Uma caminhada como Ministro Religioso na IECLB no Norte do Brasil que começou em 1979 chegará ao fim em junho deste ano com a minha aposentadoria pela Igreja de Baixo-Saxônia com sede em Hannover/Alemanha. Retornarei por um tempo para Alemanha para ficar com a minha família. Minha mãe tem 93 anos! Pretendo depois morar no Brasil, um país que me acolheu tão bem.
Num momento deste surgem as lembranças desta caminhada. Quero pegar simbolicamente pedras e colocar em muitos lugares expressando a minha gratidão com as palavras de 1 Samuel 7,12: “Aí Samuel pegou uma pedra, pôs entre Mispa e Sem e disse- Até aqui o Senhor nos ajudou.” Quero colocar pedras nas horas boas e nas horas difíceis, pois senti a presença de Deus nestes momentos, muitos vezes, tempos depois.
A presença de Deus
Samuel pôs a pedra em Ebenezer( em hebraico significa”pedra da ajuda”) e disse que Deus acompanhou o seu povo até este momento. Na época na havia reis em Israel, no havia um templo. Mas o povo de Israel levava uma tenda com a arca da aliança. Dentre da arca de aliança estavam as duas tábuas dos dez mandamentos. O sacerdote podia ficar perto da arca de aliança. Para o povo de Israel a presença arca significava a Presença de Deus na sua caminhada. A presença dos dez mandamentos! Jesus resumiu os dez mandamentos: Ame Deus e seu próximo!
Na época havia uma guerra com os filisteus. A arca caiu na mão deste povo. Mas Deus castigava os não israelitas com doenças e eles devolveram a aliança ao povo de Israel. Mas quando todo povo de Israel deixou de adorar outros deuses e ficaram unidos na sua fé num único Deus , aí os filisteus guerrearam de novo. Mas Deus ajudou o povo de Deus e Israel ganhou a guerra. Este foi o momento da pedra de Ebenezer.
Deus ajudou até aqui, olhando para trás, mas o mesmo Deus dá a sua presença no presente e no futuro. Esta é a fé cristã, esta é minha fé também nestes dias de despedida de uma caminhada longa no Norte do Brasil. Escrevi um artigo quando comecei a trabalhar com os indígenas Kulina em 1984. O Deus Trinitário está presente antes da chegada do missionário. O nosso hinário do Sínodo expressa: Entre nós está e não o conhecemos. Confiando na presença de Deus faz com que estejamos abertos aos outros abertos para um diálogo sincero. Jesus praticava um diálogo aberto, tão aberto que o levou à cruz, mas o amor da presença de Deus venceu a morte.
Gosto de futebol. Quando era ainda criança rezava para que o meu time ganhasse. Mais tarde percebi que do outro lado havia cristãos que rezavam para o seu time. Percebi que uma oração é diferente. Deus não é um aparelho no qual coloca umas moedas e depois caiu uma lata de refrigerantes. Deus quer que a gente se abre para sua presença, às vezes precisa de poucas palavras: Tenha piedade de mim, não seja como eu quero , mas como Tu, Deus.
Espiritualidade de Oração e Ação
Comecei meu trabalho nas então chamadas Novas Áreas de Colonização como Pastor em Ariquemes/RO, desde 1979, e atendia também as comunidades de Porto Velho, Rio Branco, Humaitá, Manaus e Boa Vista no Norte do Brasil. Foi uma experiência muito enriquecedora, pois o trabalho foi feito em equipe (técnico agrícola, enfermeira e pastor). O desafio foi desenvolver um trabalho ecumênico, espiritual e politicamente engajado, num ambiente de muita miséria. O trabalho nas Novas Áreas foi desenvolvido segundo a visão de uma igreja que visa o homem como um todo, independente de sua religião. A minha formação na Alemanha (seminário missionário de Hermannsburg, mestrado na faculdade de teologia em Hamburgo) e a minha visão de um pastorado iam ao encontro desse desafio. Eu participei na minha juventude de uma comunidade luterana na minha cidade natal, Wolfsburg, (fábrica e sede mundial da Volkswagen), na qual surgiu o primeiro pastorado operário na Alemanha, nos anos 60. Nasci em Wolfsburg no dia 25 de junho de 1949. Influenciaram-me, também, os padres operários na França, os irmãozinhos de Jesus de Charles de Foucault na África e o movimento de Taizé na França. Todos esses movimentos têm em comum uma espiritualidade que une oração com um engajamento político e que querem ficar ao lado do povo sofrido com respeito, na convivência e no testemunho de solidariedade cristã. Em Ariquemes, ficou para mim mais claro do que na Alemanha que a Igreja não pode se omitir das causas políticas, mas ela tem que se engajar por uma vida plena no meio de tanta injustiça e morte (João 10,10) Se a igreja não se metesse nas causas políticas colaboraria com o status quo, com a classe dominante. No meu trabalho pastoral no Norte do Brasil eu sentia um forte preconceito na população e, também, nos luteranos contra os indígenas. Por isso aceitei o convite de trabalhar junto ao povo Kulina(Madihá) no Médio Juruá-AM. Queria ser juntos com as outras companheiras e companheiros uma ponte entre mundos e entre o trabalho indigenista e as comunidades luteranas.
Escrevi um relatório em 1989, depois de ter vivido com o povo Kulina alguns anos: Cada vez aprendo mais com este povo que sabe do mistério da vida, do essencial… do respeito à natureza, à criança, ao convívio com outros. Não tenho uma visão romântica. Os madiha se chamam gente, como nós. Eles sabem das suas falhas. Os mitos narram isto. Mas a história foi violenta demais para este povo e ainda é. Um verdadeiro encontro das duas religiões, das duas manifestações de dar sentido se concretizará no momento em que nós deixarmos muitos elementos destrutivos da nossa cultura (que não são cristãos) caírem. Eu estou no meio deste diálogo, aprendendo, escutando, descobrindo, em longas meditações na viagens e na aldeia, a mensagem Daquele que está ao lado dos que lutam pela vida.
No início de 1992 terminou o meu contrato com a IECLB e retornei para um trabalho numa comunidade da antiga Alemanha Oriental. Muitas pessoas estava afastadas da igreja há 40 anos. Foi importante o que aprendi nas Novas Àreas de Colonização e com os povos indígenas: conviver solidariamente! Foi difícil deixar a comunidade de Stapel na Alemanha. Mas sabia que a minha vocação estava no Norte do Brasil, com os indígenas e com as comunidades luteranas. Em 1998 comecei um trabalho com o povo Deni no rio Xeruã, afluente do rio Juruá.
O trabalho com o Povo Deni
Neste trabalho com o povo Deni ficou claro que o trabalho não podia ser mais somente uma convivência entre os Deni. O Estado brasileiro assumia mais tarefas com os povos indígenas. No trabalho com os Kulina eu estava trabalhando sozinho. Eu escrevi na época:
A maneira de se colocar ao lado dos índios na vida do dia-a-dia é o caminho de mostrar solidariedade num ambiente totalmente hostil a eles. Mas a gente sente também que além da convivência nas aldeias temos que fazer cada vez mais um trabalho volante. O capital está acabando com a população amazonense e os seus habitantes. A situação atual exige da gente mais cursos de capacitação para os próprios índios, para que, assim, possam”
Comecei em 1998 um trabalho de alfabetização na língua materna, depois passei essa tarefa para os professores indígenas que foram eleitos pelas comunidades. Foram elaborados livros, junto com os professores indígenas, em 2003, uma cartilha de alfabetização, em 2004, um livro de mitos Deni, um livro de mitos Kanamari (Tâkuna) e em 2009, um livro de matemática A Terra Indígena Deni foi demarcada em agosto de 2003 (1.530.000 ha), numa ação executada pela FUNAI com recursos do PPTAL e acompanhada pela OPAN, CIMI, COMIN e pelos próprios Deni. Projetos alternativos foram executados junto aos Deni: um projeto de artesanato, um projeto de meliponicultura, com a colaboração do INPA (Instituto Nacional de Pesquisa na Amazônia), um projeto de melhoramento de farinha de mandioca, um de manejo de lago para preservação e comercialização de pirarucu(FLD/EED-Alemanha), um de desinfecção de água através de energia solar, junto ao INPA de Manaus e um de cursos de fabricação de artefatos de madeira, no laboratório do INPA.
Em maio de 2012 será publicado o livro “Nossa Casa da Vida – O universo no olhar Deni e Kanamari” dos professores e lideranças Deni e Kanamari editado pelo COMIN. O livro foi feito para as escolas indígenas nas línguas Deni, Kanamari e português sobre o meio ambiente e a cosmovisão indígena. O livro é também um agradecimento meu aos povos do rio Xeruã pela convivência e aprendizagem mútua ao longo dos 13 anos. Meu coração ficará para sempre no rio Xeruã e mais tarde, depois de não ser mais hóspede nesta terra, o meu tukurimé. Que o livro seja uma pequena ajuda para conservar, preservar e respeitar a grande riqueza natural nas áreas indígenas Deni e Kanamari. Desejo que os filhos, netos e futuras gerações possam usufruir e preservar para sempre esta riqueza abundante. Que Tamaku e Kira, os dois recriadores do mundo, estejam com estes dois povos maravilhosos para enfrentar tudo o que vier de bom e de ruim. Precisamos da força de Tamaku e Kira, de Deus, pois como diz o filósofo alemão Immanuel Kant, o ser humano não é perfeito: “Do madeiro tão torto de que é feito o homem nada de totalmente reto pode ser talhado.
Diálogo inter-religioso
O bispo luterano da Nigéria Alex Malasusa fala sobre o diálogo entre as diferentes religiões: “Na Europa se quer entrar no diálogo antes de ter lido as Sagradas Escrituras do outro. Onde fica o fundamento comum? ” Os Deni não têm escrituras sagradas. Mas eles têm seus mitos e seus rituais religiosos. Por isso, antes de tudo, temos que conhecer a espiritualidade Deni. Os mitos contam como surgiram os povos, os animais, as plantas e como foi o dilúvio.Quando eu anotava com os Deni seus mitos, percebi algo bem especial: no início do mundo todos os bichos, plantas, estrelas eram seres humanos. O homem não é o centro do mundo. Tudo e todos são interligados. Os indígenas vêem este mundo como uma “sociedade da vida”. – Um dia Tunavi Deni se sentou ao lado da minha rede e contou o mito do pajé, Kapihava, que foi atrás de água. “Não existia água na terra. Depois de uma longa caminhada em direção ao sol, encontrou um sapo grande, turatura, que pediu ao pajé que ele o matasse para obter água. Ao matar o sapo, surgiram os primeiros rios, o Cuniuã e os outros rios.” Tunavi Deni contou a história de uma maneira surpreendente. Às vezes ele falava de Kapihava, outras vezes substituía o nome de Kapihava pelo nome de Jesus. Eu me lembrei de textos da Bíblia que falam do Deus trinitário, já presente no meio deste mundo antes que o missionário tivesse chegado (João 8,58). Saravi Deni conta como cristãos não respeitaram a cultura indígena. Um pastor chegou à sua aldeia e batizou sua aldeia inteira e proibiu comer quelônios, porcos do mato e peixes sem escamas. O povo não agüentou por muito tempo essas novas leis. A fome falou mais alto. Quando Saravi encontrou o mesmo pastor em Manaus e contou que eles não obedecem mais as novas leis, o pastor falou: “Então vocês vão para o inferno!” A resposta de Saravi foi: “Deus é maior. Foi Tamaku que criou tudo para nós comermos.”
Depois de perceber que sua religiosidade foi valorizada por nós, missionários da IECLB, os Deni pediram Bíblias da IECLB. Acho que o caminho esteja certo: o Evangelho não foi imposto negando a religiosidade e a cultura indígena. Os Deni a lêem e a comparam com os seus mitos e descobrem muitas semelhanças e diferenças. O compartilhar dos alimentos, a busca de soluções durante conflitos, a valorização dos velhos e o carinho encontram-se nas palavras de Jesus. Os Deni vivem e, penso que já viviam segundo estes valores, mesmo antes de terem conhecido a Bíblia.
Um diálogo inter-religioso proposto desse jeito é aberto, surpreendente e enriquecedor, pois o Espírito Santo quer se manifestar nos dois lados, nos dois interlocutores. A pluralidade das religiões não precisa ser extinta para dar lugar a uma religião única. O Espírito Santo fez com que no dia de Pentecostes que cada um falasse em sua própria língua (At 2.6). A graça não destrói as peculiaridades culturais e religiosas, que dão testemunho do anseio a uma comunhão vivencial com Deus que vá além de toda a compreensão e toda a experiência. Mas o Espírito quer nos livrar de um absolutismo trivialmente entendido que se fecha frente a uma solidariedade universal da humanidade e um respeito pelo outro. Esse absolutismo quer impedir que o Espírito faça o que é próprio dele: unir os homens entre si e com Deus. A distinção luterana da palavra de Deus que é a Lei e o Evangelho pode nos ajudar em qualquer diálogo com o outro. A lei que regula a convivência dos homens, denunciando injustiça, maldade e violência e acusa os homens da sua arrogância, autoestima exagerada e orgulho confiando demais nas suas próprias obras. A lei leva à “metanoia” ao arrependimento, à conversão, a uma mudança de mente e atitudes em relação ao Deus da Vida, aos seres humanos e à natureza. O Evangelho anuncia a graça de Deus em favor da vida plena que se revelou em Cristo. Hans-Georg Gadamer coloca muito bem: “ O que perfaz um verdadeiro diálogo não é termos experimentado algo novo, mas termos encontrado no outro algo que ainda não havíamos encontrado em nossa própria experiência de mundo.”
Quero lembrar no final desta minha despedida algo importante para as nossas comunidades no Sínodo da Amazônia. Quando assumi por poucos meses o cargo de Pastor Sinodal houve a denúncia de corrupção de políticos em Rondônia pela Igreja Católica e pelo Sinódo. Depois houve um processo contra o então bispo de Ji-Paraná , Dom Antônio Passamai, contra a Pastora Jandira Keppi e contra mim. O então presidente da diretoria do sínodo, Charles Michel Ressel e eu, escrevemos uma carta às comunidades e paróquias luteranas do sínodo em setembro de 2006. Ela ainda é muito atual. No final escrevemos: Como Igreja e como cristãos estamos ao lado dos pequenos em favor da verdade, da transparência e da vida, contra a corrupção em todos os níveis na sociedade brasileira. É dever da Igreja alertar as pessoas sobre este momento eleitoral e a importância de seu voto, especialmente neste momento em que há várias denúncias de corrupção envolvendo quase todos os partidos e algumas pessoas dos três poderes – executivo, legislativo e judiciário.Esta tarefa da Igreja não é partidária. No Sínodo existem membros de várias opiniões e partidos e respeitamos todos eles. A IECLB é uma Igreja essencialmente ecumênica. Desde sua chegada na Amazônia tem atuado junto com a Igreja Católica em defesa dos pequeninos, desassistidos e em prol da ética na vida privada e publica. De nossa parte estaremos atentos em relação ao processo movido contra nós. O apóstolo Paulo não se intimidou ante às ameaças e insultos. Usou a mensagem da verdade, do amor e do poder de Deus para se defender. “Por meio da nossa pureza, conhecimento, paciência e delicadeza, mostramos que somos servos de Deus. Temos mostrado isto por meio do Espírito Santo, do nosso amor verdadeiro, da mensagem da verdade e do poder de Deus. Para atacarmos e nos defendermos, usamos como arma aquilo que é certo diante de Deus e das pessoas. Recebemos honra e desonra, insultos e elogios. Somos tratados como mentirosos, mas dizemos a verdade(2 Coríntios, 6. 6-8).
Agradeço aos indígenas, aos colegas e aos membros do Sínodo da Amazônia pela convivência e por experiências de compartilhar, de fé e de amizade. Nas amizades podemos ser o que somos, seres humanos com suas virtudes e falhas. Como diz o filósofo romano Cícero: Quem tira a amizade da vida, o melhor e o mais agradável presente que recebemos dos imortais, tira o sol do mundo.
Que Deus da vida abençoe o Pastor Sinodal Mauri Magedanz, às lideranças e membros da IECLB e todas e todos na caminhada na presença de Deus! O teólogo e pastor luterano Dietrich Bonhoeffer participou da resistência anti-nacista e dos preparativos do atentado contra Hitler. Foi preso e condenado à morte. Foi enforcado no dia 9 de abril de 1945, poucas semanas antes do fim da Segunda Guerra Mundial. Na prisão sabendo da sua morte escreveu o poema Por Bons Poderes: Por bons poderes muito bem guardados, confiantes esperamos que há de vir; Deus está conosco sempre noite e dia; assim com certeza a cada novo dia.