Estimadas irmãs e estimados irmãos em Cristo!
Nestes dias que antecedem à votação do “Referendo sobre a Proibição do Comércio de Armas e Munição” quero solidarizar-me com vocês na condição de cristão de confissão luterana, ciente de nossa responsabilidade cívica. Saúdo a vocês com a visão do profeta Isaías, sonhada já aproximadamente 725 anos antes de Cristo:
Deus julgará entre os povos e corrigirá muitas nações;
estas converterão suas espadas em relhas de arados e suas lanças em podadeiras;
uma nação não levantará a espada contra outra nação,
nem aprenderão mais a guerra.
(Isaías 2.4)
Nosso voto é importante
Dia 23 de outubro o povo brasileiro votará soberanamente se o comércio com armas de fogo e munição no Brasil deve ser proibido. Como em todas as eleições, é fundamental que cada eleitor e cada eleitora exerçam seu dever de cidadania de maneira livre e consciente. Assim, um primeiro dever que temos como cidadãos e cidadãs é informarmo-nos bem acerca do que está em jogo. Algumas perguntas podem guiar a nossa reflexão:
• Qual é a situação da segurança e da violência no país?
• Atualmente há no país um comércio legalizado de armas e munição. Isso nos dá a adequada proteção a que temos direito?
• Se não, a proibição do comércio de armas e munição poderá melhorar a situação?
• Que medidas de segurança pública deveríamos exigir de nossas autoridades?
• Quais os principais argumentos a favor do sim e a favor do não?
• Quais as possíveis respostas para os questionamentos levantados por um ou outro lado?
• Por trás dos argumentos e da propaganda também pode haver interesses ocultos, não revelados. Quais seriam esses?
• Se são legítimos, por que não são revelados?
• Poderá ser importante analisarmos casos de morte por arma de fogo que conhecemos. Mas será igualmente importante vermos dados objetivos de quantas mortes por arma de fogo, em quais situações, se dão no Brasil. E devemos pensar no tipo de sociedade que queremos construir.
• Como podemos contribuir para que haja entre a população um clima de mais paz e menos violência?
Essa reflexão será pessoal, mas também deveria ser efetuada em família, em grupo, na escola, na comunidade, nas igrejas. Neste assunto, talvez mais do que em outros, entra fortemente em jogo nossa emoção, sobretudo quando conhecemos (ou sofremos) casos de violência e morte pelo uso de armas. Mas nossa decisão não deve ser baseada na pura emoção. É importante refletir. E aí decidir.
A primeira recomendação desta carta é, pois, que todas as pessoas se informem, reflitam, dialoguem, formem uma opinião e votem de acordo com sua consciência. Nem todas as pessoas chegarão à mesma decisão. Haverá quem votará “sim” e quem votará “não”. Isso é legítimo e faz parte da democracia. A IECLB, portanto, não prescreve o voto. Não é nossa praxe nem nossa convicção de que a Igreja devesse comandar as consciências. Mas a Igreja tampouco pode ser neutra num assunto de tamanha relevância para a vida das pessoas e para o futuro de nosso país. É dever da IECLB também contribuir para o processo de reflexão e de tomada de decisão, com a sua recomendação, baseada em análise da realidade e, sobretudo, nos valores espirituais que lhe vêm do evangelho. Convido os membros da IECLB a tomar esta recomendação junto com todos os demais dados e informações que obtiverem, para seu próprio processo de reflexão e decisão.
A visão de Isaías – apenas um sonho?
Realmente, olhando nossa realidade, a visão do profeta Isaías de um mundo sem guerras ou violência parece ser apenas um sonho. Pois o que assistimos ou mesmo vivenciamos, no dia-a-dia, é algo bem diferente. Lembro apenas alguns dados: a cada 13 minutos, morre uma pessoa no Brasil vitimada por tiros. Nosso país lidera o ranking de mortes por armas de fogo. No ano de 2003, foram mortas por tiros 39.284 pessoas, sem contar as pessoas feridas. Para atender a essas, o SUS gastou, naquele ano, em torno de 140 milhões de reais. As armas de fogo matam mais do que acidentes de trânsito, outra calamidade de nosso país. O Brasil é um dos principais produtores de armas leves do mundo. Estima-se que o total de armas em circulação no Brasil esteja em torno de 17 milhões. Os civis possuem 10 vezes mais armas do que os órgãos de segurança. Felizmente, em 2004, já com a nova lei do desarmamento, o número de mortos baixou para 36 mil. Mas ainda é um número extremamente elevado e mais devemos fazer para diminuir uma estatística tão trágica.
Temos razões tanto bíblicas quanto de análise da realidade, para, sem imposições, recomendar o sim no referendo do dia 23, ou seja, a posição em favor da proibição do comércio de armas e munição no Brasil.
Razões bíblicas
A Bíblia nos dá um claro mandato em favor da paz. O profeta Isaías idificou o Messias, que haveria de vir, como “Príncipe da Paz” (Isaías 9.6). Os anjos de Belém anunciaram aos pastores o nascimento de Jesus, cantando e anunciando “paz na terra” (Lucas 2.14). Quando Jesus foi preso, alguém quis defendê-lo, mas Jesus lhe ordenou: “Embainha a tua espada” (Mateus 26.52). Jesus nos trouxe e nos deixou a paz, em vida e após a ressurreição (João 20.19,21 e 26). De fato não a deu, como a dá o mundo (João 14.27). A paz do mundo geralmente é baseada na força e, portanto, é uma paz falsa e ilusória. Jesus deu sua vida pelo perdão dos pecados, pela reconciliação e pela paz. No Sermão do Monte, deu-nos um mandamento novo e radical: “amar os inimigos e orar por eles” (Mateus 5.44). E proclamou a maravilhosa promessa: “Bem-aventuradas as pessoas que constroem a paz” (Mateus 5.9).
Quando reunidos em culto, também compartilhamos a paz uns com os outros e intercedemos incessantemente pela paz no mundo e entre as pessoas. Também cantamos: “Nem só palavra é a paz: É palavra unida à ação. Jesus deu a vida, o sangue da aliança, o signo da paz para um mundo infeliz” (HPD 1, hino 170, estrofe 2). As pessoas cristãs, portanto, não reproduzem a violência, mas disseminam a paz. Seguem a admoestação do apóstolo Paulo: “Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem”(Romanos 12.21).
Análise da realidade
A violência em nosso país assusta e atemoriza por oprimir e destruir vidas. Não há dúvida quanto a isso. A insegurança, sentida no campo bem como na cidade, é agravada pela ampla impunidade que reina no país. Para muitas pessoas é inconcebível a perspectiva de os criminosos terem armas sofisticadas para as ameaçar, ao passo que elas não teriam instrumentos para se defender. Diante da precariedade da segurança pública, sentem-se tentadas a tomar a questão da segurança em suas próprias mãos. Sentem-se impelidas até mesmo a praticarem a Lei de Talião – “olho por olho, dente por dente”. De fato, a violência e a impunidade generalizadas aumentam o medo e induzem as pessoas a armarem seus espíritos bem como suas mãos. Esse sentimento é compreensível. Mas armar-se seria a solução para o problema da violência? Podemos imaginar uma sociedade, em que todas as pessoas tivessem armas como aquela em que viveríamos com mais segurança?
Em verdade, a arma apenas raramente ajuda com eficácia para a defesa. Pelo contrário, em geral ela aumenta a violência que, por sua vez, gera violência ainda maior. E como se não bastasse a desgraça, a arma pode, muito facilmente, parar nas mãos dos criminosos e ser usada contra quem quer se defender com ela ou contra outras pessoas inocentes. Além de ter a vantagem do fator surpresa, a pessoa criminosa quase sempre é mais ágil do que aquela que tem uma arma “apenas para se defender”. Eu mesmo, com minha esposa, fui assaltado à mão armada há algum tempo, ao chegarmos em casa. A primeira exigência do assaltante que me apontava o revólver, foi: “Quero ver se o senhor está armado.” Se eu estivesse, no mínimo teria fornecido mais uma arma aos bandidos. Mas se eu tivesse feito um gesto de defesa, muito provavelmente teria sido morto. Felizmente eu não estava armado. Os assaltantes levaram dinheiro, celulares e nosso carro, mas não nos tiraram a vida.
Além disso, está comprovado que a posse de armas de fogo, freqüentemente, transforma desavenças banais em tragédias irreversíveis. Nas capitais brasileiras, 44% dos homicídios de mulheres são cometidos por seus companheiros com arma de fogo. Armas, por si só, são muito perigosas. Quantas crianças, que brincam, às escondidas, com as armas de seus pais, sofrem ou mesmo causam acidentes! Os jovens, numa fase de especial descoberta e afirmação de sua identidade, são, em elevado grau, tanto vítimas quanto protagonistas de crimes. Mas também entre pessoas adultas há aquelas que quando perdem, mesmo que apenas por um instante, seu equilíbrio emocional e psicológico, precipitam-se em fazer uso da arma. Nesses casos, a oportunidade e a facilidade de dispor de uma arma também fazem o homicida.
O estatuto do desarmamento e o papel do Estado
O estatuto do desarmamento dará ao Estado melhores instrumentos para coibir a posse de armas também pelos próprios bandidos. Não devemos esquecer ainda que todo criminoso, antes de cometer seu primeiro crime, foi uma assim chamada “pessoa de bem”. Tudo isso nos leva a concluir: armas de fogo são instrumentos perigosos, que o Estado deve confiar somente a pessoas devidamente preparadas, instruídas, acompanhadas e fiscalizadas, no exercício de funções de vigiar e defender a vida coletiva.
Não devemos esquecer tampouco que a proibição do comércio de armas e munição só pode ser considerada um passo, importante sem dúvida, mas apenas um passo de uma caminhada bem mais longa. Precisamos políticas sociais que criem melhores condições de vida e diminuam o desemprego, para que as pessoas tenham mais perspectivas de vida digna. É também indispensável exigir que o Estado cumpra com maior eficiência sua obrigação quanto à educação. Esta deverá ser priorizada sempre, garantindo a todas as pessoas o acesso a ela, contribuindo assim para a formação da cidadania, da solidariedade e de uma cultura de paz. E também necessitamos de melhores políticas relativas à segurança pública, para que a população não se sinta ameaçada. Devemos demandar isso de nossos governantes, nossos legisladores e de nossas instâncias judiciais. Necessitamos igualmente de órgãos policiais melhor preparados e melhor equipados, também depurados quando houver conivência com o crime.
Prece e ação
Os exemplos dados, além de tantos outros, atestam a seriedade e a complexidade da realidade em que vivemos. Ansiamos por libertação e transformação. Conforme tema do ano da IECLB e da próxima Assembléia do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), a ser realizada em fevereiro de 2006, em Porto Alegre, suplicamos:
Deus, em tua graça, transforma o mundo!
A prece expressa confiança em Deus, mas ela não nos faz cruzar os braços. Muito antes, quer levar-nos à ação. Por isso estamos sendo chamados a desarmarmos os espíritos e as mãos. Cabe-nos fazer a nossa parte! Pois a paz não surge por si, nem por decreto. Nem o referendo por si só resolverá o problema. É preciso sermos educados para a paz, desde a infância até o final da vida. Com esse objetivo, muitos pais e mães dão a seus filhos, ao invés de tanques de guerra e aviões de caça, brinquedos que educam para criar, edificar, repartir e cooperar. A posse de armas, mesmo por adultos, não contribui para a construção da paz, ainda que possa parecer que ter uma arma nos ajudará a defender nossa vida e de nossa família no momento em que formos ameaçados. Na grande maioria dos casos, dará apenas uma ilusória e perigosa sensação de segurança. Em resumo: a criação de uma cultura de paz e justiça depende de um conjunto de fatores e ações, tanto por parte da cidadania quanto pelo Estado.
“Venha o teu reino”
Estaremos assim antecipando e concretizando aquela visão do profeta Isaías de um mundo sem guerras e violência? Ainda não. Mas estaremos colocando, sim, sinais de nossa esperança. Infelizmente, a violência não desaparecerá do mundo simplesmente através de nossas ações, mesmo as melhores. Mas medidas adequadas e um espírito de paz poderão reduzir sensivelmente a violência. Acreditamos que o estatuto do desarmamento é um passo significativo nessa direção.
Na oração que Jesus nos ensinou, o pai-nosso, tem a bonita prece: “Venha o teu reino.” (Mateus 6.10) Ansiamos e aguardamos em confiança a vinda do Reino em sua plenitude. Mas pedimos que o reino de Deus nos venha já agora, na fé e por sinais concretos de vida e paz. Que no referendo do dia 23 o povo brasileiro vote com tranqüilidade e consciência e que seu resultado contribua para mais vida e paz em nosso país.
Na paz de Cristo,
fraternalmente,
Walter Altmann
Pastor Presidente