal
Data da Pregação: 25/12/2016
1. Introdução
O texto para a prédica deste domingo já foi estudado quatro vezes em números anteriores de Proclamar Libertação. A primeira vez no volume 2, em 1977, com texto de Ervino Schmidt. A segunda vez no volume 11, em 1985, com texto de Luís M. Sander. A terceira vez no volume 24, em 1998, com texto de Lurdes Caron. Finalmente, a quarta vez no volume 35, em 2010, com texto de René Krüger. Todos esses estudos devem ser examinados com bom proveito na preparação da prédica para este culto do Dia de Natal.
O texto do profeta Isaías é muito utilizado pelas igrejas na época do Natal. Em especial, destaca-se o seu sexto versículo, que diz: “Já nasceu uma criança, Deus nos mandou um menino que será o nosso rei. Ele será chamado de ‘Conselheiro Maravilhoso’, ‘Deus Poderoso’, ‘Pai Eterno’, ‘Príncipe da Paz’”. Para os cristãos, o texto é uma clara referência ao nascimento de Jesus de Nazaré.
O texto de Lucas, por sua vez, apresenta uma das narrativas do nascimento de Jesus. A outra narrativa de que dispomos é aquela que se encontra no Evangelho de Mateus. Os textos de Isaías e Lucas têm, portanto, algo em comum: eles são muito utilizados nos cultos de celebração do Natal. Não é esse, porém, o caso do texto de Tito. Raramente ele é utilizado nas celebrações natalinas. Aparentemente trata-se de um texto que não tem relação alguma com o nascimento de Jesus nem com os outros dois textos indicados para esse dia. No entanto, ao abordar a revelação da graça de Deus para a salvação, esse é um texto muito adequado para o Dia de Natal.
2. Exegese
Dispomos de poucas informações a respeito da data e do lugar em que essa carta foi redigida. O que sabemos é que Tito era um gentio-cristão, amigo e companheiro de viagem de Paulo, apesar de pouco mencionado no livro de Atos. Trabalhou em Corinto e em Creta, onde recebeu a carta de Paulo. Esteve com Paulo em seu segundo cativeiro. Posteriormente, foi enviado à Dalmácia e veio a falecer em Creta, de acordo com a tradição.
Ao escrever para Tito, Paulo teve dois focos: combater as heresias e estimular a vida correta dos cristãos, de acordo com a doutrina verdadeira. As heresias referiam-se a mitos ou histórias inventadas pelo judaísmo a respeito da pureza. Nesse sentido, Paulo é muito firme ao dizer: “Parem de dar atenção a histórias inventadas por judeus e a ensinamentos humanos que vêm de pessoas que rejeitam a verdade. Tudo é puro para os que são puros: mas nada é puro para os impuros ou descrentes, pois a mente e a consciência deles estão sujas” (Tt 1.15).
Contra as heresias e para estímulo à vida correta ocupa lugar central, de forma especial, o texto de Tito 2.11-14, do qual destacamos os seguintes pontos.
2.1 – Epifania da graça salvadora
Graça, “no grego, é charis, que indica graciosidade, atrativo, favor. Neste ponto não está em foco a graciosidade geral de Deus e, sim, aquele favor particular que enviou Cristo para ser o nosso Salvador e que agora eleva os homens à salvação moral e metafísica, conferindo-lhes o que chamados de salvação” (CHAMPLIN, p. 431, 432). Aí está a razão da utilização desse texto nas celebrações natalinas, pois, no Natal, nós celebramos exatamente a epifania da graça de Deus, manifestada no envio de Jesus ao mundo para morrer por nós e libertar-nos do pecado e da morte. Nesse caso, a graça de Deus revela-se graça salvadora.
2.2 – Graça ensinadora
O texto de Paulo a Tito, porém, não se limita a destacar a graça como salvadora. Acrescenta também que a graça de Deus é ensinadora. Como graça ensinadora, ela envolve dois aspectos educativos na vida das pessoas: por um lado, negativamente, ensina as pessoas a deixar de lado a descrença e as paixões mundanas; por outro lado, positivamente, ensina-nos “a viver neste mundo uma vida prudente, correta e dedicada a Deus” (Tt 2.12).
Isso significa que, na graça ensinadora, não se trata simplesmente de uma graça que nos ensina intelectualmente a respeito de novas doutrinas ou formas de pensar. Sua atuação é muito mais profunda e muito mais intensa. Trata-se de um ensino prático, relacionado com a vida, que muda o comportamento das pessoas.
2.3 – Graça esperançosa
A manifestação da graça de Deus não se deu unicamente na vinda de Jesus ao mundo para nos salvar. Em outras palavras, a graça de Deus não se refere tão somente a um evento do passado. Ao contrário, ela aponta também para o futuro. Haverá uma segunda epifania da graça de Deus: “O dia feliz em que aparecerá a glória do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo” (Tt 2.13).
Isso significa que a vida do cristão no mundo atual envolve uma esperança. Ele não está envolvido com a realidade do mundo atual como se nada mais houvesse para acontecer. Ele não celebra o Natal simplesmente como um evento do passado, ocorrido dois milênios atrás. Além disso, ao contemplar a situação atual de nosso mundo, o cristão não entra em desespero nem fica sem qualquer expectativa quanto ao futuro. Não! Há a expectativa de um outro Natal, diferente do primeiro, quando o Senhor Jesus aparecerá em glória.
2.4 – Graça que nos torna povo de Deus
Finalmente, a graça de Deus não está relacionada somente ao indivíduo de forma isolada. Ao contrário, ao morrer na cruz para nos salvar, Jesus liberta o indivíduo do pecado e de toda a maldade e integra-o a uma comunidade, a um povo, que pertence a Ele e que deseja praticar o bem.
Cumpre-se, assim, o projeto divino anunciado a Abraão, o qual foi chamado por Deus com o propósito de fazer dele um povo e de, por meio dele, abençoar todos os povos da terra.
Essa mesma ideia é destacada na Carta de Pedro, quando esse diz: “Vocês são a raça escolhida, os sacerdotes do Rei, a nação completamente dedicada a Deus, o povo que pertence a Ele. Vocês foram escolhidos para anunciar os atos poderosos de Deus, que os chamou da escuridão para a sua maravilhosa luz. Antes, vocês não eram o povo de Deus, mas agora vocês são o seu povo; antes não conheciam a misericórdia de Deus, mas agora receberam a sua misericórdia” (1Pe 2.9-10).
Natal é a manifestação maior da graça de Deus. Com base no texto bíblico, procuramos destacar os vários aspectos presentes na graça de Deus revelada em Cristo Jesus. Nisso tudo torna-se claro que o apóstolo Paulo, ao escrever a seu discípulo Tito, tinha uma compreensão muito ampla da graça de Deus. Ele não se limitava a compreender a graça simplesmente como graça salvadora, como ocorre nos dias de hoje em muitas igrejas. Essa é uma compreensão muito pobre e limitada da graça de Deus. Por isso precisamos resgatar o sentido da graça de Deus, que, além de salvar, ensina, dá esperança e torna-nos um povo escolhido.
Em nossas celebrações natalinas, a utilização do texto de Tito pode ajudar-nos muito nesse sentido. Ele completa a mensagem do Antigo Testamento, apresentada em Isaías 9, e a mensagem dos evangelhos, proclamada em Lucas 2.
3. Meditação
Em 1937, Dietrich Bonhoeffer publicou um singelo e pequeno texto sob o título “Discipulado”, que se tornou famoso. Nessa obra, ele tratou da graça de Deus, estabelecendo uma distinção entre a “graça preciosa” e a “graça barata”. Disse ele: “A graça ‘barata’ é inimiga mortal da nossa igreja. A nossa luta trava-se hoje em torno da graça preciosa. Graça barata é a graça adulterada, o falso perdão, o falso consolo, o falso sacramento; a graça como inesgotável tesouro da igreja, distribuído com mãos prontas, sem pensar e sem limites; a graça sem preço, sem custo. A essência da graça é, ao que pensamos, a conta ter sido liquidada antecipadamente para toda a eternidade. Essa conta paga permite que tudo se obtenha gratuitamente… A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça sem Jesus Cristo, vivo, encarnado”.
Por outro lado, a graça ‘preciosa’ “chama ao discipulado; é preciosa por custar a vida de um homem, e é graça por, assim, lhe dar a vida; é preciosa por condenar o pecado, e é graça por justificar o pecador. Essa graça é sobretudo preciosa por o ter sido para Deus, por ter custado a Deus a vida de seu filho… A graça preciosa é a encarnação de Deus”.
Essa distinção estabelecida por Bonhoeffer serve perfeitamente para introduzir uma prédica a respeito da graça de Deus, que é o grande tema do texto de Tito para o culto de Natal.
3.1 – A dificuldade de compreender o que é graça
Apesar da clara manifestação da graça de Deus ao enviar Jesus ao mundo para nos salvar, existe uma enorme dificuldade para compreender o que significa graça. Isso porque nós vivemos num mundo profundamente marcado pelo capitalismo, no qual aprendemos que nada é de graça. Tudo tem seu preço. Por causa disso, quando se anuncia ou se faz propaganda a respeito de algo que é oferecido gratuitamente, a desconfiança é geral. Ninguém acredita. Por trás do que se divulga como gratuito existe sempre um engodo. Aproveitadores da ingenuidade popular oferecem coisas de graça, que sempre acabam custando um alto preço.
Nesse contexto, no campo religioso, acaba sendo muito difícil acreditar num Deus que se revela gracioso para dar a salvação a todas as pessoas. E a graça de Deus termina sendo desvirtuada em sua compreensão.
3.2 – Os desvirtuamentos da graça
Dietrich Bonhoeffer chamou a atenção para um dos desvirtuamentos da graça. Referiu-se a tal desvirtuamento como a graça ‘barata’, ou seja, a graça que não produz mudança de vida, a graça que, para usarmos o texto de Tito, não “nos ensina a abandonar a descrença e as paixões mundanas”, nem nos leva “a viver uma vida prudente, correta e dedicada a Deus”.
No momento em que preparamos este texto, o nosso país está vivendo os terríveis dias da operação Lava-Jato, a qual tem revelado a imensa corrupção e podridão que tomou conta de nossos líderes políticos. O mais incrível nessa história toda é que pessoas que se apresentam como evangélicas, isto é, como seguidoras do Senhor Jesus, estão sendo apanhadas como criminosas por desvio de recursos públicos e estão indo para a cadeia. São pessoas que falam na graça de Deus e que declaram viver sob essa graça, sem, no entanto, ter suas vidas transformadas. Temos aqui um total desvirtuamento do sentido da graça de Deus, que se choca frontalmente com o ensino de Paulo a Tito, pois não é uma graça salvadora nem ensinadora, nem esperançosa, nem formadora de um povo escolhido para praticar o bem.
Além disso, na religiosidade brasileira, existe outro desvirtuamento da graça, profundamente arraigado no coração do nosso povo. Trata-se daquela forma de entender que a graça de Deus não pode ser recebida graciosamente. Ela tem um preço. É preciso pagar por ela. Entre os católicos romanos a forma mais comum de pagamento é o cumprimento de promessas. Aliás, é exatamente essa a linguagem utilizada popularmente: as pessoas fazem uma promessa para a obtenção de uma graça; recebida a graça, é preciso cumprir a promessa para pagar pela graça obtida.
Por outro lado, entre os evangélicos, principalmente no movimento pentecostal e neopentecostal, a forma de pagamento da graça são os dízimos e as ofertas. Ensina-se e proclama-se que os contribuintes adquirem o direito de determinar o que querem de Deus. Em outras palavras, nada recebem de graça de Deus, pois transformaram-se em compradores de suas bênçãos.
3.3 – A redescoberta da graça de Deus
Frente a essa realidade, a mensagem de Paulo a Tito serve para levar-nos ao redescobrimento da graça de Deus. Essa graça foi prometida no Antigo Testamento pela mensagem profética ao povo que vivia nas trevas, “sem dinheiro e sem preço”. O cumprimento dessa graça aconteceu no Novo Testamento com o nascimento de Jesus, providenciado por Deus, sem que o ser humano tivesse ao menos buscado a presença do Senhor. Ao contrário, pela sua graça, Deus tomou a iniciativa da encanação de Jesus, “que se tornou um ser humano e morou entre nós, cheio de graça e de verdade. E nós vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1.14).
Sem dúvida alguma, numa época em que o Natal se transformou na maior festa comercial do mundo, a redescoberta da graça de Deus é a grande mensagem que precisa ser proclamada.
4. Imagens para a prédica
4.1 – O espírito do Natal
Dona Avara fazia jus ao nome. Era avarenta, mesquinha e sempre apegada aos valores materiais. Na segunda quinzena de dezembro, no entanto, ela mudava por completo o comportamento. Ajudava algumas pessoas, distribuía sorrisos e favores e dizia a todo instante: “O Natal está chegando. Precisamos viver o espírito do Natal”. O problema é que, passado o Natal, findava também toda a onda de bondade, e Avara voltava à sua avareza.
Dona Wal, ao contrário, amava ajudar os outros. Não havia um tempo escolhido para ela: todo tempo era oportuno para fazer o bem. Visitava os mais necessitados e, de alguma forma, os ajudava. E, quando alguém lhe perguntava o porquê daquela ajuda, daquele presente, ela sorria e dizia: “É porque o espírito do Natal chegou”. Todos os que a conheciam, contudo, sabiam que o espírito do Natal não havia chegado. Ela é que vivia nesse espírito o ano todo. E esse é o verdadeiro espírito do Natal. Não só para alguns poucos dias, mas para o tempo inteiro. Deus tanto nos ama, que nos dá o seu Filho para que tenhamos vida (MORAES, Jilton. Ilustrações e poemas para diferentes ocasiões. São Paulo: Vida. p. 233).
4.2 – Porta do coração
Um homem havia pintado um lindo quadro e, no dia de apresentá-lo ao público, convidou todo o mundo para vê-lo. Chegado o momento, tirou-se o pano que cobria o quadro. Houve um caloroso aplauso. Era uma impressionante figura de Jesus batendo à porta de uma casa. O Cristo parecia vivo. Com suas mãos de dedos longos, batia suavemente e, com os ouvidos junto à porta, parecia querer ouvir se lá dentro alguém respondia.
Houve discursos e elogios. Todos admiravam aquela obra de arte. Um observador curioso, porém, achou uma falha no quadro: a porta não tinha fechadura.
Como se fará para abri-la? – É assim mesmo – respondeu o pintor. – Esta é a porta do coração humano; só se abre do lado de dentro (RANGEL, Alexandre (org.). As mais belas parábolas de todos os tempos. V. I. Belo Horizonte: Editora Leitura. p. 198).
5. Subsídios litúrgicos
É Natal
É Natal quando recebemos a boa-nova de Deus.
É Natal quando a ressurreição se anuncia no horizonte.
É Natal quando chegam a justiça e a alegria entre os pobres. É Natal quando o evangelho mesmo se faz carne.
É Natal quando cantamos, rimos, oramos e anunciamos um reino de irmãos. É Natal quando o “nós” se torna abraço, promessa, futuro.
É Natal quando, em Cristo, recebemos o presente da vida.
(Igreja Evangélica Valdense do Rio Negro, 1977, em: Para que lo digas em oración. CABRERA, Miguel Angel. Uruguai, Igreja Valdense, p. 85).
O sagrado se fez gente
Não, moço. Não foi uma noite tão feliz. Fazia frio. O vento cortante feria os lábios, ressecava os ossos…
Eu estava ao relento, sob as estrelas de um céu gelado-escuro, como de costume. Não, não. Não é que eu seja uma criatura soturna, boêmia ou romântica. Sou só um pastor.
Isto é, sou um sem-teto, sem-terra, sem-educação, sem-eira-nem-beira…
Cuido de ovelhas, só isso…
Uma dessas famílias-sem-nada havia ocupado uma das grutas onde os animais se abrigavam e ali disputavam aconchego junto a bois e jumentos….
Entrei devagar, quase solene. Tudo era tão igual, mas, ao mesmo tempo, tão radicalmente diferente. Era como se eu não fosse eu. Meus olhos viam o que jamais haviam visto…
Ajoelhei-me porque me dei conta de que estava diante do mistério da Vida. Chorei porque tudo era tão singelamente fantástico. Orei porque, naquele momento, percebi que estava face a face com o Sagrado, que habita o cotidiano.
Não. Não foi uma noite tão feliz… Eles, como eu, continuavam sem-teto, sem-agasalho, sem-nada. Choravam sorrindo. Sorriam chorando. Tudo era exatamente igual. A única coisa que já não era a mesma éramos eles e eu. Porque nossos olhos viam não uma noite feliz no céu, mas o amanhecer de um novo dia de paz na terra.
(RAMOS, Luiz Carlos. Natal. São Bernardo do Campo, SP: Texto & Textura, 2010. p. 9-11).
Bibliografia
CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo – v. V. São Paulo: Milenium, 1982.
STAAB, Karl; BROX, Norbert. Cartas a Tesalonicenses, Cartas de la Cautividad, Cartas Pastorales. Barcelona: Editora Herder, 1974.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).